31 de dezembro de 2019

O ano em revista.


    Se pudesse dividir o presente ano em duas partes, no campo pessoal, diria que a linha que as separa assenta pelo meio. Junho é o meio do ano civil e foi o meio do meu ano. Os primeiros seis meses foram um seguimento de 2018, entre idas ao cinema, passeios culturais, aulas e exames; os últimos, com um abrandamento a todos os níveis, se exceptuarmos ali os festivais de cinema.

   Em Janeiro, Bolsonaro iniciou o seu mandato. Por cá, um líder da extrema-direita era convidado num programa de televisão, gerando-se uma enorme polémica. Quanto a mim, estive na Fragata Dom Fernando II e Glória, no Cristo-Rei e no estaleiro do Museu da Marinha. Tivemos um mês atribulado, com confrontos entre policiais e minorias étnicas. Entretanto, fiz umas remodelações no blogue, que ressurgiu de cara lavada. Pelo meio, fui ao elevador da Ponte 25 de Abril (Pilar 7), ao Castelo de São Jorge e à Sé de Lisboa. No fim-de-semana seguinte, ao Oceanário, pela primeira vez, que adorei, e no último passei pelo Palácio-Convento de Mafra. Houve ainda muitas idas ao cinema.

   Em Fevereiro, comecei por ir ao núcleo de arte antiga do Museu Gulbenkian. Mais tarde, fui à exposição de Sorolla, no MNAA, e ao Museu da Saúde, ali pelo Campo Mártires da Pátria. O último fim-de-semana do mês levou-me à Casa-Museu Amália Rodrigues. Vi também muitos filmes, sobretudo dos nomeados aos Óscares, mas não só; vi alguns clássicos na Cinemateca Portuguesa, entre eles O Último Tango em ParisGata em Telhado de Zinco Quente, com a inesquecível Elizabeth Taylor. Creio que não lhes disse, mas os meus vizinhos de cima são venezuelanos (um deles luso-descendente). E foi justamente sobre a Venezuela e a sua situação política a minha última crónica do mês, que findou com uma análise aos Óscares.

   Em Março, dos filmes comerciais queria destacar um sobre Snu Abecassis, a companheira de Sá Carneiro. Neto de Moura «lançava os foguetes e apanhava as canas», e a polémica com a naturalidade de Magalhães estava instalada entre portugueses e espanhóis. Na Europa, tínhamos conhecimento dos efeitos do ciclone em Moçambique e toda a onda de solidariedade que se gerou.

    Em Abril, assinalei aquilo que me pareceu ser, e ainda parece, uma revolução na mobilidade urbana de Lisboa, nomeadamente, com a introdução dos novos passes sociais. A propósito de uns comentários lidos nas redes sociais, discutia-se se o fascismo e nacional-socialismo alemão eram movimentos da esquerda política. Aos 62 anos, morria-nos Dina e, pelos mesmos dias, Madonna apresentava-nos Medellín, o primeiro single do apregoado álbum com inspirações lusitanas. No dia 25, mais uma crónica sobre a Revolução, que este ano trouxe consigo uma visita à Assembleia da República. As idas ao cinema, já sabem.

   Em Maio, fiz referência ao XI aniversário do blogue. Já se antecipava a histórica derrota da direita com um intento de crise política. Falou-se das europeias no encerrar do mês.

    Em Junho, participei de uma conferência da Nova Portugalidade, Salazar e a Restauração da Monarquia. Foi um mês de muito estudo para os exames; em todo o caso, ainda tive tempo para passar pela Feira do Livro para adquirir alguns bons volumes. Simultaneamente, comecei a acompanhar a Copa América.

   Em Julho, dava início ao ciclo de festivais de cinema que marcariam o Verão, com uma breve passagem pela mostra de cinema brasileiro em Lisboa. Após exames e uma oral, o ano lectivo, com "c", lá terminou e deixou-me desimpedido para outras actividades, como por exemplo visitar o veleiro Américo Vespúcio, que esteve uns dias atracado em Lisboa, ou assinalar os cinquenta anos da chegada do homem à Lua.

     Em Agosto, dei por encerrada a leitura que rivalizou com os livros de Direito durante meses, O Impiedoso País das Maravilhas e o Fim do Mundo, o meu primeiro de Haruki Murakami. Fui de férias para o Algarve, e bem precisava, mas continuei a acompanhar a série que ainda comecei a ver por cá, Chernobyl, que recomendo, aliás, no canal HBO. E tive cinema, claro, como em todos os meses. Não preciso estar sempre a lembrá-lo.

      Em Setembro, o mundo recordava o início da II Guerra Mundial, e eu procurava aproveitar alguns descontos na Feira do Livro de Belém. Os festivais começaram em força, com o MOTELX. Em Portugal, já só se falava dos debates das eleições legislativas; eu preparava-me para o segundo grande festival do mês, o Queer Lisboa 23.

     Em Outubro, escrevi tanto como não fazia há anos. Vinte e sete publicações. Creio que desde 2010 que não publicava tanto. O ciclo de mortes, infelizmente, haveria de marcar o último trimestre de 2019. O primeiro a deixar-nos foi o Prof. Freitas do Amaral, em cujo velório fiz questão de comparecer. Compareci também numa conferência da Nova Portugalidade subordinada ao tema da regionalização, à qual me oponho e que vinte anos depois volta a estar na ordem do dia. Tracei uma breve análise às eleições legislativas e ainda tive tempo para estar presente numa exposição e palestra evocativas das relações entre Portugal e o antigo Sião. O mês foi muitíssimo rico em cinema, quer em filmes actuais, quer em clássicos do cinema francês. Se quiserem e puderem, revejam toda essa actividade bastante profícua no separador respeitante a Outubro. Destacaria alguns apenas: Sans toit ni loi, Parasitas e aquele que para mim é um dos melhores filmes portugueses de sempre, A Herdade, entre muitos outros. Mas não só de cinema se fez o mês: a peça Antígona esteve nos palcos do Dona Maria II, e eu escolhi um dos últimos dias.
 
     O Miguel faleceu no dia 9.

     Em Novembro, Joacine Katar Moreira, pelos piores motivos, era notícia na imprensa. Cem anos antes, Sophia de Mello Breyner Andresen nascia. Fui à FCSH da Nova da Lisboa, a uma conferência sobre o galego e o português, e ao grande evento da Nova Portugalidade na Casa de Goa, O Império Contra-Ataca. Houve clássicos no cinema: Um Crime no Expresso do Oriente.

     Em Dezembro, abracei os concertos de Natal. Tive o Concerto de Fim de Ano, o AmeriChristmas, o Concerto de Homenagem ao maestro Michel Corboz, o Concerto da Orquestra Clássica Metropolitana, no São Luiz, e As Grandes Canções Natalícias Clássicas e do Cinema, no Convento dos Cardaes. A vocalista dos Roxette, Marie Fredriksson, deixava-nos precocemente, bem assim como o Prof. Silva Dias. Dias antes do Natal, aceitei o convite do caro Manel para um agradável jantar.


     O ano em que a blogosfera mais se ressentiu teve o mês em que, paradoxalmente, mais publiquei desde que o blogue surgiu: vinte e sete publicações em Outubro. É obra! Diria mais: foi o ano em que descobri que o blogue se valia por si só. Blogues houve que não resistiram ao tempo, à falta de reconhecimento ou ao tédio dos autores. Durante anos, julguei que as pessoas escreviam por gosto. Depois, vim a saber que também o faziam à procura de fama e de dinheiro. A frustração, num e noutro casos, levou-as a abrandar ou até a dar por encerrada esta grande aventura. Uma aventura que honra o nome que há quase doze anos escolhi para lhe dar início. Uma aventura cada vez mais minha e menos para quem me lê, porém, partilhada com os poucos que valem a pena. Uma aventura da qual me orgulho, indiscutivelmente.

      Deixo-lhes os sinceros votos de uma excelente entrada em 2020. Ah, e por favor: não comemorem a mudança de década. Os loucos anos 20 deste século começam em 2021.
       Um Bom Ano Novo! Vemo-nos por aí.


