21 de setembro de 2017

Catalunya lliure.


   De tempos em tempos, ouvimos falar da Catalunha e do seu confronto com o governo central espanhol. Nem os ditos referendos comportam qualquer novidade. Em 2014, patrocinado pela Generalitat, foi realizado um, em moldes que o disfarçaram, tendo, na altura, suscitado reacções adversas em Madrid. O resultado foi amplamente favorável à independência, com uma taxa de aprovação superior aos 80 %. Desde então, de forma mais ou menos velada, fala-se na hipotética independência daquela comunidade autónoma espanhola, que teria a vida dificultada por Espanha. A adesão à União Europeia, designadamente, jamais se concretizaria. Vive-se, entre Barcelona e Madrid, uma paz podre.

    Para entendermos a conturbada situação do país vizinho, não podemos ignorar o contexto histórico. Sem querer afastar-me do essencial, a Catalunha surgiu enquanto Condado de Barcelona da Marca Hispânica do Império Carolíngio, mais tarde unido à Coroa de Aragão, uma das que compunham a península, na sequência do enlance entre Petronila de Aragão e Raimundo Berengário IV de Barcelona. Séculos mais tarde, transformar-se-ia num principado. Espanha, o moderno Reino de Espanha que conhecemos, é de formulação da Casa de Bourbon. Surgiu com o centralismo régio do século XVIII, sobretudo a partir de Felipe de Anjou, Felipe V de Bourbon, o primeiro Bourbon a reinar em Espanha, que, através dos Decretos de Nova Planta, aboliu todos os privilégios da Coroa de Aragão (após a Guerra da Sucessão, na qual Aragão apoiou a facção derrotada, os Áustrias, ao trono de Espanha - conflito em que Portugal participaria). Espanha não é uma nação, ainda que a sua Constituição diga o contrário, ainda que o Tribunal Constitucional, na salvaguarda desta última, reconheça a nação espanhola como a única, não sobrando mais às outras do que, sobretudo Galiza, Euskadi e Catalunha, o estatuto de nacionalidades históricas nos seus respectivos estatutos de autonomia.

     A par do processo histórico, que imprimiu diferenças significativas no seio de Espanha - línguas, culturas e tradições distintas - temos de atender ao peso da economia nos novos separatismos. A Catalunha e Euskadi são as regiões mais ricas de Espanha, contribuindo significativamente para o PIB do país. Sentem, e com razão, que a sua riqueza sustenta um território árido, desertificado e de extensão apreciável. Querem, talvez até acima da independência cultural e espiritual, a independência económico-financeira.

     A Organização das Nações Unidas, através da sua Carta (1945) e do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966), reconhece o direito dos povos à autodeterminação. Surgida no pós-II Guerra Mundial, a Carta, com força jurídica sobre os Estados-membros, veio estabelecer uma nova ordem no sentido da descolonização, ou seja, poderia afirmar que a Carta não quis contemplar outras realidades que não as dos continentes africano e asiático. Entretanto, e muito embora o Estado espanhol seja reconhecido, e na sua integridade territorial, pela comunidade internacional, não podemos, com parcimónia, ignorar o que se passa dentro das suas fronteiras: há nações dentro de Espanha, nações sujeitas a um processo lento e gradual de etnocídio e linguicídio. Também na Galiza, mas na Catalunha, pela sua pujança económica e social, os movimentos revoltosos fazem-se sentir com maior intensidade. O Estado espanhol, unitário, descentralizado - "um estado de autonomias" - não é plurinacional e nem plurilinguístico: há uma nação reconhecida e um idioma dessa mesma nação, cujo domínio é da obrigação de todos os espanhóis. Assim estatui a Constituição Espanhola de 1978, aprovada em referendo.

     As leis fundamentais, que devem estar revestidas de um certo carácter de impermeabilidade e imutabilidade, reflectem o pensamento dominante aquando das suas redacções, espelham a ordem de valores vigente à época e não podem deixar reféns as gerações vindouras. A Constituição Espanhola de 1978, devidamente ratificada pelo povo, não se sobrepõe à ordem jurídica internacional, e o seu valor, para quem com ela não se identifica, é nenhum. Daí que não se lhe justifique, pelos catalães, uma obediência cega. O referendo pela independência do próximo dia 1 de Outubro, a realizar-se, não obstante a campanha persecutória levada a cabo por Madrid, com detenções e apreensões (ao abrigo do artigo 155º da Constituição, que tão-pouco foi oficialmente invocado), será sempre inconstitucional, é evidente, valendo isso de pouco para os catalães, pois os golpes e as secessões, na maioria dos casos, são inconstitucionais.

