28 de abril de 2016

Quarenta sobre trinta.


    A Constituição da República cumpre quarenta anos de vigência no presente mês. Elaborada a partir da composição política sufragada em 25 de Abril de 1975, a Lei Fundamental que rege o Estado português entrou em vigor exactamente um ano depois, a 25 de Abril de 1976. Convergiram no texto constitucional, à época, duas legitimidades: a legitimidade democrática, emanada do povo, único detentor da soberania, e a legitimidade militar, que adveio do MFA, que promoveu o golpe de Estado que derrubou o Estado Novo, encontrando expressão constitucional no célebre Conselho da Revolução, que teria previsão até 1982 - data da primeira revisão. Suceder-se-iam outras seis revisões, num total de sete. Em vinte anos, a Constituição adaptar-se-ia ao seu tempo: de rumo ao socialismo, encaminhou Portugal para uma economia capitalista, de mercado, inserida em comunidades supra-estatais europeias. Acrescentar-se-iam direitos ao já apreciável leque de direitos do indivíduo. O Estado também foi visado, reformando-se progressivamente. A Constituição aprimorou-se.

     É, de longe, o texto constitucional mais extenso de todas as leis fundamentais que Portugal conheceu. Ainda assim, e embora afirme o seu primado sobre quaisquer outras fontes de direito interno, a Constituição não deixa de ser ameaçada por alguns perigos constantes, dos quais enuncio, por exemplo, o designado constitucionalismo informal, que esvazia o alcance das normas constitucionais. Também a sujeição às regras do direito internacional, que se sobrepõem ao carácter normativo e hermenêutico do direito interno (valor supra-legal), sendo que não raras vezes a Constituição é revista por forma a se adequar aos tratados que vincularão Portugal na ordem externa, nomeadamente no âmbito do direito europeu, sem prejuízo de alguma doutrina defender a supraconstitucionalidade dos tratados internacionais.

     A Constituição portuguesa, pese embora a sua vastidão, não goza da permeabilidade de determinados textos constitucionais mais sucintos e que, por isso, sobrevivem relativamente imutáveis aos séculos. Não faz parte da tradição romano-germânica do direito formular leis fundamentais que enunciem os direitos mais primários do indivíduo e a regulação basilar do Estado; a Constituição portuguesa, bem como as suas congéneres latinas, elenca todo um rol de direitos sociais da pessoa humana, estatuindo arduamente sobre as competências dos órgãos do Estado, sua organização e funcionamento. A Constituição é, em suma, exaustiva, o que por si só não a envolve numa robustez imune às mudanças sociais. A Constituição não deve castrar as gerações vindouras, tão-pouco as presentes. As suas normas, incluindo as pétreas, espelham os valores da sociedade que lhe subjaz, e só enquanto eles subsistirem estará fundamentada a sua própria existência.


      No dia seguinte, a 26 de Abril, perfizeram-se trinta anos desde o desastre nuclear de Chernobyl, na então República Socialista Soviética da Ucrânia, infeliz efeméride que pouco eco encontrou na Comunicação Social. Pela primeira vez, o mundo confrontou-se com a energia nuclear fora de controlo. Dezenas de pessoas faleceram por contacto directo com os reactores nucleares e milhares virão a sofrer pela proximidade às áreas afectadas.
    A catástrofe teria leituras políticas, abalando a já decadente União Soviética, e certamente terá contribuído para a sua dissolução cinco anos depois, em finais de 1991. A par das repercussões no equilíbrio da União Soviética, o desastre despertou a todos para os perigos da energia nuclear. Já enquanto Estado independente, a Ucrânia herdou um pesado legado. Quilómetros e quilómetros manter-se-ão inabitados pelos próximos séculos, transformando o infortúnio em arte abandonada, como o atestam as inúmeras fotos da cidade de Pripyat.

24 de abril de 2016

Foi Cabral, há mais de quinhentos anos.