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27 de dezembro de 2019

Professor Augusto Silva Dias (1954-2019).


   Uns dias antes do Natal, mais concretamente no dia 19, soube da morte de um ex-professor, o Prof. Augusto Silva Dias, um dos maiores penalistas deste país, insigne professor e jurista. Foi o meu docente da disciplina de Direito Penal III, no ano lectivo de 2014/15.

   Na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, encontram-se muitos alunos com más opiniões sobre os professores. A exigência muitas vezes é confundida com a má vontade, e às tantas gera-se a ideia de que os professores daquela casa são implacáveis. Haverá de tudo. Uma vez que são tão bons, que tanto deram de si, querem o retorno. É natural que nem sempre as notas reflictam o estudo feito, mas é aí que distinguimos entre o mau, o razoável e o bom. E o bom há-de sê-lo sempre na sua área. O que se passa é que temos gente que se julga boa, ou que quer ser boa, numa área que, por vocação, não é a sua. Aplica-se-me também.

   O Prof. Silva Dias, sendo regente, não lidava de perto com os alunos. Os professores assistentes têm outra proximidade, mediante que são eles os responsáveis pelas aulas práticas, aquelas que se ministram em salas pequenas. A Direito Penal III, tratando-se de uma disciplina optativa, não éramos muitos. O Senhor Professor conseguia, ao menos visualmente, ter uma ideia do rosto de cada um de nós, ou pelo menos daqueles que se sentavam nas filas da frente. Era o meu caso. Não raras vezes eu e o Professor trocávamos olhares de anuência. Recordo-me ainda de, anos depois, quando nos cruzávamos pelos corredores, me cumprimentar. Não me havia esquecido.

   Esta partida lembrou-me da do Prof. Eduardo dos Santos Júnior, em 2016, meu professor anos antes (entre 2013/2014), de que só vim a tomar conhecimento em 2018 por ter estado uns anos afastado da faculdade. Também aí fiquei abalado. Gostava deste Professor. Da mesma forma que houve contacto visual com o Prof. Silva Dias, houve-o com o Prof. Santos Júnior. Houve mais: uma oral de passagem a Direito das Obrigações II, e o Senhor Professor foi extraordinariamente compreensivo comigo, o que até destoa do procedimento da maioria dos professores da FDUL nas orais. É o que se consta. Eu não tenho essa experiência.

    Num e noutro caso, não os sabia doentes. Ambos faleceram precocemente. O Prof. Silva Dias, com 65 anos; o Prof. Santos Júnior, com 59. Provavelmente ainda com tanto para dar à academia e à ciência do direito.

   Há coincidências curiosas. O Prof. Silva Dias morreu no início de Outubro. Vim a saber da sua morte mais de dois meses depois. Nesse meio-tempo, a FDUL inaugurou uma exposição evocativa da bibliografia do Senhor Professor e do seu contributo intelectual para o Direito Penal, a sua área, exposição essa que esteve patente do dia 20 de Novembro ao dia 20 de Dezembro, ou seja, um dia depois de ter tido conhecimento do seu falecimento. Ignorei a passagem da depressão Elsa e, munido de coragem, pus-me a caminho para visitar a exposição, no piso inferior da biblioteca. Deixo-lhes aqui o link das fotografias do evento (registo fotográfico). 
    
   Ao Senhor Professor, deixo o meu até sempre, lamentando não o poder encontrar mais por lá, quer enquanto aluno seu, quer enquanto aluno da instituição.

24 de dezembro de 2019

Feliz Natal.


   Natal, o que é o Natal? Um dia de gula, de consumismo, ou o dia em que verdadeiramente assinalamos o nascimento do Messias em comunhão? Parece-me bem que o Natal vem sendo mais o primeiro. Esta deturpação daquilo que é o Natal, observado desde os primeiros séculos da nossa era como o marco do nascimento de Jesus, é um caminho sem volta. 

   Foi o Papa São Júlio I que, em torno do século IV, definiu o 25 de Dezembro como o dia de Natal, o dia consagrado ao Senhor. Em rigor, a Igreja aproveitou as festividades pagãs que já eram celebradas naquela época para mais facilmente conseguir fazer chegar a palavra de Deus aos povos. Séculos depois, o Natal tornou-se feriado no Império Bizantino, nos tempos de Justiniano, caído que estava a ocidente o Império Romano, conquanto na Cristandade oriental seja comemorado a 6/7 de Janeiro.



    Não me alongo mais. Que todos nos possamos lembrar, ao menos por um momento, de Deus. Daquele que se fez carne para expiar os nossos pecados, para nos mostrar o caminho da vida eterna e para anunciar um reino «que não é deste mundo». Deus perdoou-nos os pecados, e a Sua misericórdia é infinita, o que, entretanto, não nos permite pecar continuamente. E pecamos. Pecamos quando temos desejos impuros, carnais. Pecamos quando cometemos actos contra a natureza humana. Pecamos quando blasfemamos. Pecamos quando mentimos. Pecamos quando somos egoístas e rancorosos. Pecamos quando fazemos somente o mal. Atentem nisto.

    A todos os meus leitores, aos que o são e aos que o foram, e àqueles que passarão casualmente por aqui, um Santo e Feliz Natal.

23 de dezembro de 2019

Concerto de Natal - Orquestra Clássica Metropolitana no São Luiz e As Grandes Canções Natalícias Clássicas e do Cinema.


    Esta quadra foi profícua em concertos de Natal. A juntar-se aos três a que havia ido, Concerto de Fim de Ano, AmeriChristmas e Concerto de Homenagem a Michel Corboz, no dia 18 estive no Teatro Municipal São Luiz para o Concerto de Natal - Orquestra Metropolitana e, mais recentemente, no dia 21, estive no Convento dos Cardaes para As Grandes Canções Natalícias Clássicas e do Cinema.

   Dois espectáculos diferentes, mas que se complementaram: o primeiro, de música clássica; o segundo, de música natalícia erudita e popular. Dos cinco, estes foram aqueles que se debruçaram mais sobre o Natal, que era exactamente o que queria. O AmeriChristmas causou-me alguma decepção.


    A Orquestra Metropolitana revisitou a música que o compositor russo Tchaikovski estreou no Teatro Bolshoi, em 1977, o inesquecível Lago dos Cisnes. Antes disso, desfrutámos da espiritualidade de Mozart, num primeiro momento com a abertura orquestral de ópera que o compositor de Salzburgo ofertou à cidade de Viena, em 1782. De seguida, a flautista Janete Santos teve solos que fizeram render qualquer um, evocando A Flauta Mágica, de Mozart também.



   Lá fora, a chuva prenunciava uma quinta-feira difícil, mas dentro do São Luiz respirava-se boa música. Por curiosidade, fiquei num camarote individual. Deixo-lhes algumas fotos e um registo em vídeo.




   No sábado, já refeitos da passagem da depressão Elsa, que provocou o caos em Portugal Continental, sobretudo, fui ali para os lados do Príncipe Real, no Convento dos Cardaes, ao As Grandes Canções Natalícias Clássicas e do Cinema, que contou com a participação do barítono Pedro Miguel Nunes e do tenor Diogo Tomás, acompanhados ao piano por Daniel Sanches. O pequeno concerto, intimista, teve lugar na igreja do convento, ricamente decorada. Um espaço lindíssimo que os convido a visitar e conhecer. De Adeste Fideles, cuja autoria até se atribuiu ao nosso Dom João IV, passando por O Holy Night, cantou-se ainda Judy Garland, Nat King Cole e Barbra Streisand. Uma saudável conjugação dos clássicos de sempre, seja do cinema, seja das velhas composições que nos acompanham há séculos.



     Um concerto maravilhoso. Terá sido, com o do São Luiz, aquele que mais me preencheu. Deixo-lhes algumas fotos.




  E vocês, estiveram nalgum concerto de Natal?