      Pela comunidade internacional, o silêncio é total. Não interessa a qualquer país europeu ser solidário com separatismos. A centralista França, ali ao lado, e tão admirada por um sector da sociedade espanhola, também tem as suas idiossincrasias internas, não as reconhecendo. Apoiar a Catalunha significaria abrir um precedente, perigoso para as potências europeias. O que se vive na Catalunha é mais do que um desconforto gerado a partir da crise de 2007/2008. Tem raízes profundas.
      Portugal, pelo respeito institucional e pela manutenção das boas relações com o Estado espanhol, segue-os no silêncio. Em abono da verdade, aquando da nossa sublevação de 1640, outras se produziram na Monarquia Católica dos Habsburgo, inclusive na Catalunha, prontamente sufocadas. Para acudir na Catalunha, Filipe III não pôde suster a rebelião em Portugal. Devemos, em parte, à Catalunha o sucesso do 1 de Dezembro, que depois, por nossa conta e com as alianças que firmámos, tivemos de o defender por longos e dolorosos vinte e oito anos de guerra com Madrid.

      Revejo-me, aliás, na Catalunha. E é este exercício que exorto a que todos os portugueses façam. Os catalães querem o mesmo que nós quisemos no século XVII, e o estado actual da Catalunha, com um forte predomínio castelhano, pelas migrações durante o regime franquista, seria exactamente o nosso, ou pior, que Portugal não tem uma economia e uma sociedade tão dinâmicas. A Galiza, já praticamente descaracterizada na sua cultura e no seu idioma, será o exemplo mais fiel do que nos teria esperado nestes últimos séculos: repressão da língua, um quadro terrível de diglossia e de desprestígio da nossa cultura e das nossas tradições.

      Não sei se o movimento pela independência da Catalunha terá êxito. Até posso, no meu íntimo, duvidar. Madrid dispõe dos meios necessários para pôr cobro aos independentismos, desde logo através das forças militarizadas do país. Mas já perdeu. Os alicerces estão corroídos pelas perturbação. Será difícil repor a ordem continuamente se os catalães insistirem no projecto de independência. Impérios caíram no passado. Para Portugal, uma vez mais, a Catalunha soberana ajudaria a contrabalançar a hegemonia castelhano-espanhola na península. Isto sem esquecer a pequenina dívida de gratidão. Se em Espanha houvesse a cultura democrática do Reino Unido, o referendo teria o aval do governo central, à semelhança do da Escócia, contornando-se o quadro actual de crise entre as instituições.

9 comentários:

  1. Sempre aprendendo um puco da história dos povos com o Mark ... Que coisa boa e enriquecedora ...

    Beijão

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  2. Adorei este texto e o que aprendi hoje :)

    Se a Bélgica e a Suiça tem os seus cantões, porque não Espanha dar a Liberdade aos Catalães?! A ver vamos como termina

    Grande abraço amigo

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    1. Bem, nem podemos comparar a Suíça ou a Bélgica com Espanha. Nesses países, cada comunidade linguística vê os seus direitos assegurados com equidade e em igualdade. Completamente diferente é a situação em Espanha, onde o idioma oficial do Estado é o castelhano, com os demais sendo cooficiais nas respecticas comunidades autónomas, sujeitos à pressão hegemónica do castelhano. Nem se trata de autonomia, que Espanha também a prevê para as suas comunidades. Muitos queriam um verdadeiro federalismo.

      um abraço.