   Quase todos os anos, como de costume, dedico algumas palavras ao feito, que considero épico, protagonizado por Cabral ao desembarcar na terra a que designou de Vera Cruz. No imaginário popular, eu diria que dois navegadores portugueses se destacam: Cabral e Vasco da Gama, o último com primazia sobre o primeiro. Ambos rumaram à Índia. A Índia e o Brasil, o paradigma da epopeia marítima portuguesa. Uma representando o oriente, o alvo da nossa atenção, que ao longo do século XVI mereceu que nos fixássemos pela costa oriental africana, pela península arábica, pela própria Índia e pelos arquipélagos do sudeste asiático. Até que a incorporação de Portugal na Monarquia Hispânica, ou Católica, proporcionou a cobiça e o saque dos neerlandeses às nossas possessões, expulsando-nos de uma por uma, sobrando parcos redutos. Portugal voltar-se-ia, por fim, para o Brasil, a sua "jóia da coroa" por mais de duzentos anos, após um primeiro século de relativa obscuridade no seio dos interesses mercantis portugueses. Em breve descobririam a riqueza, ouro que sustentou o fausto dos monarcas e das suas concubinas.

     O dia 22 de Abril passa despercebido entre portugueses e brasileiros. Não gozamos do sentimento nacionalista tão presente nos países de língua castelhana, onde Colombo é tido por herói. Não vejo, como gostaria, um sentimento de pertença, como denoto na relação especial entre os EUA e o Reino Unido, sem prejuízo de pontuais quezílias, ou nos laços que unem Espanha às suas antigas possessões na América, pouco pacíficos, é certo, mas surpreendentemente coesos. Sabem o que os liga, o que têm em comum. Semelhante quadro não encontramos entre Portugal e o Brasil. Do lado português, o Brasil ocupa uma posição privilegiada, e isso constatamos, nomeadamente, com a cobertura mediática dada à sua situação política. Os portugueses conhecem a cultura brasileira nas artes, importando-a pelas décadas, desde a música à representação. Os brasileiros pouco conhecem de Portugal, insistindo, a sua maioria, em rejeitar a herança tão portuguesa. No século passado, o Brasil passou a exaltar as suas raízes africanas e indígenas, esquecendo, todavia, que a portuguesa é um dos vértices desse triângulo, que se converteu em outra figura geométrica, posteriormente à independência, com o contributo daquela massa de imigração que pautou os séculos XIX e XX. Frequentemente sabemos de brasileiros que evocam a sua ascendência italiana com orgulho; a portuguesa, não raras vezes com mal dissimulado constrangimento, ou indiferença.

        Portugal foi o obreiro do Brasil. E devemos dizê-lo sem receios. À data da proclamação por D. Pedro (I por lá; IV por cá), o Brasil já assumia as dimensões continentais que lhe conhecemos, ainda que expandisse um pouco mais o seu território em virtude de certos conflitos com os países limítrofes. A sua imensidão, não obstante a multiculturalidade, foi conseguida pela administração portuguesa, centralizadora, cujo idioma se impôs sobre os demais. Olhando em redor, o Brasil vislumbrará uma miríade de Estados sem potencialidade alguma, fruto da fragmentação que se seguiu aos movimentos secessionistas inspirados na Declaração de Independência dos EUA.
         O Brasil carece de efectivar as pazes com o seu passado e com o seu progenitor.

        Amanhã, celebrar-se-á, uma vez mais, a Revolução de 25 de Abril de 1974, tão presente no colectivo português, não tivesse meros quarenta anos. Um povo também é as suas memórias. E a um povo com uma história rica como a portuguesa, não sobrariam dias no calendário para assinalar as datas. Não dedicarei, este ano, qualquer artigo relativo à revolução. Nada há a acrescentar ao muito que já foi dito e escrito, inclusive por mim. 
         A nossa origem é secular. Somos mais do que os últimos cem anos. Como que se tivéssemos nascido com a República, que a bem ver não passa de um regime. Somos, em síntese, também o descobrimento das terras brasileiras, embora o ignoremos.

21 de abril de 2016

Prince (1958 - 2016).


     Fui surpreendido, como a imensa maioria, com a morte de Prince. Para um amante da onda dos anos setenta e oitenta do século passado, Prince é um dos nomes incontornáveis. Não é possível percorrer os grandes sons daqueles tempos sem esbarrar em Purple Rain, Cream, Kiss, ou a minha favorita de todo o seu vasto e profícuo repertório - When Doves Cry.

    Prince estava doente; eu não sabia. Prince, dizem, passava por um período de menor criatividade; desconhecia. Na senda do entendimento de Manuel Moura dos Santos, vultos maiores, como Prince, deixam a sua marca de forma tão indelével que é desnecessário aludir a alguma quebra na produtividade. Prince era a referência em si. Um homem ímpar, original, que escandalizou a moralista indústria americana com os seus outfits exóticos e andróginos, com a sua maquilhagem exuberante, com a postura irreverente em palco.