21 de dezembro de 2019

Dear Jesus.


   Lisboa, aos vinte e um de dezembro de dois mil e dezanove,




   A ti,




    Este ano, dei por mim a pensar no que te pedir. O que te dizer que ainda não o saibas, quando tu conheces o que vai no nosso coração? Coragem para enfrentar as adversidades? Talvez seja aquilo de que necessito, acima de tudo, para além de tudo.

  Há dias, como tão bem sabes, defendi acerrimamente a tua existência corpórea perante um tipo que te negava. Ver para crer, não é? «Homens de pouca fé», como disseste, e nada se alterou nestes dois mil anos. Pelo contrário. Continuam a zombar da tua palavra, das tuas representações. Utilizam os novos meios tecnológicos para te caluniar e blasfemar. 
   Imagino a tristeza que te invadirá e ao Pai. Perdoa-os. Perdoa-nos. Na tua infinita bondade e misericórdia, intercede por nós para que não nos condenemos para sempre na nossa ignorância e perfídia.

  Tenho um pedido especial. Partiram recentemente duas pessoas que conheci, e gostaria que as mantivesses junto ao teu peito. Falo-te do Miguel e do Prof. Silva Dias. Desconhecendo as suas crenças pessoais, sei que para ti nada é impossível.

   Não te incomodo mais. Continua a zelar por mim e pelas pessoas que me são próximas. Continua a tolerar as minhas fraquezas e os meus erros e a compreender as minhas frustrações e incapacidades. Eu sei que sabes de tudo. Sabes porventura mais do que eu. Sabes aquilo que não me é permitido lembrar. Sei que és justo, sei que não me virá mal que não o mereça, e é por confiar inteiramente na tua justiça que não temo o futuro. Não o temo mais. 



Aguardando que te manifestes em mim e esperando que jamais me abandones,
Mark

20 de dezembro de 2019

Concerto de Homenagem a Michel Corboz e Jantar de Natal.


     Na terça-feira, estive na Gulbenkian, no concerto de homenagem aos cinquenta anos da direcção de coro da fundação pelo maestro Michel Corboz. Foi precisamente a 17 de Dezembro de 1969 que o suiço se tornou Maestro-Titular do Coro Gulbenkian, com um programa de luxo: Monteverdi e Bach. Hoje, o maestro tem 85 anos, já está debilitado, mas ainda continua a fazer música. Claro está que esteve presente neste concerto em sua homenagem, tendo sido, inclusivamente, chamado ao palco para dirigir Jesu, meine Freude de Bach, o seu compositor favorito.




   Imediatamente antes do concerto propriamente dito e depois do pequeno discurso de quinze minutos da Presidente da Fundação Calouste Gulbenkian, Isabel Mota, pudemos assistir a um pequeno documentário de quarenta e três minutos sobre o percurso de Michel Corboz na Gulbenkian, incluindo testemunhos de pessoas que com o ilustre maestro trabalharam ao longo destes cinquenta anos, particularmente os coralistas. Chamou-se "A música é bela, os aeroportos são tristes", em palavras do próprio Corboz, que considera a "a voz humana o instrumento mais natural e aquele que está directamente ligado às emoções".




   O Coro Gulbenkian, com antigos e actuais coralistas, interpretou Monteverdi, o Magnificat de Francisco António de Almeida, duas canções tradicionais portuguesas, Ó limão, verde limão e Vira do Minho, o O ma joie (Salmo 121) e, como referido acima, o motete de Bach dirigido por Michel Corboz. Gostei imenso das canções tradicionais portuguesas entoadas em coro. Se dúvidas houve acerca da beleza do folclore português, elas dissiparam-se nas vozes de coralistas de música clássica.

     Já sabem que lhes deixo algumas fotos e um pequeno registo em vídeo.



  Dias antes, um leitor assíduo do meu blogue, e agora amigo, o Manel, e é assim que se identifica nos comentários que tão gentilmente aqui deixa, propusera-me um jantar por Lisboa. Em anos anteriores, tenho convidado o Manel para os jantares de Natal que organizo, e o Manel, por não se sentir à vontade entre muitos, sempre declinou os meus convites. Este ano, antecipou-se, e sabendo de antemão que me negara a organizar um jantar, pelos motivos que expus numa publicação recente, achou por bem que eu merecia ter o meu jantar de Natal, discreto, sem algazarras.




     O Manel fez-me prometer que não o diria, mas vocês já sabem que a hipocrisia não faz muito o meu estilo: foi o melhor jantar de Natal de todos. Com duas pessoas, é certo, e mais não fizeram falta. Houve tempo para conversar, para degustar, para sorrir e até para se falar dos aspectos menos positivos da vida e da experiência bloguística. E houve um presente que o Manel me deu. Um livro de Isabel Allende, de quem nunca li nem comprei nada. O Manel teve uma certeira intuição, que há muito ando com vontade de ler a autora chilena. Pela primeira vez neste tipo de encontros senti verdadeira honestidade, amabilidade e franqueza.

   Resta-me agradecer ao Manel, desta vez publicamente, aquelas horas tão bem passadas, o convite, a companhia e o presente, que adorei.

17 de dezembro de 2019

AmeriChristmas.


  No sábado, estive então presente no concerto de Natal organizado pela Universidade de Lisboa, na Aula Magna. Antes disso, pude passear um pouco por Lisboa, uma vez mais, observando as decorações natalícias. Andei novamente pela Avenida da Liberdade e Chiado. Nunca me canso.

  O concerto contou com a actuação da Orquestra Académica da Universidade de Lisboa, e tanto talento têm. Se repararem, o nome do evento tem um caricato trocadilho: AmeriChristmas, ou seja, a junção de America mais o vocábulo Christmas, que em inglês significa Natal. Tudo unido, soa-nos à felicitação Merry Christmas, ou Feliz Natal, no nosso idioma.




   Neste concerto, privilegiaram-se obras de grandes compositores do continente americano, todo ele, incluindo o Brasil. Um pouco diferente da oferta dos anos anteriores. Não se ouviu qualquer música natalícia. Interpretaram e tocaram A. Copland, L. Bernstein, S. Barber, A Márquez, H. Villa-Lobos, Tom Jobim e G. Gershwin. Um programa ambicioso que começou pelas 22h e se prolongou até perto da meia-noite. Houve coreografias em algumas obras, que estiveram a cargo da Faculdade de Motricidade Humana da UL. Gostei particularmente do célebre Adagio de Barber e de Chega de Saudade, de Tom Jobim. Registos diferentes.

  Devo dizer que estranhei. Gosto muito das composições de Natal. Estranhei e depois entranhei, como costumamos dizer.

    Deixo-lhes algumas fotos e um registo audiovisual que captei já a pensar nesta publicação.



     

13 de dezembro de 2019

Compras de Natal e "One From the Heart" (1982).


   Ontem, fui às compras de Natal. Comprar uns pequenos mimos para mim e para as pessoas que me são mais próximas. Como creio que lhes tenha dito, não tenho por hábito oferecer (a não ser à minha mãe), como não é costume na minha família trocar-se presentes. Os meus pais nunca me compraram nada sem que eu não os acompanhasse. Pelo Natal, levavam-me às lojas e eu comprava o que queria. Não tem tanta graça, é verdade, e é uma deturpação da essência de se comprar algo para oferecer: o factor surpresa e a demonstração de gentileza / carinho de quem oferece. Acontece que assim evitavam uma frustração caso não gostasse, e é difícil apurar-se ao certo aquilo que uma criança quer. Já havia muita tecnologia nos anos 90.

