17 de março de 2017

A intolerância.


    O Tribunal de Justiça da UE, órgão jurisdicional da União Europeia, com competência sobre os Estados-membros, instituições e órgãos da União Europeia (não dirime conflitos entre particulares), proferiu uma sentença polémica que nos dá conta da não contrariedade ao direito se as empresas procurarem adoptar um padrão neutro, banindo os símbolos religiosos. Não tendo acesso à sentença, eu presumo que estivesse em causa o hijab, vulgo véu islâmico. Uma ou duas funcionárias, algures por essa Europa, teriam sido impedidas de usar esse símbolo religioso no local de trabalho. E o TJUE veio, agora, confirmar que não há discriminação directa se as empresas, e cito, proibirem o uso de  « um símbolo político, filosófico ou religioso ».

    Acompanhando a crescente susceptibilidade política e social, o poder judicial europeu não é imune ao circunstancialismo histórico e sociológico que vivemos na Europa e no resto do mundo. As posições agudizam-se, os partidos de extrema-direita procuram convencer o eleitorado de que a solução está numa campanha ofensiva contra o Islão, e as instâncias judiciais europeias nem sempre conseguem interpretar os valores que subjazem à Europa ideal, solidária, tolerante, inclusiva. São estes os valores que presidiram às comunidades, que mais tarde originariam a UE. Estávamos a viver um doloroso pós-guerra. A Europa estava destruída nas suas infraestruturas e ferida no seu orgulho. A França e a RFA procuraram unir esforços no sentido de se encontrar um ponto de convergência, de modo a que o continente recuperasse o seu esplendor. Foi um labor de todos. A vontade de que esta nova Europa vingasse era tal que Charles de Gaulle não quis que o Reino Unido participasse no processo de construção europeia (e hoje todos lhe dão razão...).

    A Europa é predominantemente cristã - houve quem quisesse incluir essa matriz no gorado projecto de Constituição Europeia. Mas temos uma Europa minoritária que é islâmica. A albanesa, a turca. E, no limite, temos cidadãos da UE, originários de estados-membros, que são islâmicos. Eu conheço alguns. Pessoas que têm a sua religião, que guardam os seus estatutos e preservam as suas regras, mas que contribuem para a riqueza do país, que nasceram por cá, que são tão portugueses como eu, mas que não são cristãos, e creio que é isso que se lhes não perdoa. Os Estados europeus são laicos ou confessionais, de maioria cristã. A desconfiança é milenar. Remonta às cruzadas, passando pelas campanhas dos reis católicos contra os turcos-otomanos, conhecendo certo refreamento quando entendemos, no ocidente, que o diálogo inter-religioso derramava menos sangue e aproveitava melhor a todos. Com os atentados que uma minoria tem provocado por todo o ocidente na última vintena de anos, o ódio recrudesceu, visando o cidadão médio que tem a sua vida organizada e que em nada está relacionado com esses grupos terroristas. Eu conheço muçulmanos que se insurgem contra o fanatismo jihadista.

     O hijab é um mero pretexto. Ao que assistimos, sim, é à crescente intolerância na Europa, quase recuperando a velha máxima bíblica, bem a propósito, da Lei de Talião. Estamos no caminho errado. É natural que as autoridades europeias procurem defender-se de atentados, mas temos de saber fazer a distinção entre extremistas, que os há em todas as religiões, e cidadãos comuns, porventura que professem o Islão, que estão plenamente integrados, e muitos dos quais até contactando de perto com o Cristianismo. Chamem-me irrealista, porque eu acredito que ambas as religiões, que partilham uma origem comum e os seus profetas, podem conviver pacificamente. Como ouvi por uma islâmica, "todos (os islâmicos) somos também cristãos". Uma afirmação simples, aparentemente superficial, mas que reúne em si a fórmula para a paz entre as nações cristãs e islâmicas.