      Perdemos progressivamente todas as nossas referências. Poucos meses após a partida de Bowie, Prince deixa-nos numa cada vez mais sentida solidão. Génios não nascem todos os dias. Só alguém pouco atento à sua carreira poderá duvidar do muito que ainda estaria por vir. Nos seus cinquenta e sete anos, Prince certamente teria sucessos a somar. 
      Quando sentimos que quase tudo está inventado, tendemos a recorrer aos nossos bastiões. Prince, por mim falo, era um deles.

18 de abril de 2016

O processo de destituição de Dilma Rousseff.


    Soubemos, nesta madrugada, que o primeiro passo decisivo está dado: a Câmara dos Deputados, por uma maioria significativa, decidiu iniciar o processo de destituição, ou de impeachment (nunca como agora esta palavra encontrou tanto eco fora dos meios académicos), da Presidente da República Federativa do Brasil. Ultrapassou-se uma primeira etapa, porquanto o ordenamento constitucional brasileiro, à semelhança do português nos tempos da I República (1910 - 1926), prevê a existência de duas câmaras (bicameralismo), uma câmara baixa, a Câmara dos Deputados (o equivalente à nossa Assembleia da República), e uma câmara alta, o Senado, que faz todo o sentido em países de proporções continentais, como Brasil, ou com substractos sociais e culturais diversificados. Ora, o processo será encaminhado ao Senado, numa segunda etapa, aguardando-se pelo veredicto dos senadores brasileiros.

     Não sou um especialista em ciência política brasileira e tão-pouco em direito constitucional brasileiro. Para evitar ferir susceptibilidades ou inaugurar uma discussão extensíssima sobre o mérito deste processo de destituição, centrar-me-ei, tão-só, na sessão da Câmara dos Deputados a que pude assistir.

     Fui um estreante. Não havia ainda assistido a uma sessão do plenário brasileiro. Devo dizer que fiquei perplexo. Perturbou um pouco a minha sensibilidade europeia. Compreendo, como por todos é sabido, que as democracias sul-americanas - e aqui sem qualquer juízo valorativo - são bastante peculiares face às europeias. O Brasil é um país multicultural. O seu parlamento é um reflexo da sociedade brasileira. Ainda assim, qual o meu espanto ao verificar que a sessão mais parecia um circo, uma feira de vaidades. Falou-se de Deus, da religião, da família, com deputados a agradecer aos pais, aos filhos, aos cônjuges; gritou-se, apupou-se, jogou-se confetti para o ar, levou-se bandeiras, até ao cúmulo de ver deputados a comer e a passar comida uns pelos outros. Se ficamos indignados com algumas atitudes mais grosseiras dos deputados portugueses, nomeadamente, nada é comparável com a realidade parlamentar do país irmão.

    Tentando manter uma postura equidistante desta querela, ou deste imbróglio político, por não ser brasileiro e por não viver as emoções na primeira pessoa, não deixo de começar a sentir certa compaixão por Dilma Rousseff. Não senti uma sincera inquietação com o estado do Brasil, com os dez milhões de desempregados, com a estagnação económica. Os deputados não estavam preocupados em discutir o crime de responsabilidade, um tipo legal que no ordenamento jurídico brasileiro poderá levar, no limite, à destituição dos titulares dos cargos públicos; entretanto, passeavam-se pelo microfone, esgrimindo argumentos assentes na pura demagogia e no fácil populismo. A Presidente do Brasil, a bem ver, não cometeu qualquer crime que ficasse provado (por ter incumprido, alegadamente, a Lei da Responsabilidade Fiscal). Para todos os efeitos, goza do princípio da presunção de inocência. Assisti, em suma, ao que me pareceu ser um assalto ao poder.

      O caso ganha contornos alarmantes quando percebemos que vários políticos enfrentam, eles mesmos, processos por corrupção. Michel Temer, o vice brasileiro, de quem Dilma diz estar a ser vítima de traição, é suspeito pela prática de inúmeros ilícitos. Já Eduardo Cunha, o Presidente da Câmara dos Deputados, está a ser investigado no âmbito da Operação Lava Jato, e a sua falta de credibilidade moral foi mencionada por vários parlamentares. Se o processo de destituição chegar, por fim, ao afastamento da Chefe de Estado e de Governo brasileira, o Brasil continuará mergulhado nas espessas brumas da corrupção e da lavagem de dinheiro.