  Compras feitas por aí, num dos centros comerciais da cidade, decidi ir almoçar à Avenida da Liberdade enquanto esperava pela sessão das 15h na Cinemateca. Mais um clássico, desta feita um de 1982, de Francis Ford Coppola, One From the Heart. E o que se me apraz dizer sobre este musical do início dos anos 80? Desde logo, creio que agora sei onde Damien Chazelle foi buscar inspiração para o La La Land. Notei tantas semelhanças, sobretudo nos números musicais. Tal como este último, One From the Heart pode deixar um gosto amargo em quem vai à espera de algo verdadeiramente arrebatador; não o é. É uma reinvenção do género musical, com uma falha aqui, uma imprecisão ali. Na busca pelo sonho, notei um certo descuido até nos cenários, mesmo considerando o ano em que o filme foi rodado. Este filme não honra as produções hollywoodescas, inclusive nos gastos exorbitantes que as rodeiam sempre.




   Inteiramente passado na noctívaga Las Vegas, os sentimentos e as angústias daquelas personagens perdem-se  no meio de tanta luz, tanta festa e tanto brilho. A cidade é como que um parque de diversões enorme, onde não há lugar para os infelizes. Aquele optimismo e a animação chegam a ser sufocantes.

   Coppola e o director de fotografia procuraram criar duplos planos no plano, num jogo de sombras e espelhos que nos cria a ilusão de coexistirem espaços diferentes dentro do mesmo plano. Tal é observável em algumas cenas. Um virtuosismo ambicioso naquela época, pretendendo-se fazer escola com isso. Acontece que a receptividade não foi condizente com a ambição de Coppola, que quis resgatar o musical e manter o trilho de produções bem-sucedidas dos anos 70 que o tornariam num dos maiores nomes da indústria da sétima arte norte-americana.

    Particularmente, gostei do filme pelo tanto que me fez imergir numa realidade diferente da minha. Julgamos estar num sonho, um sonho apaixonante. Não foi uma má experiência, não foi. Dificilmente tenho más experiências com os anos 80.

11 de dezembro de 2019

Marie Fredriksson (1958-2019).


   Os Roxette eram aquele duo - durante muito tempo julguei tratar-se de uma banda - que gerou em mim a ideia de que qualquer música que lançasse automaticamente se poderia converter em single de estrondoso sucesso. A sonoridade não variava muito, verdade se diga, mas as suas power ballads fizeram-nos suspirar por muito tempo. Evidentemente, também eu tenho duas ou três na minha playlist da Apple Music, daquelas mais emblemáticas. Foram igualmente, diria eu, um dos meninos bonitos da rádio. As canções são orelhudas, apelam ao sentimento. Não havia noite naquele programa da RFM, Oceano Pacífico, sem baladona dos Roxette. A minha adolescência foi vivida com a Milk and Toast and Honey (2001).

  Sabia vagamente que a vocalista lutava contra um tumor cerebral. Devo de o ter lido algures pela net. Dezassete anos a lutar contra um cancro é obra! Com os novos tratamentos, o cancro vai-se tornando naquela doença crónica. Tem-se um cancro. Vive-se com um cancro. Só que se vive mal, de forma incapacitante. Mais uma vez aqui, não consigo deixar de pensar no Miguel, que lutou contra um durante umas duas décadas, ou mais. Para morrer, não deveria ser preciso sofrer-se tanto.

  Pronto, os Roxette terminam assim, deixando-nos um legado interessante no pop rock romântico. Foram os suecos que mais conquistaram o mundo depois dos ABBA. Atingiram várias vezes o topo das tabelas musicais dos EUA, o que não é para todos.



10 de dezembro de 2019

Concerto de Fim de Ano.


    No sábado, estive presente no Concerto de Fim de Ano - 19º Gala de Ópera da Universidade de Lisboa, na Aula Magna, que contou com a presença não só do Exmo. Sr. Reitor da Universidade de Lisboa como também da Ministra da Cultura. Um serão memorável, principalmente para quem, como eu, gosta de ópera, coros e orquestras. As árias estiveram a cargo de Alexandra Bernardo, soprano, Larissa Savchenko, contralto, e de Armando Possante, barítono. O maestro foi Christopher Bochmann. Nos coros e na orquestra participaram a Orquestra Sinfónica Juvenil, fundada em 1973, o Coro da Universidade de Lisboa, fundado em 1961, o Coro de Câmara do Instituto Gregoriano de Lisboa e o Incognitus Ensemble, fundado ainda este ano.


Lotação esgotadíssima


   Tamanho profissionalismo e entrega só honrou os músicos que ali estiveram. Ouviu-se Borodin e Tschaikovsky, dois dos grandes nomes da ópera russa, e Verdi, o maior nome da ópera italiana. Duas horas de pura magia, posso-lhes garantir. É ainda de certa modo inspirador ver miúdos, que o são, com tanto talento numa arte minuciosa como o é a da música mais erudita. Manusear aqueles instrumentos envolve tanto afinco e delicadeza só ao alcance de quem nasce com o dom e se esforça para o aprimorar.



    Deixo-lhes algumas fotos e um pequeno registo em vídeo já a pensar nesta publicação. Entretanto, antes que me vá, deixem-me que lhes diga que este sábado estarei no concerto de Natal da Universidade de Lisboa, também na Aula Magna.

3 de dezembro de 2019

Lisboa abraça o Natal.


   Ontem ao final da tarde, fui até ao centro da cidade ver a iluminação de Natal. Sabem que gosto imenso da quadra, pelo brilho, pelo espírito, pela doçaria. É algo meio infantil da minha parte, eu sei, e há dias comentava já-não-sei-com-quem: os reveses ainda não me tiraram o gosto pelo Natal.

  Desci a Avenida Almirante Reis em direcção à Praça da Figueira. Segui caminho pela Rua do Carmo, Almeida Garret e cheguei à Praça de Luís de Camões. Na sexta, fiz outro percurso, começando no Marquês, Avenida da Liberdade, Rossio e Terreiro do Paço.


Martim Moniz


  A minha primeira impressão, na sexta, não foi das melhores. Exceptuando a árvore gigante do Terreiro do Paço que tem sempre graça, embora seja muito igual às de anos anteriores, a Avenida da Liberdade está menos brilhante. No ano passado, se bem se recordam, foi decorada com um género de luzes que pendiam dos ramos. Luzes brancas. Este ano, tem umas bolas douradas e prateadas. Está escura. O Rossio está exactamente igual, com o Teatro Dona Maria II imaculadamente decorado, mas a árvore é igual à de 2018. 

Praça de Luís de Camões


   O passeio de ontem salvou um pouco a imagem que já tinha formado sobre os esforços do executivo de Medina na iluminação de Natal (ele que promete mais um sem-número de obras públicas para a requalificação da zona ribeirinha, quiçá tendo em vista esconder os verdadeiros problemas da cidade: gentrificação, especulação imobiliária ao nível das principais metrópoles do planeta, um custo de vida insuportável, caos nos transportes públicos e uma malha urbana devoluta e, em muitos casos, em risco de colapso). 
  A Almirante Reis está melhor do que a Avenida da Liberdade. A Praça do Chile tem uns ornamentos engraçados nas árvores. Não subindo a Morais Soares, deu para ver que está interessante, para compensar a penumbra na Praça da Figueira. Contudo, do que gostei mais foi da bola gigante na Praça de Luís de Camões. De enormes proporções, tem duas entradas para que possamos aceder ao seu interior, no mesmo esquema aplicado à árvore.


Terreiro do Paço


    Calcorrear Lisboa para apreciar as suas luzes de Natal, ao som de clássicos musicais natalícios, vem sendo um costume meu. Deixo-lhes algumas fotos por mim captadas.

30 de novembro de 2019

The Big Fish (2003).


   Não sou lá grande fã do Tim Burton. Vi alguns dos seus filmes, como os clássicos Eduardo Mãos de Tesoura e Batman, e a diferença face a este Grande Peixe é a seguinte: se nos outros há uma solidão em que se recortam as suas personagens, neste revela-se-nos um Burton que observa desde fora, mas que, inapelavelmente, está dentro da narrativa.

  É um drama familiar, com passagens que julguei, à saída da sala, apelarem demasiado à lágrima fácil da solteirona de quarenta anos. De qualquer forma, o argumento foi engendrado de um modo completamente original. A realidade a fantasia não se dissociam. Às tantas, cremos que a fantasia não o é assim tanto, para concluirmos que até nas maiores das loucuras há um pouco de razão.




