10 de setembro de 2019

Dolor y Gloria.


   Ontem, na véspera de um festival de cinema de que vos darei conta brevemente, fui ver o último filme de Almodóvar, Dolor y Gloria, com a interpretação magistral de Antonio Banderas no papel principal.

    Banderas faz de cineasta de meia-idade, Salvador Mallo, cheio de maleitas físicas e espirituais, quase eremita, que após a morte da mãe vive em crescente reclusão, só mitigada pela existência de umas amigas. Em retrospectiva, vamos vendo a sua infância, numa excursão pela Espanha muy católica y apostólica, rural, pobre. Almodóvar, aqui, num retrato intimista, provavelmente com um toque de biográfico. A fotografia é excelente. As lavadeiras, de início, esfregando a roupa no rio e pondo-a corar ao sol, enquanto trauteavam canções populares espanholas, em imagens que tão bem conhecemos daqui, do nosso país. Um retrato de uma Espanha franquista, isolada, nos anos 50 / 60.




  "El primero deseo" foi a primeira experiência homoerótica que o pequeno Salvador viveu. Almodóvar não esqueceu a beleza física, representada no corpo masculino de um jovem pintor de casas, de vinte e poucos anos, suado, de pele queimada pelo sol de Paterna. O desejo do pequeno Mallo, que se confundia com os tremores e os suores da febre. Mais tarde, adulto, no início dos anos 80, vive um romance atribulado com um homem belíssimo - pesquisem por Leonardo Sbaraglia, o actor -, que todavia termina porque a droga se interpõem entre eles. E é justamente Salvador quem vem a usar heroína, caballo, quando os opiáceos que lhe controlam a dor deixam de o ajudar. O marasmo e a descrença num futuro que lhe permita voltar a dirigir estão estampados no seu rosto de celibatário convicto. Salvador recusa-se quase a voltar a amar. Federico, entretanto, continua a mexer consigo, a despertar-lhe o desejo, mas não a ponto de o fazer arriscar.




   Dolor y Gloria é de uma beleza estética indiscutível. Nos planos, nas cores. Nos cenários. Na simplicidade de uma caverna caiada com brio, decorada de azulejos. No relacionamento tão próximo e espontâneo de uma mãe com o seu filho, e vice-versa, um amor maior. Mallo herda da mãe tão-só o ovo de costura com que esta lhe cosia as meias rotas, enquanto supunham como seria a vida das grandes vedetas do cinema norte-americano. Fala-se de Elizabeth Taylor, surge-nos Marilyn Monroe, ícones da cultura popular daqueles tempos em que o cinema cheirava a orina y el jazmín. Será, direi eu, a reconciliação com a lei universal do nascimento e da morte que o levará a regressar à sua paixão, o cinema, como director.

  As interpretações, quer de Banderas, quer de Penélope Cruz e dos outros actores, são tão boas, tão convincentes, que só ajudam a tornar esta obra de Almodóvar num arquétipo do cinema espanhol de excelência. Almodóvar continua a ser aquele selo de qualidade indiscutível - fui para o filme sem saber o mais ínfimo pormenor sobre o que iria ver. É o maior realizador espanhol da sua geração. E Espanha, nas artes, nunca deixou de ser potência.

13 comentários:

  1. O filme , para alem de ser muito bom é mesmo autobiográfico, ainda que não oficialmente. De qualquer forma banderas sabia que estava a representar Almodôvar, palavras do próprio banderas ;)

    ResponderEliminar
  2. Sou fã incondicional de Almodôvar. Fiz restrições a ele e sua obra quando buscou enveredar pelos ares de Hollywood. Bom saber que você constatou o seu retorno às suas origens e à sua genialidade.

    "Almodóvar continua a ser aquele selo de qualidade indiscutível - fui para o filme sem saber o mais ínfimo pormenor sobre o que iria ver. É o maior realizador espanhol da sua geração. E Espanha, nas artes, nunca deixou de ser potência."

    ResponderEliminar
  3. Sim, já o vi também, e, como quase tudo o que Almodóvar produziu até hoje é excelente.
    Algumas das coisas que produziu no início da sua carreira, onde se baseou na movida madrilena da altura, confesso que nunca me atraiu muito. Mas é um cineasta que aprendeu a forma como prender um espetador ao ecrã.
    Aliás, muito do cinema que se tem produzido em Espanha soe ser muito interessante.
    Entre outros distingo Fernando Trueba e o chilenpo/espanhol Alejandro Amenábar que são, para mim, objetivos a manter debaixo de olho também.
    Enfim, espero que algum dia o cinema português consiga atingir a excelência e que não seja uma "seca".
    Pode que o "Variações", tema de um dos seus textos, seja algo que se veja, ainda não o vi, mas confesso estar cético.
    Já levei demasiadas "banhadas" para acreditar ... e para deitar dinheiro à rua há muitos outros caminhos que me são mais prazerosos.
    Uma boa semana
    Manel

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Amenábar é incrível também. Conheço.

      O "Variações" vale a pena. Não sei se será do agrado do Manel, mas seguramente que não sairá completamente desiludido.