     Julguei, até ser derrotado pelo cansaço, que a margem que separaria o "Sim" do "Não" seria menor. Surpreendeu-me a votação massiva pela abertura do processo de destituição. Os partidos que apoiavam o Governo abandonaram a Presidente. Determinados deputados votaram contra a orientação dos partidos; outros, por seu turno, votaram contra a sua consciência. Entre tamanho alvoroço, senti a calma e o discernimento no voto dos deputados do PT, alguns dos quais insurgindo-se contra o que lhes parece ser um golpe.

      A crise política no Brasil está longe de conhecer um fim. Viveu-se um primeiro episódio de uma triste novela que está para durar.

16 de abril de 2016

As horas críticas do Governo.


      Desde a tomada de posse, em finais do ano transacto, que o Governo minoritário do Partido Socialista não passava por tão penosas polémicas. Os casos sucedem-se, tentando António Costa, como chefe do executivo, apaziguar os ânimos.

      João Soares ameaçou esbofetear dois colunistas do Público. Uma atitude intolerável num membro do Governo, que acarretaria, como previ, a sua demissão. No que respeita à responsabilidade criminal, o Código Penal contempla expressamente o tipo legal do crime de ameaças, que depende de queixa. Costa garantiu que João Soares teria condições para prosseguir no Governo, deixando implícita, todavia, a quebra de confiança no seu Ministro da Cultura. Soares entendeu a mensagem e abandonou voluntariamente os destinos da pasta que liderava. Uma primeira baixa na equipa ministerial.

     Em simultâneo, despoletava a crise institucional entre as Forças Armadas e o Governo, com as declarações do Sub-Director do Colégio Militar, o tenente António Grilo, rejeitando peremptoriamente os afectos naquele estabelecimento militar de ensino, dando-nos a conhecer, amplamente, a postura do Colégio Militar ante o afecto em si mesmo, extrapolando a polémica suscitada, que é manifestamente desencorajado. O Ministro da Defesa Nacional, Azeredo Lopes, pediu explicações e pressionou no sentido da tomada de decisões; o Chefe do Estado-Maior do Exército, Carlos Jerónimo, pediu a demissão, em consequência, e os militares já falam em protestos nas comemorações do 25 de Abril, exigindo a demissão do ministro socialista.

        A contratação de um amigo pessoal de António Costa, Diogo Lacerda Machado, está, também ela, envolta em controvérsia. O advogado foi contratado para prestar serviços de «consultadoria estratégica e jurídica» ao Primeiro-Ministro. O salário mensal que está adstrito a essa função, que ascende aos dois mil euros, findando no final do ano, levantou questões que se prendem à idoneidade da escolha, pela reconhecida amizade que há entre António Costa e Lacerda Machado, que já havia prestado semelhantes serviços de apoio ao Governo, sem que para tal tivesse sido formalmente contratado.

        Pelo meio, o Secretário de Estado da Juventude e Desporto demitiu-se, alegando incompatibilidades com o actual detentor da pasta da Educação, Tiago Brandão Rodrigues. O caso mantém contornos ainda pouco claros para a opinião pública. O argumento invocado pelo ex-Secretário, de «desacordo com (...) o modo de estar no exercício de cargos públicos», dá azo a diversas interpretações. Sou levado a crer de que não havia qualquer harmonia entre ambos, o que seria, a persistir, muito pouco saudável nas relações que se querem de confiança e de solidariedade entre um ministro e um secretário de Estado.

         A terminar a ronda de agonias, o Bloco de Esquerda, através da sua líder, Catarina Martins, no debate quinzenal, exigiu a demissão do Governador do Banco de Portugal, arguindo que Carlos Costa cometeu «falhas graves» ao não informar o Governo do pedido ao Banco Central Europeu para que agilizasse o processo de liquidação do Banif (limitando o acesso da instituição de crédito aos fundos de liquidez do Eurosistema) e ao não comunicar ao executivo dos critérios que estiveram subjacentes à selecção dos credores que serão sacrificados com a resolução do Banco Espírito Santo. O Governo mantém-se relutante quanto à demissão do actual Governador, aludindo, porém, às falhas na informação, através do Secretário de Estado Adjunto e das Finanças. O BP, por seu turno, defende-se com a confidencialidade inerente às regras das instâncias europeias.