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  3. Interessante a análise que aqui fez. Bastante realista e atual.
    Dezenas de anos atrás, na primeira vez que estive em Barcelona, fui logo confrontado por um catalão, que acusou Portugal de, no século XVII, se ter aproveitado do confronto entre o poder de Madrid e a Catalunha, que já não era novo na altura, para ganhar a sua independência. Com as consequências que hoje todos sabemos.
    E, claro, não tive resposta para dar, a não ser que me congratulava com o facto de Portugal ser independente e de agradecer à Catalunha o facto - o que o tornou ainda mais furioso ... hoje seria mais diplomático.
    Também tentei racionalizar, referindo que a riqueza da Catalunha, como região autónoma de Espanha, era, e continua a ser, fundamental para a economia do país, e que, Portugal, em comparação, ficaria a perder, o que deve ter constituído razão determinante para que, no século XVII, Castela tenha preferido manter aquela região em detrimento desta região atlântica.
    Claro que, depois de subjugada a Catalunha, Castela virou-se para Portugal com vigor acrescido, sendo os confrontos da última fase das guerras da independência mais violentos do que tinham sido até então. Mas Portugal já se encontrava reorganizado, o que potenciava os apoios franceses e ingleses, e Espanha teve de reconhecer aquilo que levou quase três décadas a fazer.
    E não é de desmerecer o facto de, na última fase, haver situações que facilitaram a vitória portuguesa, como a questão da nossa mobilidade militar da época, o que permitia acudir a vários focos invasivos ao mesmo tempo, para lá do fator psicológico - os espanhóis não estavam numa guerra de sobrevivência como era o nosso caso!
    Também, e à laia de curiosidade, D. Pedro, neto do nosso João I, foi, no século XV, anteriormente à integração da Catalunha na coroa de Castela, nomeado Conde Barcelona (chegou mesmo a intitular-se rei de Aragão), posição que manteve por pouco tempo, pois morreu e está hoje enterrado num dos mais belos monumentos de Barcelona - a igreja de Santa Maria do Mar.

    Depois dos últimos atentados na cidade, a realeza espanhola, ainda que a isso fosse obrigada, também tentou obter trunfos com a situação, participando de forma algo exagerada (segundo a opinião de alguns catalães) nas manifestações que se fizeram sentir por toda a cidade - eu, como neutral, considero que mal seria se não o fizesse.
    Estava em Barcelona (cidade que mantenho como uma segunda pátria, pois aqui passo largas temporadas e onde me sinto sempre em casa) dois dias após os atentados, e, mais do que nunca, se continua a sentir uma vontade generalizada de independência, com os edifícios a ostentar nas janelas milhares e milhares de bandeiras catalãs, forma que os catalães vêm desenvolvendo para expressar a sua vontade separatista.
    E o sentido de independência é forte e parece-me ser transversal a todo o tecido social da região.
    Cada vez me parece ouvir as pessoas a utilizar mais amiúde o catalão no seu discurso diário (talvez seja impressão minha, pois sinto que estou mais sensível a esse facto neste momento), o qual tem uma afinidade com o francês bastante forte - afinal a Catalunha pertenceu à coroa francesa no século X.
    Perceber se há a hipótese disso acontecer é coisa que não diria que não, mas é uma reivindicação com séculos, e que tem resultado em violentíssimas repressões no passado, o qual não está tão longe assim!
    Um federalismo poderia ser uma hipótese ... oxalá responda às aspirações daquela região.
    Admiro profundamente aquela gente e desejo-lhes o melhor,e, se isso valesse de algo, gostaria de apoiá-los na sua pretensão, mas não serve de nada.
    Portugal, na sua posição oficial, mantém-se silencioso, o que entendo.
    Um bom final de semana
    Manel

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    1. Olá, Manel.

      Sim, o catalão é aparentado com o francês e, sobretudo, com o occitano. Há, inclusive, linguistas que o colocam no sub-ramo galo-romance.

      Nunca estive na Catalunha, nem no centro de Espanha. Conheço uma parte da Andaluzia, da Extremadura e de Leão - que também reivindica a sua autonomia face àquilo que considera ser, e é, um invento: Castela e Leão. Desconheço, portanto, o seu contexto social. Sei que há muitos descendentes de castelhanos, uma vez que a Catalunha recebeu gentes oriundas de toda a Espanha durante décadas. Há esses focos, digamos assim, de espanhóis de origem e tradição castelhana, que não querem a independência. Franco tentou uniformizar a sociedade espanhola. Para Olivença, como sabemos, favoreceu a ida de castelhanos, por forma a que eliminassem vestígios da cultura e da língua portuguesas. Tem sido assim a história do Estado espanhol: opressão e supremacia cultural e linguística castelhana sobre as demais. Espanha é um Estado pós-franquista, sem um corte abrupto com a antiga ordem.

      Pessoalmente, e embora não o tenha deixado claro no artigo, sou favorável à independência não só da Catalunha como da Galiza e de Euskadi.

      Um bom final de semana. :)

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  4. Se a economia espanhola sofrer por causa da independência catalã, nós vamos sofrer porque, a propósito, essa hegemonia castelhano-espanhola também existe em Portugal, onde a maoria dos bancos é espanhola e muitas multinacionais também são. 80% das exportações portuguesas vão para o mercado espanhol. O nosso país é soberano mas não económicamente independente.

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    1. Sim, infelizmente. E sempre me opus à invasão económica. É a anexação século XXI.

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