      Uma boa semana, e obrigado por ter voltado. Não me abandone. :)

      Eliminar
    2. Somos seres sociais e, a vasta maioria da humanidade, tem dificuldade em sobreviver sozinha; para que haja alguma forma de equilíbrio precisamos uns dos outros, até para nos conseguirmos posicionar numa sociedade em mudança galopante, como nunca pensei que viesse a sentir. Eu próprio fico arrepiado com as mudanças que se fizeram sentir nestas últimas décadas.
      Quando nasci, as mudanças, ainda que existentes, eram muito mais lentas, as coisas faziam-se para a vida e duravam uma vida ... hoje, dois ou três anos depois, aquilo que era de vanguarda, torna-se obsoleto.
      É a civilização do "usar e deitar fora" o mais rápido possível, pois já estão ultrapassadas. Possuo instrumentos do dia-a-dia que os meus pais adquiriram e ainda estão perfeitamente funcionais, e até em estado razoável, só que ... obsoletas, claro! Continuo a usá-los, a esses instrumentos, e faço a delícia dos meus amigos que me olham como alguém completamente extravagante e fora do meu tempo, mas custa-me deitar fora coisas que considero em estado razoável e funcional.
      Continuo a utilizar roupa que adquiri há 30 ou 40 anos atrás, e alguma dela ainda pertenceu ao meu pai (ele faleceu há 45 anos!). Poderá estar fora de moda seguramente (!), no entanto ... a mim agrada-me e sinto-me confortável nela ... continuo, claro! Nunca fui escravo das tendências da moda, não vou começar agora que estou na fase descendente da minha vida.

      Consequentemente, como eu necessito dos seus escritos para poder posicionar-me em relação a uma sociedade que tenho dificuldade em compreender, visto sentir-me algo alheado dos interesses que movem as novas gerações, tenho igualmente de sentir que sou bem vindo nos locais que visito, o que tem vindo a acontecer com este seu espaço, onde o Mark tem tido a consideração e tem feito o favor de me aceitar e de me "aturar", no bom sentido, pois tento igualmente não ultrapassar os limites que se estabelecem na convivência entre pessoas de bem, e que se querem bem. Exceto o facto de escrever demasiado, mas isso ... nada a fazer.
      Não quero sentir-me como alguém que força a entrada num determinado local só porque é "bem", ou está "in", ou por qualquer outra razão que neste momento não consigo vislumbrar, mas que será seguramente negativa.
      Assim, sou apologista das relações simbióticas, em que as pessoas trocam valores, pensamentos, ideias, e, como isto todos ganhamos, ficamos mais informados e integrados.
      Não tenho interesse em ser misantropo, apesar de sentir que para mim é uma tendência que não me é estranha, no entanto sinto que é minha função evitá-lo e o Mark serve-me, também, como forma de me posicionar (se bem que por vezes é difícil ou mesmo impossível a integração), e por isso lhe agradeço, e não é do meu interesse, de forma alguma, "abandoná-lo".
      Antes pelo contrário, espero é que não nos/me abandone, pois estarei deste lado sempre que sinta que o possa ajudar de qualquer forma, pois a mim ajuda-me, e mais do que pensa.
      A "idade é um posto", usava-se dizer, não o é mais, com esta sociedade em constante mudança, é mais um obstáculo, segundo a minha experiência.
      Uma vez mais lhe desejo um bom ano escolar e que este lhe corra tão bem como o anterior, senão melhor
      Manel

      Eliminar
    3. A minha avó tem um rádio antigo, da sua sogra, minha bisavó paterna, que não conheci, e que ainda funciona. :)

      Curioso quando diz que "a idade é um obstáculo" nesta sociedade. Tenho de concordar consigo. Só sabemos colocar entraves às pessoas à medida em que envelhecem. O tal utilitarismo. Já não contribuem, já não valem nada. É terrível, e contrasta tanto com o respeito que, segundo ouço dizer, os orientais têm pelos seus anciãos.

      O Manel torna este espaço agradável com os seus conhecimentos. Quando escrevi sobre a peça de teatro em que estive, pensei: "Epá, isto vai ser do interesse do Manel". Julguei eu, ingenuamente, que o Manel talvez já tenha assistido a peças fantástica na Broadway e noutros pontos de paragem obrigatórios numa pessoa que goste de artes. Enfim, que eu seja como o Manel quando envelhecer. Sabe, só a título de curiosidade, estou mais interessante agora, física e intelectualmente, do que há dez anos. E até me sinto melhor.

      Obrigado pelos votos. Cumprimentos.

      Eliminar
    4. Vou-lhe confessar uma coisa, e não me é fácil fazê-lo.
      Detesto teatro e não entendo poesia, que me aborrece de sobremaneira, são os meus calcanhares de Aquiles.
      No teatro adormeço com uma rapidez notável, e só sou acordado quando existe algum ruído/grito mais estridente da ribalta. Quando sou obrigado a ir, e por vezes sou, levo sempre alguém que me ajude a não cair nos braços de Morfeu ... um safanão e ... lá estou eu desperto outra vez, até à próxima!
      Tenho pena de de o desiludir ... :( mas a verdade acima de tudo, ainda que não seja fácil admiti-la, sobretudo para uma pessoa que, em parte, se alimenta de arte.
      Manel

      Eliminar
    5. Porque é que não lhe é fácil fazê-lo? Não podemos gostar todos do mesmo. Não tem de se envergonhar por não gostar de teatro. Curioso, não? O teatro é tão consensual que se chega a sentir vergonha por não se gostar.

      Olhe, já eu não vou mais porque não posso. A cultura é caríssima em Portugal.

      Eliminar