   O final é particularmente interessante. A cena em que Ed Bloom (Albert Finney) é devolvido às águas tem algo de panteísta, de conciliador com a Natureza, de pacificador. É um filme francamente optimista. Vejamos: aquele homem enfrenta a morte com uma coragem incrível, mantendo-se confiante de que a sua forma de se impor perante a vida, incompreendida pelo filho, o ajudará agora no momento mais difícil, e esta personagem animada, exagerada, contrasta com a do filho, depressiva, abatida, quase taciturna. 

   Há ainda, dentro da história, um mote de reconciliação: Will, que mantinha com o pai uma relação distante, desconfiada, conflituosa em certa medida (estiveram três anos sem se falar), e que o julgava um mentiroso doentio, compulsivo, aceita-o na hora da morte, compreende-o, ajudando-o inclusive no momento da partida, contando-lhe uma história tão fantasiada como as que ouvira durante toda a sua infância.

   Um último destaque ao brilhantismo de Burton na sequência de pequenas histórias em flashback dentro da história principal. Aquelas que se desenrolam no circo e as suas atracções exóticas e aberrantes, a bruxa cujo olho desvenda a morte, o vilarejo idílico, o número musical no Vietname (que ainda continuar a povoar o imaginário norte-americano como uma ferida que não cicatriza nunca) e a cena na banheira, naquele banho de imersão intimista e sussurrado. Tudo digno de um pequeno génio na sua arte.

25 de novembro de 2019

The Dresser (1983).


   Shakespeare e as mil caras



   Escolhi esta foto, que infelizmente tem as letrinhas a incomodar, não ao acaso; fi-lo porque deixa patente o móbil de Peter Yates, o realizador, com esta narrativa construída em torno das estrondosas interpretações destes dois grandes nomes da sétima arte: Albert Finney, falecido este ano, e este filme insere-se num ciclo evocativo da sua obra, e Tom Courtenay. Mais do que a decadência física e mental de um velho actor que se arrasta pelos palcos por vocação e uma mistura de sentido de obrigação e responsabilidade para com o seu público, sobressai, sobretudo, aquela relação entre vedeta e camareiro, de mútua dependência, com momentos de tensão, de esgotamento, de impaciência e de amor, não um amor homossexual, mas, e de forma unilateral, por Norman, um amor um tanto ou quanto homoerotizado, vendo em Sir a figura que, à sua forma, idolatrava.

   Yates foi quase um artesão: esculpiu aquelas personagens, permitindo a Finney e a Courtenay que pudessem mostrar toda a sua arte e talento nas mil e uma faces que um actor pode ter, do choro, à ira, à ternura, em emoções teatralizadas que extravasam quase os limites da acção humana. Praticamente não nos damos conta das outras personagens, tal a demolidora presença do velho actor shakesperiano e do seu camareiro.




    É um filme muito físico. Finney vocifera, estrebucha, arrasta-se pelos palcos e corredores. Vê-lo cansa-nos os olhos e perturba-nos os ouvidos. O actor berra, berra muito. O que se quis foi fazer daquela personagem, que cambaleia sempre entre a ficção e a realidade, um apanhado de todas as criações do dramaturgo inglês: Macbeth, Rei Lear, Othello e por aí.
   Não admira que tenha havido alguma inépcia e até prostração de Yates perante um argumento tão arrebatador e exigente para aqueles dois actores. Tudo o mais soçobra ante aquelas interpretações, e os maneirismos de representação põem mais em evidência os actores do que as personagens. É um duelo a dois.

    Finalmente, este filme é uma escola de boa representação. Daqueles manuais em imagem e som que qualquer aspirante a actor deve ver.

22 de novembro de 2019

O não-jantar de Natal - Lisboa 2019.


   Em anos anteriores por estes dias já tinha falado do costumeiro jantar de Natal que organizo para amigos e leitores do blogue. Este ano, à falta de vontade junta-se a constatação de que não faria sentido manter uma tradição quando já não há espírito de comunidade na blogosfera em que me insiro. Não há blogues. As pessoas não escrevem. E as que escrevem fazem-no essencialmente para si. Eu incluído. Não que em 2017 e em 2018 a blogosfera estivesse nos seus melhores dias, que não estava, mas sobre ela ainda não se havia abatido o estigma da morte incontornável. Daí que não faça sentido procurar organizar um evento que, à partida, sairia falhado. E dá trabalho. Há que divulgar, fazer telefonemas, marcações. Comprometer-me. Não quero. 

   Acresce ainda outro factor, porventura igualmente determinante, que é o da morte recente do Miguel Botelho. Pessoalmente, não me sinto confortável a organizar um jantar, um evento que se quer festivo, animado, pairando sobre mim e os convivas, ou seguramente sobre mim, o falecimento de uma das maiores referências da minha blogosfera. Não há nada a comemorar, antes pelo contrário. Há a lamentar. A partida do Miguel teve um impacto enorme em mim. Raro é o dia em que não penso nele. Não me perguntem o porquê.

   Enfim, este Natal blogosférico será menos colorido. Se alguém, que não eu, quiser organizar um lanche, um café, algo discreto, sem aparatos e euforias, não direi que não. Mais do que isso, por tudo o que disse e mais alguma coisa de que me tenha esquecido ou propositadamente omitido, não. É este o ponto de situação.

21 de novembro de 2019

Murder on the Orient Express (Um Crime no Expresso do Oriente).


   Segunda-feira foi dia de clássico. Um Crime no Expresso do Oriente (1974) será, seguramente, um dos filmes que já foram exibidos vezes sem conta na televisão. Eu, em jeito de curiosidade, só me recordava da sua derradeira cena, paradigmática e memorável, e tão-pouco a relacionava a este título.

  Sendo um clássico da cinematografia, como não li o romance policial de Agatha Christie que lhe serve de inspiração, não poderei fazer um paralelismo entre a obra escrita e a sua adaptação. Ouvi uns rumores de que não lhe é fiel; algo, todavia, é certo: quarenta e cinco anos depois, continuamos a aguardar, expectantes, a solução do misterioso assassinato pelo não menos famoso detective Poirot, uma das mais célebres criações de Christie, aqui interpretado por Albert Finney, que lhe imprimiu um ar em certa medida descontraído, desajeitado e bonacheirão.

  Incontornáveis são também os desempenhos individuais de Ingrid Bergman, que aliás levou o Óscar de Melhor Actriz Secundária, de Anthony Perkins e de Wendy Hiller. Infelizmente, quase todo o elenco já faleceu. Do tempo em que havia bons actores. Sentia-se toda uma escola de representação nas prestações de cada um. Mais do que pensando no reconhecimento futuro, importava fazer, e de preferência bem feito. Um apreciador de beleza feminina não deixará de se render aos encantos de Laura Bacall e de Jacqueline Bisset.




   Há um toque a paródia que aligeira o argumento policial (Bianchi, que após cada interrogatório julga estar-se perante o autor do crime). Não sei em que medida a opção do realizador, Sidney Lumet, terá retirado algum do suspense. Em rigor, embora seja um clássico e queiramos saber quem está por detrás daquele homicídio, nunca parece ser esse o mote principal. Mais do que a narrativa, que se torna apelativa pelo mistério que a adensa, o leque de grandes actores é a grande mais-valia desta história. São uma verdadeira constelação, e aquele final foi como que encomendado à medida para que todos pudessem brilhar, e nem poderia ser de outra forma.

15 de novembro de 2019

O Império Contra-Ataca.