     A decisão do TJUE deve ser bem interpretada. Compreendo que, em função da estratégia empresarial e da adequação à função, possam ser impostas restrições no que diz respeito aos símbolos religiosos. Numa loja de biquínis, por exemplo, não faria sentido que a funcionária envergasse um hijab. Devemos atender ao caso concreto, e não considerar que em qualquer situação, em qualquer contexto, seja legítimo impor aos funcionários que prescindam de determinados símbolos. Usar ou não o hijab pode comportar sofrimento para a mulher. Falamos da religião, e a religião diz respeito a um recôndito profundo de cada um, insondável, digno de respeito (o mesmo se aplicará às convicções políticas ou filosóficas, com a devida ressalva).

     Temo que a actual conjuntura permita que as entidades empregadoras reajam discricionariamente face a este precedente aberto pelo TJUE. O tribunal, contudo, é claro: exige-se que haja um regulamento interno que determine uma indumentária neutra aos funcionários. A questão está em saber até que ponto o hijab pode ser entendido como um símbolo, em primeiro lugar, e um símbolo que se desvie do âmbito da dita neutralidade, em segundo, e ainda podemos questionar-nos acerca do que é a neutralidade, por último. Prescindir do hijab será o mesmo que prescindir de um acessório estético qualquer? Parece-me que não. Entendendo, porém, que a neutralidade consistirá em manter todos os trabalhadores com a mesma aparência no que respeita ao traje, então, sim, não vejo discriminação. A deliberação do TJUE abarca os símbolos em geral, independentemente da religião.

     Da minha parte, um hijab, bem com um crucifixo, ou outro símbolo qualquer, a menos que estejamos diante de circunstâncias muito específicas (como a do biquíni), não afecta a produtividade da empresa, nem a eficiência ou a capacidade do/a trabalhador/a. O seu uso deve ser livre. Uma empresa que preze o bem-estar dos seus funcionários e a inclusão, porque é também isso que está em causa, deixa em cada um a decisão, em consciência, de se apresentar ou não com símbolos religiosos, intervindo na medida em que isso possa lesar os seus interesses.

9 comentários:

  1. Uma perspetiva interessante para reflexão esta que você nos apresenta.

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  2. O meu primeiro instinto relaciona-me com o facto de talvez me considerar europeu, apesar de não o ser por nascimento e nem sequer sei se, no meu íntimo, o serei efetivamente.
    Mas, como referia, o que me ocorre logo é: "Cada macaco no seu galho", mas sei que, para além de ser irracional e injusto (eu próprio fui acolhido, e relativamente bem, aqui na Europa, por isso o meu "galho" original nem sequer era este em que me encontro - e já vivi em várias cidades europeias que não Lisboa) não responde a nada.

    Assim, os habitantes deste continente em que vivo (e foram impressões pessoais que retirei durante os muitos anos difíceis em que tentei inserir-me neste tecido social, religioso e político) parecem estar revestidos de uma certa aura que usam como uma bandeira e escudo, para se identificarem/protegerem como "cidadãos de primeira" em contraposição com os outros (enganaram-se, claro, e a história não hesitou em prová-lo!) - os meus antepassados vinham ter os filhos à Europa para serem considerados "cidadãos de primeira", e terem assim acesso a regalias que, doutra forma, não teriam. Mas isto foi no passado.
    Com o tempo as diferenças foram-se esbatendo, mercê de novas políticas mais tolerantes, mas mantém-se um certo mal estar quando surgem novas tendências fundamentalistas de vário teor, nomeadamente religiosas - elas aparecem-nos travestidas com as "roupagens" da religião, mas creio que a sua verdadeira face ultrapassa em muito este aspeto, estando relacionado com tendências de supremacia e controlo económico e político (e não estou numa de "teoria da conspiração") - que vêm introduzir uma disrupção no equilíbrio conseguido.
    E, claro, não acreditando na sua sorte, certas franjas da sociedade, que, não obstante, detêm um poder económico/político considerável, aproveitaram a oportunidade para usar essas tendências surgentes para convencer e sublevar as massas face ao perigo, fazendo crer a essas mesmas massas que estes movimentos são-lhes inconvenientes à sua segurança e bem estar (e claro que o são de certa forma).

