10 de março de 2019

Snu.


  Em primeiro lugar, quero justificar, por assim dizer, esta ausência. Não costumo ficar oito dias sem nada escrever. As aulas começaram. Não tenho feito nada mais do que: levantar-me, almoçar, comprar livros, assistir às aulas e estudar. Só em livros, já vão umas dezenas de euros.

   Esta sexta, aproveitando que ainda não tive aulas práticas de CAT - Contencioso Administrativo e Tributário - fui ao cinema, ao El Corte Inglés, ver um filme há muito aguardado: Snu. Claro que saberão a quem me refiro. À mulher de Francisco Sá Carneiro, primeiro-ministro de Portugal. Mulher, não esposa. Aliás, Sá Carneiro e Snu Abecassis, de seu nome verdadeiro Ebba Merete Seidenfaden, protagonizaram dos romances mais escandalosamente comentados à época, quatro anos após o 25 de Abril de 1974. Nas palavras de Natália Correia, que vemos, no filme, na pele da polémica e irreverente escritora e poeta (não poetisa, que Correia era feminista), com os seus célebres discursos e declamações d'O Botequim da Graça, Sá Carneiro e Snu Abecassis foram a segunda maior revolução ocorrida em Portugal após a de 25 de Abril.

   Se há crítica que lhe possamos fazer, é uma: tratando-se de um filme, aparentemente, sobre Snu, a verdade é que é sobre Sá Carneiro, porque a primeira queda relativamente eclipsada por um homem da envergadura do líder do PPD. Não sei até que ponto a realizadora, Patrícia Sequeira, o terá feito deliberadamente, por qualquer correspondência com a realidade. Ainda assim, não me será claro que Snu, esperta, em sueco, a alcunha que a avó lhe dera, se resignasse a um papel subalterno. Veio para Portugal em 1962. Encontrou um país atrasadíssimo,  « o mais atrasado » que conhecera - palavras suas. Fundou as publicações Dom Quixote e deu algum trabalho aos censores, o que vemos logo na cena inicial, que não queriam cá as modernices do norte da Europa. Já a Sá Carneiro, não conseguiu Snu resistir muito tempo. Ele e os seus encantos conseguiram amolecer uma aparentemente intransponível muralha dinamarquesa.


   A realizadora quis mostrar esse atraso social e cultural. Os pais de Snu divorciaram-se e mantiveram a amizade. O divórcio era uma realidade banal na sociedade dinamarquesa. Por cá, a esposa legítima de Sá Carneiro ia ter com os cardeais para que não consentissem, de forma alguma, com o divórcio. Temos essas duas curiosas perspectivas, a social-democrata do norte da Europa, que unira Sá Carneiro a Snu nos ideais, e a devota sociedade portuguesa da década de 70. Ao mesmo tempo, Patrícia Sequeira foi inteligente em não nos permitir perder o fio à meada: volta e meia, alterna entre o actor, Pedro Almendra, e o próprio do Sá Carneiro, em comícios e discursos. Sá Carneiro que era de uma rectidão de carácter inabalável. Negou-se a alterar a lei do divórcio, o que lhe foi aconselhado, para que ninguém pensasse que daí iria retirar vantagens pessoais, ou seja, o seu próprio divórcio. Isso custou-lhe, como se sabe, a não oficialização da relação com Abecassis, interrompida na noite de 4 de Dezembro de 1980.

   Snu e Sá Carneiro passaram um mau bocado. Mário Soares terá atraiçoado vilmente a amizade da primeira. A relação extranconjugal do primeiro-ministro também foi fonte de alguns engulhos entre este e o então Presidente da República, o General Ramalho Eanes, e a sua mulher, Manuela Eanes, que publicamente não concordavam com a situação de ambos, de Snu e de Sá Carneiro. Tudo isto podemos ver brilhantemente retratado no filme. Aliás, a actriz que faz de Manuela Eanes tem uma aparição fugaz, mas marcante.

   Por se falar em actores, eu destacaria dois, melhor dizendo, duas: Inês Castel-Branco, claro, a nossa Snu, incrível, e Ana Nave, que encarna Natália Correia. Castel-Branco finge exemplarmente não dominar bem o idioma português. Imagine-se a dificuldade. Nave, por sua vez, brilha enquanto Natália Correia, a espevitada contestatária.

  É um filme muitíssimo bom, que aconselho, como não poderia deixar de ser. Sá Carneiro, sobretudo, continua a ser uma figura enigmática, quarenta anos após a sua morte. Muito se fala sobre o que teria sido Portugal caso não tivesse morrido. É futurologia, é certo, legítima, quando sabemos o que se lhe seguiu, a podridão da classe política até então, e devido à qual ainda hoje nos ressentimos. E Snu, claro, cuja morte abrupta impediu de continuar a colaborar para um Portugal mais próximo da sua terra-natal, como editora, com livros revolucionários para a sociedade portuguesa, ou, quiçá, numa carreira política, encorajada por Sá Carneiro. Nunca o saberemos.

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