          Dias que não têm sido fáceis para o Governo. Não admira que, confrontando fotos dos políticos antes e depois de ocuparem cargos de decisão, envelheçam precocemente.

11 de abril de 2016

O Papa Francisco.


    Após a resignação de Bento XVI, o Cardeal Joseph Ratzinger, o mundo católico vibrou com a possibilidade de o Colégio Cardinalício eleger um Sumo Pontífice africano, asiático ou até mesmo sul-americano. Efectivamente, a escolha recairia em Jorge Mario Bergoglio, cardeal argentino, um homem disposto a abrir a Igreja à realidade dos nossos tempos.

  O Papa Francisco, nome que adoptou após a eleição, demonstrou ser uma pessoa elevada na sua simplicidade, revestida de certa bonomia que a ninguém deixou indiferente. Eu diria que é o Papa mais consensual das últimas décadas, recolhendo uma aprovação generalizada entre crentes e não-crentes. Honrando a São Francisco de Assis, aquele de quem se diz ter sido um santo homem durante a sua vida, o Papa Francisco tornou-se o primeiro jesuíta a alcançar o topo da hierarquia da Igreja Católica. O seu sorriso e a leveza do seu semblante frequentemente me reportam ao não menos carismático Papa João XXIII.

    O seu carácter trouxe consigo um capital de esperanças, que não vêm sendo defraudadas. Falamos de alguém que conhece a realidade da Igreja Católica fora dos muros do Vaticano; que tem presente a sua erosão junto dos jovens; que sabe que muitas das posições têm obrigatoriamente de ser revistas, por forma a se adequarem ao estado actual da humanidade. E Jorge Mario Bergoglio fá-lo sem prescindir dos valores basilares da Igreja Católica, como o respeito pela vida humana, desde a concepção, e a relevância do matrimónio e da família como estruturas fundamentais no são desenvolvimento da personalidade.

     Na exortação papal Amoris Laetitia, não encontramos verdadeiramente uma inovação, mas um reforço do que tem sido a linha do pontificado do Papa Francisco: respeito; tolerância (inclusive com a orientação sexual homossexual e com os divorciados); definição de prioridades; exaltação da família; integração; condenação da interrupção voluntária da gravidez, em coerência com os ensinamentos da Igreja quanto ao valor sagrado da vida humana, e valorização da componente sexual como um acrescento à união entre o casal, primordialmente.

    Definiria o pontificado do Papa Francisco como uma "evolução na continuidade", sem euforia excessiva. Não estaremos diante de um verdadeiro reformista, de um Bispo de Roma que promoverá mudanças estruturais no catecismo da Igreja; o Papa Francisco é, antes de mais, um homem que não teme o diálogo, inclinado aos concertos necessários para que ninguém se sinta excluído.


* Por deferência e por considerar o lógico e o correcto, o substantivo "Papa" surge escrito a maiúscula inicial, à semelhança do que sempre fiz com os demais cargos institucionais e com órgãos de soberania.

7 de abril de 2016

A espuma dos tempos.


    Os últimos dias têm-se sucedido vagarosamente, alternando com picos de intensidade súbita. Sente-se a Primavera (com maiúscula, que embora partidário do Acordo Ortográfico, primavera assemelha-se à prima da Vera, que certamente será uma boa moça). Na casa da avó, o chilrear dos passarinhos já me acompanha pelas manhãs. A temperatura sobe gradualmente. As tardes são longas.

   Não fosse o falecimento da avó de uma prima, na passada semana, e só teria a pintar o quadro com serenas tonalidades. A senhora nada me era, directamente. Partilhávamos um laço de afinidade. Conheci-a de sempre. Tenho uma foto consigo à saída da maternidade. Em um mês, adoeceu, foi internada e morreu, atestando, uma vez mais, a nossa efemeridade.