    No sábado, coincidindo casualmente com o trigésimo aniversário sobre a queda do muro da vergonha na Europa, o Muro de Berlim, estive presente na conferência da Nova Portugalidade, O Império Contra-Ataca, na Casa de Goa, perto do Palácio das Necessidades. Já lhes falei anteriormente da Nova Portugalidade, uma associação de defesa da nossa História e do nosso legado pelo mundo, com a qual colaboro periodicamente com alguns escritos. A Nova Portugalidade, doravante NP, tem por hábito organizar conferências, e esta foi a maior por eles já alguma vez organizada. Contou com a presença de um painel verdadeiramente de luxo, pessoas de craveira intelectual e carreira académica intocáveis. Posso-lhes dizer que o programa dava conta do início das actividades pelas 11h30, e começaram bastante depois, tal a afluência. Éramos cerca de cem pessoas. As acreditações pareciam não ter fim.




   A NP decidiu-se pela realização desta conferência num momento oportuno. Soubemos, há semanas, que o governo se prepara para introduzir uma nova disciplina de História no Ensino Secundário, com conteúdos programáticos que contêm uma nítida linha militante e ideológica. Não será difícil imaginar que a alteração à grelha de disciplinas se pautará por políticas revisionistas, que tudo quanto pretendem é retratar-nos como pífios exploradores e genocidas, branqueando o papel que desempenhámos nos Descobrimentos, diminuindo o sentimento de amor e apego à pátria nas nossas crianças e jovens e, por conseguinte, influenciando decisivamente as novas gerações. Acresce a tudo isto aquele epifenómeno da esquerda mais populista no discurso odioso e que agora se faz representar no parlamento.

   Encarando-o como uma investida contra Portugal e o orgulho nacional, a NP decidiu não ficar indiferente. Era tempo de uma resposta pronta e eficaz, que só peca por tardia. Indo ao passado, os oradores não se detiveram demasiado nele, não, que os tempos não estão para isso. Importou-lhes, sobretudo, definir uma visão de futuro e propor soluções. A História deve estar ao serviço do conhecimento, com rigor científico, com precisão, com metodologia, e não ser alvo de manipulações que flutuam ao sabor das mudanças governativas, da dança de cadeiras nos gabinetes ministeriais.


Um painel de luxo



    A queda do Muro de Berlim acarretou a queda da dicotomia EUA / URSS, a mudança de uma era de tensão permanente entre o Ocidente e o Oriente, entre o capitalismo e o socialismo e respectivas áreas de influência. Portugal entrara há três anos na CEE, actual UE, que agora corre o risco de se desagregar. Confirmando-se a saída do Reino Unido, não será difícil supor que outros lhe seguirão os passos. E Portugal? Teremos uma saída de emergência caso o sonho europeu se transforme num terrível pesadelo? Na conferência da NP, falou-se da Portugalidade, esse conceito um tanto ou quanto místico que une os países de expressão e cultura portuguesas. Luísa Timóteo, a presidente da associação cultural Coração em Malaca, aludindo a uma realidade semelhante que eu conheci recentemente no antigo Sião, introduziu-nos entre a comunidade de descendentes de portugueses naquele antigo entreposto comercial, pessoas que mantêm viva a herança portuguesa através do folclore, dos apelidos de família, da gastronomia. Um património de afectos que não preservamos. Em jeito de curiosidade, a senhora Timóteo já escreveu cartas ao Presidente dos afectos, que nem a uma respondeu. É a este património que a Nova Portugalidade dá valor. São estas pessoas, que se sentem portuguesas, não porque um cartão de cidadão o diga, nesse conceito jurídico-administrativo de cidadania importado directamente de França, mas porque o sentem. Porque há uma nacionalidade portuguesa, secular, ancestral, fundada no apego a Portugal e à cultura portuguesa. Será a cidadania mais forte. Tenho a certeza de que o padre António Colimão, nascido em Damão, na antiga Índia Portuguesa, que teve uma intervenção imediatamente antes da senhora Timóteo, concordaria comigo.


Where's Wally? Estou por ali. Find me.


  Além da riqueza das intervenções (deixo-lhes o painel com o programa, e encontrarão cada intervenção gravada na página de Facebook da Notícias Viriato) e da oportunidade da conferência, gostaria ainda de sublinhar o espírito de comunhão, de dever e a dedicação com que aquele grupo da NP se entregou à concretização prática d' O Império Contra-Ataca, que só foi possível com muito labor, muita ida e vinda, sempre com o propósito de que todos se sentissem parte daquilo que ali estava a ocorrer, da primeira à última fila, da primeira à última mesa, durante o almoço.

   Exortava a que todos os que sentem apego à pátria apoiassem a NP, uma associação que está ainda a dar os primeiros passos rumo ao reconhecimento e que conta apenas com a boa vontade dos seus membros, que, com sacrifício pessoal e profissional, se entregam inteiramente aos eventos que realizam e se sujeitam aos mais vis ataques de facções cujo único desígnio é o de destruir Portugal. Esse apoio pode passar apenas pelo acompanhamento e divulgação do projecto da NP, disponível no seu sítio oficial da internet (http://novaportugalidade.pt/) e nas suas páginas das redes sociais: incutir o respeito pela nossa História, repondo a verdade, combatendo o uso indigno da Universidade ao serviço do desensino, contra o conhecimento, a ciência e o esclarecimento honesto dos cidadãos e estimular à edificação da Portugalidade, a união fraterna, igualitária, transnacional, pluricontinental e multiétnica dos povos de expressão e matriz portuguesas.

10 de novembro de 2019

O galego e o português são a mesma língua?


   Na terça-feira, dia 5, participei de uma palestra na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa. Em rigor, tratou-se da apresentação de um novo livro do linguista português Marco Neves, O galego e o português são a mesma língua?, um excelente pretexto para juntar um grupo simpático a discutir a situação sócio-linguística actual da Galiza, que como se sabe é delicada. Moderada por Gabriel André (se é que se pode falar de moderação), galego, contou com as intervenções de Carlos Calhão, também galego, conhecido nos circuitos reintegracionistas, além do autor do livro.

  Eu, à semelhança dos restantes presentes, pude intervir, e fi-lo sobretudo porque não consigo dissociar a questão linguística da política. Pedi licença e introduzi esse elemento, dando uma achega acerca daquele que me parece ser o caminho único possível à Galiza para escapar à aniquilação total da sua cultura e língua: a independência e a emancipação em relação a Madrid.

   Engoli em seco quando Calhão referiu, a determinado momento, que em pequeno comentava à irmã: "Vamos a hablar bien". Na sua cidade, o galego era falado pela totalidade da população. No presente momento, já não o é nas camadas mais jovens. Recentemente, o governo autonómico promoveu a substituição do galego pelo castelhano num desenho-animado dirigido às crianças de mais tenra idade. Qual o objectivo? Parece claro: gradualmente, homogeneizar linguisticamente a Galiza, assimilando-a através de um dos poucos instrumentos que a distinguem de Leão, Castela e das demais regiões da Espanha castelhana: o galego. Remetendo o idioma autóctone a um papel secundário, associando-o à velhice, à exclusão, à ruralidade, incute nos jovens a vergonha pelo seu falar. Não surpreende, no processo, que Calhão tenha crescido com esse preconceito.

   Achei por bem apontar culpas ainda à Xunta da Galicia e à Real Academia Galega, que acabam por compactuar com o governo central: a primeira, com medidas que visam a substituição progressiva do galego; a segunda, procurando aproximar o mais possível o galego da ortografia castelhana e afastando-o, simultaneamente, do português, idioma que deveria ser a verdadeira referência para qualquer norma oficial do galego.


Foto da palestra / apresentação. Sou o rapaz do meio, na primeira fila

   Na Galiza, como Calhão relatou, anos após a transición e já no quadro constitucional actual, escritores foram perseguidos, porque o reintegracionismo, e dentro dele o lusismo, é perigoso. Despertar uma consciência nacional na Galiza já seria terrível para o Estado espanhol; ancorá-la em Portugal, pior ainda.
   A perseguição a quem fala galego não terminou com o fim do franquismo, regime no qual usar qualquer das línguas minoritárias espanholas equivalia a ser preso, torturado, condenado sem garantias de um julgamento justo e equitativo. Livros eram queimados. Um verdadeiro Index, meras décadas atrás. A realidade mudou apenas na aparência e nos métodos. O preconceito e a perseguição continuam lá, porém, assumindo "vestes mais decentes". Calhão, nos inúmeros processos judiciais em que foi parte, teve de pedir vezes sem conta para que o intimassem em galego, que a prática judicial na Galiza é de o fazer em castelhano.

