3 de abril de 2019

Kursk.


   Aproveitei que a professora de Contencioso não pôde dar a aula teórica e fui ao cinema ver um filme que me suscitou o interesse. Kursk. Para quem não sabe ou já não se lembra, o Kursk era um submarino da marinha russa, que afundou no dia 12 de Agosto de 2000, com mais de uma centena de militares no seu interior. Houve duas a três explosões no submarino, que transportava armamento nuclear. Às primeiras duas, umas duas dezenas de militares sobreviveram, emitindo sons para que a equipa de resgate soubesse que havia sobreviventes. Seguiram-se alguns dias difíceis para a comunidade internacional, para os seus familiares e, sobretudo, para aquelas pessoas, ali, claustrofobicamente presas e desconhecendo o seu futuro.

   Com o fim da Guerra Fria, a corrida armamentista também conheceu um desanuvio. Em 2000, nove anos após a queda da União Soviética, muito do arsenal russo já estava obsoleto. Pese embora seja o maior país do mundo, tenha vários interesses em pontos distintos do globo e ainda careça de manter o seu status, a doentia disputa com os Estados Unidos da América deixara de fazer sentido. Quando sucedeu a tragédia no Kursk, os russos depararam-se com uma evidência: os submarinos de resgate eram velhos, deteriorados, e depressa as autoridades russas perceberam que não tinham condições de fazer aqueles homens regressar à superfície. Fizeram algumas tentativas, e todas saíram goradas. A imprensa mundial acompanhava a situação com apreensão. Eu mesmo, sendo miúdo, lembro-me perfeitamente do caso. Era Verão, e estava de férias com os pais.

   Alguns países disponibilizaram desde logo a sua ajuda, designadamente os EUA, o Reino Unido e a Noruega. Os russos negaram-na durante dias, por dois principais motivos: temiam que incursões de estrangeiros ao submarino pudessem desvendar segredos militares, motivo atendível, que todavia cedia perante a necessidade de se salvar aquelas pessoas, e o medo da descredibilização entre os seus parceiros e o mundo: a grande Rússia, afinal, nem os seus conseguia tirar das águas em segurança, carecendo da ajuda dos ocidentais. Estava muito em jogo. O orgulho russo levou a que, quando finalmente permitiram que uma equipa inglesa descesse ao Kursk, se confirmasse o pior dos cenários: ao abrirem a escotilha, os ingleses deram-se conta de que todos tinham morrido.



   Thomas Vinterberg esmerou-se em tentar, com a maior verossimilhança possível, reconstruir as últimas horas da vida daqueles homens. Cá fora, sem nada saberem, e ainda sujeitos à contrainformação falsa do governo russo, os familiares desesperavam.
   Os actores têm interpretações ao nível do que seria expectável num filme do género, em que o peso da situação quase se consegue sobrepor ao desempenho individual. Ainda assim, eu destacaria Léa Sydoux, que no filme é a mulher de um dos marinheiros, Mikhail Averin, oficial que, após as explosões, liderou o conjunto dos sobreviventes, procurando manter o discernimento de todos enquanto esperavam pelo socorro.

   Não deixa de ser curioso que o mais sangrento dos séculos, o século XX, terminasse com uma tragédia assim. Foi um fim digno para um século de guerras, de mortes, de desenvolvimento tecnológico também no campo militar. Não o foi, seguramente, para aquelas pessoas, que morreram em vão, vítimas da quase indiferença do seu governo. Dos maiores receios da Rússia ao nível de efeitos da sua imagem no exterior, no que respeita ao desastre Kursk, creio que resultou um terceiro dano, não enumerado por mim: entre o medo de que se descobrissem os seus segredos militares e o medo de passar uma mensagem de país fraco que precisava da ajuda de terceiros para lidar com assuntos seus, vingou sobretudo a ideia geral de que o estado russo é capaz de ser frio e calculista quando lida até com vidas humanas suas, de gente que o serve. Um estado que abandona os seus e quase os deixa à sua sorte. Não haverá nada pior.

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