     Estarei destinado a acercar-me das pessoas em momentos trágicos. Foi assim com o pai, em Fevereiro do ano passado, repetindo-se na quinta-feira, com esta dita prima. Havíamos cortado relações, por incompatibilidade de feitios. Não me demorei na igreja. O nosso afastamento levou, por arresto, a que perdesse o contacto com os seus pais e com a senhora sua avó. Quis, todavia, deixar assente que respeito a dor dos seus familiares mais próximos, e que não sou indiferente à partida de alguém que me embalou em seus braços, que me viu nascer, a bem dizer, e crescer.

     Olhando em redor, fui acometido pelo choque de perceber como todos estão envelhecidos. A avó paterna, magra, aparentando uma quase rigidez cadavérica, visivelmente debilitada; o seu filho, meu tio, portanto, fumador inveterado, com a pele estragada pelas décadas de hábitos tabágicos; à sua esposa, a idade não condescendeu, porquanto engordou, desfigurando por completo a imagem de jovem delicada que ainda perdura por algumas fotos que mantenho, guardadas, em casa.

      Como diz a música, fatalmente, «o tempo tem mais olhos que barriga».

1 de abril de 2016

IV Seminário Luso-Brasileiro de Direito Constitucional.


   Teve lugar, entre o dia 29 e o dia de ontem, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, o IV Seminário Luso-Brasileiro de Direito Constitucional. Estimulado por um amigo e comentador brasileiro, que simpaticamente me lançou o desafio de dedicar algumas palavras ao seminário, fá-lo-ei enquanto jurista, tentando apartar-me da crise política pela qual o Brasil atravessa, que, pese embora as tentativas dos intervenientes, acabou por marcar o simpósio.

    O Direito Constitucional é um ramo do Direito que me é caro. De entre todos os ramos do Direito, será o segundo que mais me suscita o interesse. Enquanto que o Direito Civil é, tendencialmente, o ramo que reúne a preferência da larga maioria dos estudantes, nos seus mais diversificados vértices, o Direito Público, nomeadamente o Direito Constitucional e, também, o Direito Penal, fica circunscrito a quem revela uma aptidão nestas áreas.

    O Seminário que se realizou por estes dias é da maior importância. Portugal e o Brasil, a par dos laços históricos, culturais e linguísticos, partilham uma origem comum no seu direito civil e constitucional. Centrar-me-ei no último. 
   Com a independência do Brasil, D. Pedro I (IV de Portugal) outorgou-lhe a primeira Constituição, a Constituição brasileira de 1824, de cunho vincadamente liberal e progressista Por cá, em Portugal, vivíamos nos tempos da primeira Constituição, de 1822, tida por muitos como demasiadamente inovadora, promovendo um corte abrupto com a realidade anterior à Revolução de 1820. Urgia pacificar a sociedade portuguesa, encontrando um meio termo, um consenso. Com a morte de D. João VI, seu pai, D. Pedro I do Brasil herdou a coroa portuguesa. A Constituição brasileira de 1824 não lhe permitia reunir em si as duas coroas. Assim sendo, outorgou a Portugal a Carta Constitucional de 1826, abdicando da Coroa em nome de sua filha, D. Maria II. Não me alongarei nas considerações históricas. A Carta Constitucional, porventura o texto constitucional que vigorou por mais tempo em Portugal, encontrou no, seu carácter moderado, um compromisso entre o absolutismo e o liberalismo. O Rei detinha o poder executivo e o designado poder moderador, permitindo-lhe, este último, influir decisivamente na busca de uma harmonia entre os demais poderes públicos. A Carta Constitucional embebeu vários dos princípios presentes na Constituição brasileira de 1824.

      Já no século XX, com o advento da Revolução de 1910, a Constituição de 1911, republicana e laica, foi fortemente inspirada na congénere brasileira de 1891, igualmente republicana. Assim como esta, a Constituição portuguesa previu a divisão tripartida dos poderes, que não era em si mesmo uma novidade, estando presente nos textos constitucionais liberais anteriores; a separação entre o Estado e a Igreja, constante na Constituição brasileira de 1891, encontrou acolhimento na Constituição portuguesa. Extinguiram, ambas, os privilégios de nascimento e os respectivos títulos nobiliárquicos. Os Estados, brasileiro e português, não mais adoptaram a religião católica como oficial.
        Por inspiração da Constituição brasileira de 1891, a Constituição portuguesa de 1911 equiparou ainda os direitos de portugueses e estrangeiros; instituiu a figura legal do habeas corpus, bem como a cláusula aberta de direitos fundamentais. No controlo da constitucionalidade, e por influência do ordenamento norte-americano, a Constituição de 1911, na senda da Constituição brasileira, previu a figura do controlo incidental difuso da constitucionalidade, ou seja, qualquer tribunal passou a poder gozar da prerrogativa de controlar a constitucionalidade de uma norma jurídica num caso concreto.