  A realidade galega é-nos próxima geograficamente e distante socialmente. Por lá, há quem lute para poder estudar no seu idioma materno, para poder educar os seus filhos no seu idioma materno, para poder receber informação no seu idioma materno ou aceder a serviços no seu idioma materno. Escrevi "idioma materno" quatro vezes. Não o fiz por acaso. A luta dos galegos pode ser política, mas muitas vezes é-o apenas no domínio do idioma. Estaria tentado a dizer que muitos tão-pouco se importariam de permanecer no Estado espanhol se houvesse garantias reais de protecção do galego, de estímulo ao seu uso pela população. Acontece que o idioma, que é uma arma dos galegos contra o Estado central, também tem sido uma arma de Madrid contra os povos de Espanha. Através do castelhano, procedeu-se a uma política linguicida, uniformizadora.

   Esta luta galega não nos deve ser indiferente. Nós, portugueses, aprendemos a reagir contra Espanha e a negar tudo o que venha de lá. Compreensivelmente. A nossa identidade nacional foi contruída por oposição àquela realidade política. Entretanto, não nos podemos esquecer de que num recanto do que hoje é parte do Estado espanhol nasceu a língua portuguesa, na antiga Gallaecia, que englobava o norte. Virar costas à Galiza será o mesmo que cometer matricídio.

   Felizmente, para nosso bem, tímidos passos vão sendo dados no sentido de uma cada vez maior aproximação entre galegos e portugueses. Da mesma forma que o preconceito e a perseguição não terminaram, apenas se refinaram, também hoje dispomos de meios humanos e tecnológicos que nos permitem trocar ideias e informações. Que nos permitem o que ali se fez naquela sala: conversar, questionar, estimular. Permitir que todos formem uma opinião fundamentada sobre o reintegracionismo, apoiando-o ou rejeitando-o. Galegos e portugueses, nos seus dialectos, com os seus sotaques. Num mesmo idioma. Com um mesmo propósito.

8 de novembro de 2019

A Rainy Day in New York.


   As perguntas que se impõem são as seguintes: como é que um filme ambientado numa Nova Iorque chuvosa e romântica pode desapontar? Como é que uma suite luxuosa com vista sobre Central Park, uma bebida num piano-bar ou um passeio de charrete nos podem aborrecer? Woody Allen foi matreiro, pois jogou com os nossos sentimentos mais primários: a necessidade de amar e ser amados, e soube fazê-lo bem, com um argumento que eu diria, vá, leve, que deixa que os actores possam brilhar sem os esmagar com preocupações excessivas. É uma narrativa pensada para extrair os olhares, as poses, os sorrisos, os estados d'alma. Um filme que se detém nas personagens, em detrimento da densidade do argumento, e personagens todas elas muito jovens, acompanhando as idades dos actores. Entretanto, Allen explora os problemas de afirmação num mundo hermético e elitista como o é aquele da família de Gatsby, com um toque de paixão e erotismo na introdução de uma figura mundana (e profana…): a prostituta, que transpira sensualidade.





  A par da fotografia e dos pormenores da iluminação, que o tornam quase nostálgico e antigo, sofisticado, e complementam o tom romântico, quanto às interpretações tenho alguns reparos a fazer: Timothée Chalamet é um promissor actor da sua geração, mas eu, no seu lugar, tenderia a fugir dos papéis de menino de classe alta, meio dandy, uma vez que é um registo no qual ele vem reincidindo, e isso pode amolgar a sua versatilidade. Vemo-lo como Henrique V no novo filme da Netflix, The King, o que é bom. Elle Fanning sobrepôs "adequadamente" à sua beleza cândida e infantil aquela máscara de loira despistada e até espalhafatosa. Selena Gomez pareceu-me artificial e pouco à vontade.

   Acima de tudo, e sabendo que este filme não agradará a quem espera muito mais de Woody Allen, o realizador quis tão-somente ambientar outro dos seus filmes na amada Nova Iorque, escolhendo desta vez os amores inconsequentes e irreflectidos daquela idade em que já não se é adolescente e nem bem adulto. A cidade que nunca dorme e as comédias românticas não são uma novidade em si. Claro está que não é uma obra-prima, mas é um filme engraçado, que se vê bem sobretudo acompanhado e, se possível, com a cabeça recostada num ombro.

7 de novembro de 2019

Cem anos de Sophia (1919-2004)



Pudesse eu não ter laços 
nem limites

Ó vida de mil faces 
transbordantes

Para poder responder 
aos teus convites

Suspensos na surpresa 
dos instantes.



in Poesia (1944)


   Por tudo aquilo que o seu labor poético trouxe a Portugal, particularmente na nossa história recente, política e literária, Sophia é um dos poucos nomes inigualáveis e incontornáveis. O mar, sempre presente na sua poesia, simbolizava a liberdade, a sua e a dos portugueses; a liberdade em que acreditava e pela qual se bateu sempre.

5 de novembro de 2019

Não sei se não será uma bênção para todos nós.


  Joacine Katar Moreira protagonizou, com outros actores da vida política, uma mudança na casa da nossa democracia. O parlamento tem mais partidos, mais sensibilidades, e tem pela primeira vez uma deputada portadora de uma deficiência que a tornou conhecida. Joacine sofre de uma perturbação da fluência, vulgo gaguez, numa forma particularmente grave que a prejudica sobremodo na expressão oral, na capacidade de se comunicar e fazer entender. Eu pude ouvir a sua primeira intervenção no parlamento, e aquele momento foi doloroso de se assistir.

   Se a deputada se vale do seu problema para se fazer eleger,  não sei. Não tivemos parlamentares que fizeram campanha com a família? Nos EUA, é comuníssimo que os políticos e o eleitorado se valham de características pessoais, profissionais, familiares na vida pública e política. Se foi a estratégia de Joacine, os meus parabéns. Conseguiu-o. O que mais me incomoda nesta senhora nada tem a ver com a sua gaguez, a sua alegada vitimização, os proveitos que tira dela ou, eventualmente, como vem sendo acusada, de exagerar, ou seja, de representar, de tornar o seu "problema de expressão" pior do que ele é. O que me incomoda é o seu discurso perigoso, extremista, manipulador. Historiadora de formação, Joacine sabe bem que a História não tem uma única face. Tem várias. Sabe bem que o que nos deve importar é o rigor científico. E sabe também que não devemos ser juízes de um passado que não vivemos. 

  Joacine, que tanto clama contra a campanha de ódio dirigida a si, é ela própria um agente de propagação de ódio ao querer criar uma cisão na sociedade portuguesa entre aqueles que ela considera os bons, os seus, as tais minorias, e os maus, os homens brancos, masculinos, que ela atira para um mesmo saco. Quem não está com ela, é contra ela. Não, eu não quero que Joacine ponha o seu lugar à disposição. Eu sei que quando não quero ler uma notícia, não a leio. Quando não quero ouvir alguém na televisão, mudo de canal. Quando não quero ser confrontado com determinado conteúdo nas redes sociais, bloqueio. 

  Joacine é mais do que uma deputada. É a porta-voz de uma ideologia e um programa político claro: diabolizar os portugueses, Portugal, a nossa história, o nosso passado. Vai fazer questão de nos lembrar permanentemente de quem fomos, do que fizemos, procurando talvez que nos penitenciemos. Será quase uma inquisidora, de instrumento de tortura nas mãos, neste caso as redes sociais, sempre disposta a acusar e atacar. Os problemas dos portugueses e do país não lhe importam. Importam-lhe, qual segregacionista, os problemas das minorias que protege e às quais dá cobertura. Nesse sentido, não sei se a sua gaguez não será uma bênção para todos nós.

3 de novembro de 2019

The Death and Life of John F. Donovan.