    Consequentemente, entra-se numa espiral de violência onde os métodos são "do vale tudo", e as consequências tornam-se imprevisíveis, colocando-nos numa "torre de marfim", de recusa total, não nos permitindo o uso da razão (que razão sobra quando as pessoas de quem gostamos começam a ser preteridas, prejudicadas, vilipendiadas, torturadas ou assassinadas?).

    Como resolver esta "quadratura do círculo"?
    No passado passava-se à declaração oficial de guerra, e seguia-se uma carnificina, hoje tenta-se fazer de conta que não se vê, contemporizar, legislar, contornar, apelar para os tribunais, ou para organismos internacionais mais ou menos isentos, passar a uma guerra fria de guerrilha, visível ou não, apelar para os media ou exercer pressões/represálias encapotadas - as hipóteses são inúmeras. Cada grupo tem os seus métodos.
    Oxalá os extremismos não produzam os frutos que anunciam, pois entramos numa escalada preocupante, pelo que o futuro se nos apresenta incerto.

    Um bom final de semana, e, como sempre, escrevo demais :(, mas, ainda assim, a problemática é vastíssima, e tratá-la assim é um pouco, não só inepto da minha parte, como também até imprudente
    Manel

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    1. Olá, Manel.

      Há "macacos" que estão "no galho", e eu faço-lhes referência no artigo. Há portugueses muçulmanos, nascidos cá.

      Não sei se o que esses grupos pretendem é o controlo económico. O que os impele, no meu entendimento, é a jihad, a vontade de impor os seus costumes ao ocidente. Defendem, inclusive, um "espaço vital" (não sei se o Manel teve acesso aos mapas), que inclui a Al-Andalus, a península em que vivemos. Julgo que a motivação primordial é esse confronto milenar.

      Veja, houve declarações formais de guerra: no Iraque, no Afeganistão, na Líbia, na Síria. Simultaneamente, e de modo menos velado, a sociedade civil inquieta-se, olha de soslaio para o colega, o vizinho, que é muçulmano, procurando dificultar-lhe a vida. É aí que entram os hijabs desta vida.

      Vejo com muita apreensão este crescente de tensão entre a Europa e o Oriente. A extrema-direita dá mão a todos os artifícios para ganhar à custa do receio das pessoas.

      Escreve o que lhe apetece. :) Eu fiz a minha análise, uma crónica que, em dimensão, suplanta muitas crónicas, e o seu comentário também aborda a problemática de modo responsável.

      Um bom final de semana.

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  3. Gostei, apesar de ficar sempre confuso...

    As mulheres Não Crentes ou Cristãs querem ter os mesmos Direitos que os Homens, no entanto aceitam que as outras mulheres que rezam outra crença possam andar de hijab porque é a sua Religião...

    Sério!!! Que por vezes fico admirado como há mulheres que lutam contra a Violência Doméstica e aceitam de animo leve que outras mulheres sejam violentadas todos os dias na sua forma de condição por Ser Mulher...

    Ainda bem que vivemos numa Democracia, e a minha opinião nada valha

    Grande Abraço amigo

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    1. Mas as mulheres, se tanto nos Estados de Direito, gozam dos mesmos direitos que os homens. E usar o hijab é um direito.

      E é evidente que, por cá, qualquer homem, islâmico ou não, que violente a sua mulher responde perante a justiça. Recordo-me até, recentemente, de um líder islâmico qualquer que foi investigado por violência doméstica. Passou-se em Portugal, em Lisboa.

      um grande abraço, amigo.

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    2. É um Direito usar Hijab?! Para quem?! Para a mulher continuar a ser submissa ao Marido?! Ou para o marido dizer que a mulher é lhe inferior?!

      Abraço :)

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  4. Um tema polémico este. É difícil de determinar uma resposta certa no dilema. No entanto, creio que com a tua explanação, tudo ficaria bem melhor. Devias submeter este teu texto ao Tribunal de Justiça da UE, a fim deles reflectirem no que expões. :)

    Um abraço :)

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    1. As tuas palavras recordam-me as da Margarida, há uns anos, numa resposta minha à crónica do ex-Presidente do Brasil, José Sarney. Foi em 2012 ou 2013.

      um abraço.

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