16 de março de 2019

Magalhães.


   Não, não é o computador do governo socialista. A bem ver, nunca se falou tanto em Magalhães como nos idos anos de 2007 / 2008, no tempo das vacas socialistas, gordas, que em breve ficariam magras. Hoje, fala-se mesmo do navegador, que está rigorosamente na ordem do dia, pelo menos aqui ao lado, em Espanha, onde se esgatanham para ser os primeiros a chegar à América, a construir o  império onde o sol nunca se punha e, claro está, a dar a volta ao mundo. O assunto já chegou à política, e por lá até a academia de história a faz, à política, claro está. Seria tudo ridículo, ou hilariante, se não houvesse aqui algumas considerações a fazer. A primeira delas diz respeito a Portugal, que começou por apresentar uma candidatura unilateral na UNESCO, ao que parece, para assinalar os quinhentos anos da circum-navegação, quando devia ter chamado Espanha. É que Portugal anda há 900 anos, primeiro com os castelhanos e nos últimos séculos com os espanhóis, a lidar com eles. Já deveríamos contar com uma reacção extremada vinda daqueles lados. É que por lá, ao contrário do que sucede por cá, levam isto da História muito a sério. Têm orgulho e brio no que foram, talvez porque o que são actualmente também não seja nada de deslumbrante.

   Em segundo, não fica nada bem aos espanhóis, que são igualmente interessados em manter boas relações com o seu vizinho, afrontar assim Portugal, fazendo-nos quase apagar da empresa de Magalhães, concluída por Elcano. Tudo bem que Magalhães não estava ao serviço da coroa portuguesa, mas é falacioso dizer-se, como o jornal ABC veio dizer, sustentado pela dita academia de história, que "la expedición fue exclusivamente espanõla". Bom, o navegador era português. O conhecimento náutico também. A polémica já ultrapassou Magalhães: há, da parte da imprensa espanhola, sucessivas tentativas de se procurar diminuir Portugal na sua globalidade, de subestimar os nossos feitos, o nosso contributo para o conhecimento da Terra e dos continentes que a compõem. É um nacionalismo exacerbado, que não direi que não haja por cá, sentindo, ainda assim, bastante mais contenção deste lado. Simultaneamente, estou em crer que este parecer da academia espanhola, que vinculará entidades espanholas e que terá o seu valor apenas lá, é extemporâneo, surgindo numa altura em que Espanha e Portugal resolveram, conjuntamente, avançar com uma candidatura da viagem de Magalhães e Elcano a Património da Humanidade. Tudo evitável, no fundo.

   Da parte portuguesa, houve bom senso, em contraposição ao histerismo suscitado em Espanha. Como venho defendendo, nem precisaríamos de Magalhães. Temos plena consciência de como as nossas façanhas ajudaram a desmistificar as lendas criadas em torno de um mundo totalmente desconhecido nos séculos XV e XVI, e cito só alguns nomes: Gil Eanes, Diogo Cão, Bartolomeu Dias. Magalhães foi um entre tantos. Navegámos na costa e fora dela. Chegámos ao Brasil, a Timor, ao Japão, à Terra Nova. São factos. Há provas documentais. Iria mais longe: quando nos reportamos aos nossos feitos antigos, Magalhães tão-pouco será o primeiro nome que nos ocorre, e sim Vasco da Gama ou até Cabral. O que os espanhóis conseguiram foi fazer barulho, e sabemos em como conseguem ser estridentes. Omitem ou procuram abafar os factos que lhes sejam desfavoráveis: havia tripulação de vários países; Carlos I limitou-se a financiar a viagem; Dom Manuel I apenas recusou os préstimos de Magalhães porque tal equivaleria a uma violação do acordado em Tordesilhas; Sebastián Elcano era, na realidade, basco. Será até discutível se já haveria Espanha, muito embora Carlos I assim se intitulasse, como Rei das Espanhas, no plural, mantendo, oficialmente, os títulos em cada reino. É que se quisermos esmiuçar a História, ela dá-nos bons argumentos para vários lados, do que resulta que a campanha foi internacional, e não espanhola. Algo, todavia, é indesmentível: sem Magalhães, português, muito português, nada teria sido possível. E não há pareceres que o contornem.