   Com o Estado Novo de Oliveira Salazar, Portugal teria a Constituição de 1933, corporativista, nacionalista. Contrariamente ao que paira entre o senso comum, a Constituição de 1933 dispunha de um catálogo apreciável de direitos fundamentais, mantendo a laicidade do Estado que vinha desde o texto constitucional que lhe precedia. Entretanto, o exercício de determinados direitos, como as liberdades de reunião, expressão, associação, manifestação, encontrava-se regulado por leis infraconstitucionais, limitativas. Sabemos que o país conheceu um regime autoritário e repressivo sob a égide da Constituição de 1933, com todas as revisões subsequentes ao longo dos seus quarenta e um anos de vigência. A Constituição brasileira de 1937, por sua vez, acompanhou a ex-metrópole no caminho rumo ao autoritarismo - o Estado Novo brasileiro, de Getúlio Vargas, tão próximo ideologicamente ao Estado Novo português. O carácter fortemente autoritário distanciava-os dos fascismos puros, como o italiano. As semelhanças ficaram-se por aí.

      Passemos aos tempos mais recentes, sem prejuízo, todavia, da instabilidade constitucional brasileira que perpassou o século passado. Em 1974, o Estado Novo português chegaria o fim. A Constituição actualmente em vigor, a Constituição de 1976, elaborada pela Assembleia Constituinte de 1975, tornaria Portugal um Estado de Direito Democrático, não obstante o mesmo não ter sido atingido na versão original. Portugal manteve-se sob tutela militar até 1982, e só apenas em 1989, com a segunda revisão constitucional, é que o socialismo foi expurgado, conquanto persista no preâmbulo da Lei Fundamental. O Brasil vivia, desde 1964, num regime de ditadura militar, servindo-se da Constituição de 1967 para o efeito. Em 1985, a Ditadura Militar terminaria, após uma decadência evidente desde o início da década de 80. A Constituição brasileira de 1988, assentando na dignidade da pessoa humana, encontraria na Constituição portuguesa um modelo a seguir. Ambas dedicam extensos capítulos aos direitos fundamentais e sociais do indivíduo, à pluralidade da vida política e à organização democrática do Estado.

       Posto isto, percebemos como a história e a experiência constitucional, quer de Portugal e quer do Brasil, se cruzam. Não fomos e não somos imunes, reciprocamente, ao que do outro lado do Atlântico se cria, aos períodos de acalmia ou de agitação política. Os textos constitucionais são realidades políticas; exprimem conceitos políticos e ideológicos.

    Os seminários congregam os conhecimentos, brasileiros e portugueses, em matéria constitucional. Aproximam-nos. Este seminário, como tive a oportunidade de referir no início do artigo, teve a particularidade de ocorrer num momento conturbado do quotidiano político e social brasileiro. Algumas personalidades brasileiras estiveram presentes, como Aécio Neves e José Serra do PSDB, bem como José Viana, petista; outras optaram por recusar o convite, como Michel Temer, o líder do PMDB, que entrou em ruptura com o PT de Dilma Rousseff. Também Gilmar Mendes, magistrado do STF, compareceu. Do lado português, Pedro Passos Coelho, líder do PSD, Paulo Portas, ex-líder do CDS-PP, e Marcelo Rebelo de Sousa, jurista, professor de Direito Constitucional e actual Presidente da República, decidiram recusar o convite, manifestamente por motivos políticos - temem ficar associados aos movimentos favoráveis à destituição da Presidente do Brasil. Apenas reputados juristas lusos e professores de Direito participaram.

       A conferência esteve subordinada ao tema: «Constituição e crise: A Constituição no contexto das crises política e económica». As atenções, no entanto, recaíram nas personalidades envolvidas, algumas delas defensoras intransigentes do impeachment da Presidente Dilma (o clima de tensão foi notório, com manifestantes entoando frases provocatórias a José Serra), o que ofuscou, por assim dizer, o contexto académico de um evento que pretende agregar valores no âmbito do Direito Constitucional.