  No Halloween, decidi ir ver The Death and Life of John F. Dorovan, um melodrama insosso. No meu entendimento, a mais-valia deste filme está nos nomes femininos que o acompanham, o mesmo que dizer Natalie Portman, Susan Sarandon e Kathy Bates, porque a narrativa é desinspirada, mesmo recorrendo à nossa tendência para nos deixarmos encantar pelas peripécias de uma doce e carismática criança vítima de bullying, que aspira a ser actor e que se começa a corresponder com um promissor talento da representação, porém, envolto na depressão e no consumo de drogas. O meio em que se movimentava pode ser duro com quem vive de ser galã, e não raras vezes o armário é tão apertado que começa a sufocar quem nele se refugia. Foi o que aconteceu com o ficcionado John F. Dorovan.

  A banda-sonora também me pareceu bastante despropositada e incoerente, porque não é contemporânea à narrativa, que se passa em 2006. Rolling in the Deep é de 2010/11 e Bitter Sweet Symphony, dos The Verve, é de 1997.




  Faltou consistência e expressividade a Kit Harington. Veracidade, talvez. Aquela personagem, o tal John F. Dorovan, parece desprovida de vontade própria. É que tão-pouco é credível em qualquer uma das suas acções. Do mal o menos, além das interpretações femininas, particularmente de Bates, que protagoniza uma cena que redime esta longa do fiasco total, quando explica os motivos do seu afastamento de Dorovan enquanto agente, o pequeno Jacob Tremblay conseguiu ser mais autêntico e credível do que o actor principal. Vou procurar nem comentar o desempenho de Chris Zylka, de outra forma serei tudo menos simpático.

    Com um toque nitidamente autobiográgico, Xavier Dolan falhou em toda a linha.

31 de outubro de 2019

Parasitas.


   Quiçá estejamos perante o melhor filme de 2019. Esta longa sul-coreana foi a melhor surpresa do ano, após um amigo ma recomendar. Torci o nariz, que a minha experiência com filmes asiáticos não é a melhor. É, acima de tudo, uma majestática sátira à sociedade capitalista da aparência, estratificada, do deslumbramento, com sucessivas referências aos Estados Unidos e ao ocidente através do estilo de vida da classe alta da Coreia do Sul, tão alheio da realidade das populações menos favorecidas, confinadas a guetos superpovoados e insalubres. Atingir um patamar de riqueza e bens materiais, de ostentação, numa sociedade desenvolvida como o é a Coreia do Sul, torna-se numa febre capaz de gerar todo o tipo de actos irreflectidos. O modo engenhoso em que o argumento foi elaborado, com tamanha maestria, não nos faz surpreender a aclamação universal (em Cannes, arrecadou a Palma de Ouro).

  Não menos interessante é perceber que o filme conjuga vários elementos dos filmes mainstream. Tão depressa passa da comédia como ao drama e ao terror. O que parece, à primeira vista, tratar-se de uma história de quatro vigaristas familiares, capazes de todo o tipo de patifarias e esquemas sórdidos, daí o parasitas, revela-se, afinal, um retrato social corajoso e original, totalmente subversivo, capaz de despoletar várias das nossas emoções, da lástima ao riso, à piedade e ao horror, particularmente no seu terrível e inusitado final.




   A vida troca-nos as voltas. É o que ali sucede. Tão depressa estamos rodeados de iguarias raras, desfrutando de luxos, como, num ápice, nos vemos arrastados em ruelas. E para quê fazer planos quando somos confrontados com verdadeiros vendavais que arrastam atrás de si todos os nossos sonhos?
  O cheiro impregnado nas roupas daqueles quatro perdidos, o bêbado que lhes urinava à porta e o próprio cenário de inundação, naquela cave imunda, ajudam a completar o quadro de degradação. A degradação moral aliava-se às más condições em que viviam, e entretanto pouco procuravam fazer para, licitamente, mudar para melhor. Escolheram o caminho mais fácil, sem olhar a meios, sofrendo as devidas consequências. E pesadas que foram.

26 de outubro de 2019

Maleficent - Mistress of Evil.


   No primeiro filme sobre Maléfica, que fui ver quando estreou, em 2014 (e podem ler a crítica aqui), estranhei a benevolência e até mansidão da vilã da Disney, comummente considerada em sondagens como a mais malvada. Aquele argumento não me convenceu minimamente. Neste, já ia preparado para isso. A realização como que procurou justificar a fórmula que utilizou no primeiro filme, dotando-a de desenvolvimentos para que compreendêssemos o percurso de Maléfica. Evidentemente, há contradições lógicas. Como é que tornamos uma vilã - a pior das vilãs! - numa criatura que, meh, afinal nem é assim tão má como parece? É uma desconstrução difícil.

  Maléfica, em Mistress of Evil, já não é má. É apenas mal-encarada e antipática. A caracterização e a sua postura altiva deixam de fazer sentido. Entretanto, esta sequela tem um argumento e um background mais verosímeis dentro daquele universo de fantasia. Conhecendo nós as origens de Maléfica, os seus pares, iguais fisicamente, deixamos de a associar, com aqueles cornos e aquelas vestes, a uma personagem necessariamente má, porque, no nosso imaginário, um ser que se apresenta como ela tem de ser mau.

   Na parte dois desta sequência dedicada à vilã, há dois mundos em oposição: o Reino dos Moors, das fadas, e o Reino de Ulstead, de humanos, que vivem lado a lado e se odeiam. Outra vez, humanos e natureza em confronto. É um modo mais simpático, convenhamos, de trazer a discussão do impacto do ser humano no ambiente, apresentando-os como terríveis e impiedosos. Terão razão? Sê-lo-emos?

  Embora a narrativa esteja centrada em torno de Maléfica, não senti a falta de algumas das paradigmáticas personagens d' A Bela Adormecida. As três boas fadas, madrinhas de Aurora, que neste filme é uma personagem apagada e totalmente prescindível, ficaram reduzidas a um papel minúsculo, e diluíram-se completamente naquele emaranhado de fadas do Moors, reino onde todos são fadas e vulneráveis à acção do ferro. Sim, o ferro, o metal. No final, lá recuperaram a inesquecível cena do vestido de noiva de Aurora, que ora é tingido a vermelho, ora a verde, e creio que foi só aí que as três boas fadas surgiram de verdade. A Primavera, a fadinha azul, é corajosa quando tem de enfrentar uma serviçal da Rainha Ingrith, mas até ela, carismática n' A Bela Adormecida, desaparece aqui. E a falta não lhes achei.




   Com uma Maléfica boa, teria de haver outra vilã, que aqui é a mãe do príncipe Filipe, a pérfida e calculista Rainha Ingrith, numa excelente interpretação de Michelle Pfeiffer, que rivalizou, devo dizer, com Angelina Jolie, não só em beleza como no papel de protagonista. Aurora e Filipe são totalmente olvidáveis. Aquela rainha má ainda vai dar que falar.

   Dos efeitos especiais, gostei sobretudo da batalha final e das cenas em que os Feiticeiros da Sombra sobrevoam os reinos. E, até que enfim, vemos Maléfica a transformar-se num gigante dragão negro (ou seria um pássaro?), tal qual como da primeira vez em que surgiu nos nossos ecrãs, algures por 1959. Todavia, não foi apenas com o dragão e a cena protagonizada pelas três boas fadas que senti correlações com o filme original: o fuso da roca de fiar foi recuperado na sua maldição.

  Sujeita a que os fãs de Maléfica fiquem descontentes, que a vilã não o é mais, e da sua anterior condição e personalidade só resta um feitiozinho especial, a Walt Disney atribuiu uma biografia digna a Maléfica, afinal, a maldade pode ter uma justificação. Quase sempre assim é. A Maléfica de Angelina Jolie passou de cruel e sinistra, capaz de amaldiçoar um bebé por não ter sido convidada para o seu baptismo, para uma figura sensual, que transborda a afectos. Teremos sempre a Maléfica de '59 por lá, intocável.