4 comentários:

  1. Mais um momento de História delicioso ;)

    abraço

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  2. Quando vi o título do seu post assustei-me ... ai Jesus, lá vem o famigerado Magalhães que o venal e desonesto do Sócrates nos impingiu como "gato por lebre", e não foi só em Portugal ....
    Lá descansei quando dei conta que não era o que temia :)

    Quanto a Magalhães, apesar do exacerbamento que se dava na escola salazarista aos nossos feitos marítimos, fiquei muito admirado quando, mais tarde, descobri que Magalhães tinha sido português. Bem, estou a exagerar, pois sabia-o, mas pouco se falou no homem, e, quando foi mencionado, foi-o de tal forma que até parecia estrangeiro, e que se tinha alguma vergonha dele.
    Claro que, posteriormente, descobri quem era e o que tinha conseguido.
    Na escola, creio que o professor, além de misturar reis, deve tê-lo confundido com Colombo, pois tinha sido abordado como tendo oferecido os seus préstimos a Manuel I, mas que, tendo sido recusado, se teria colocado ao serviço de quem lhe "pagaria melhor", que neste caso teria sido Isabel e Fernando - que grande misturada que na altura se fez na minha cabeça, e em termos históricos nada disto faz sentido!!!
    Claro que depois vim a descobrir que tal não tinha sido o caso.

    Soube então que ele teria trabalhado diretamente com Espanha, oferecendo-se, mediante compensações, claro, para descobrir uma rota da pimenta para os espanhóis, que não entrasse em contradição com o acordo de Tordesilhas, que dava as rotas pelo Indico como portuguesas.
    Claro que hoje tenho ideia que este personagem foi movido pelo lucro fácil, com base em "know how" português, pois os mapas e rotas foram delineados com ajuda de cartógrafos portugueses, ainda que alguns deles se encontrassem ao serviço de Carlos V.
    Também tinha viajado intensamente com armadas portuguesas para o oriente, pelo que, sendo a Terra esférica, não seria descabido imaginar a existência de uma rota contrária à utilizada pelos portugueses.
    Descobriu como era fácil enriquecer com este tipo de aventura, pois tinha arrecadado um rico saque numa das suas aventuras pelo extremo oriente, e após ter tentado promover negócios meios "escusos" no Norte de África, arruinou a sua reputação em Portugal, pelo que só lhe restava a hipótese de oferecer os seus serviços ao imperador.
    O canal do Panamá ter-lhe-ia poupado tanto esforço!!!!!! :)

    No final disto tudo, devo dizer que possuo sentimentos algo contraditórios em relação a esta personagem, mas afinal as pessoas são compostas de tantas facetas que, seguramente, nem todas serão boas ou agradáveis, claro!

    Por outro lado, os portugueses parecem ter vergonha de apregoar aquilo que conseguem/conseguiram atingir.
    As coisas mencionam-se quase em surdina, de uma forma absolutamente comezinha, como se tudo aquilo que se conseguiu tivesse sido levado a cabo por outros, que não nós.
    A nada se dá o devido valor, como acontece com outras nações, que a tudo se referem como extraordinário, como na verdade foi, quer com os outros, quer connosco.
    Parece que, no tempo após abril de 74, temos até alguma vergonha da nossa história. A tudo se refere "en passant", para que ninguém dê por nada.
    Sempre achei estranho este factor.
    Na minha escola primária (agora chama-se de básica) havia, ao contrário, um exacerbamento do nosso passado, e, na altura, lembro-me de perguntar se realmente aquilo que aconteceu com a história portuguesa teria algum interesse em termos globais, ou se por acaso era algo natural, que acontecia com todas as outras nações.
    Foi por esta época que me apeteceu descobrir mais sobre história em geral.
    E os acontecimentos foram tomando o seu lugar e a sua importância de uma forma desassombrada e real.

    Uma boa semana
    Manel

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    1. Olá, Manel. Desta vez não lhe peço desculpas porque não recebi a notificação do comentário. Isto realmente! Uma semana! Quando for assim, envie-me um email que, pelo menos, fico a saber que tenho algo pendente. Que vergonha!

      Ambos, quer Colombo, quer Magalhães, ao que parece, entraram em contacto com o Rei de Portugal, por motivos distintos, todavia. Quanto a Colombo, o nosso monarca estava convencido por outra rota; quanto a Magalhães, pelo disposto no Tratado. Até se consta que, depois, houve quase tentativas de sabotagem do nosso monarca. Ao fim e ao cabo, violou-se o Tratado à mesma. Também Portugal o violaria no Brasil, enfim.

      Passámos do oito ao oitenta. De uma época ultranacionalista para, como disse, após o 25 de Abril, quase nos envergonharmos da nossa história. No PREC, aliás, o ensino foi do mais facilitista. Tenho um tio que era miúdo nesses tempos e a minha avó bem me contou. Até havia quem passasse administrativamente.

      Uma boa semana, Manel.

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