24 de junho de 2016

O 'Brexit'. (II)


   Desde 2010, salvo erro, que não publicava consecutivamente em dois dias. Todavia, nunca antes havíamos assistido à saída, que ainda não foi formalizada, e cujo processo levará vinte e quatro meses, no mínimo, de um Estado-membro do seio da União Europeia. A Europa e o mundo acordaram para a decisão inesperada dos britânicos, após todos os dados apontarem para a vitória do 'Remain' sobre o 'Brexit'. O impacto fez-se sentir, desde logo, nas bolsas europeias e na desvalorização da libra esterlina. De igual forma, os investidores em solo britânico temeram, e já há quem exija um acordo entre Bruxelas e Londres, tentando-se acautelar as posições económicas conseguidas no Reino Unido.

    Com o Tratado de Lisboa, de 2007/09, está prevista a saída de um Estado-membro. As formalidades terão de ser respeitadas. Nada impedirá, é importante que isto se diga, que o Reino Unido torne a aderir à União Europeia, cumprindo-se todo o moroso ritual de adesão. E a UE poderá celebrar um acordo com o Reino Unido, à semelhança dos que já existem entre a organização internacional e a Noruega ou a Suíça.

    Este referendo demonstra o predomínio do eurocepticismo das gerações mais velhas sobre o espírito europeu, que encontra maior acolhimento nos jovens. Os britânicos são nacionalistas, são proteccionistas. No primeiro artigo, enunciei alguns dos pontos de discórdia numa relação que desde o seu início, em 1973, foi tensa. Apesar de não ter ainda compreendido qual a expectativa dos britânicos quanto à desvinculação, provavelmente pensarão num plano b. Lideram a Commonwealth of Nations, são a quinta maior economia global, pertencem ao Conselho de Segurança das Nações Unidas e são, excluindo a Rússia, a maior potência militar da Europa. Desiluda-se quem vê aqui o fim daquela que foi a maior potência mundial até 1918 e a senhora de um vastíssimo império. A UE, que remonta a 1992, é apenas a herdeira de velhas comunidades que têm a sua origem no contexto europeu pós-II Guerra Mundial.

     A primeira baixa na UE deixa-nos motivos para apreensão. Avizinham-se tempos complicados. Esta decisão dos eleitores britânicos poderá desencadear processos semelhantes em alguns dos demais Estados que integram a UE. Em França, a extrema-direita já alude a um referendo assente nos mesmos moldes, bem como na Dinamarca. Temo que o 'Brexit' proporcione um choque com efeito dominó. Em contrapartida, o referendo evidenciou cisões dentro das fronteiras do Reino Unido. A Inglaterra e o País de Gales votaram maioritariamente pela saída; a Escócia e a Irlanda do Norte optaram pela continuidade. Os escoceses querem manter o vínculo à União, e as feridas secessionistas não ficaram saradas com o referendo pela independência, de 2014, no qual os eleitores, por uma margem não significativa, se decidiram pela permanência no Reino. Partidos políticos escoceses pretendem iniciar os trabalhos que levarão à realização de uma nova consulta popular. Pela Irlanda do Norte, há quem fale numa eventual reunificação com a República da Irlanda. A sobrevivência do Reino estará em causa, e não ficaria surpreso caso se opere uma desintegração entre as suas quatro nações constituintes.
     Pela Europa continental, verificando-se o êxito de movimentos secessionistas, países como Espanha, nomeadamente, não terão motivos para sorrir, embora determinados nacionalistas espanhóis vejam aqui a oportunidade de anexar Gibraltar a Espanha - o rochedo que está em mãos britânicas desde inícios do século XVIII.

     David Cameron demitiu-se no seguimento da decisão britânica pelo leave. Encarou-o como uma derrota pessoal. A campanha pela manutenção da permanência não convenceu os súbditos de Isabel II. Às relações bilaterais entre a República Portuguesa e o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, o 'Brexit' não comportará alterações. Persiste a velha aliança luso-inglesa, firmada em pleno século XIV, a mais velha aliança diplomática ainda em vigor, que certamente será recuperada à sua plena força. E conhecemos todos os condicionalismos do direito europeu que manietam a soberania dos Estados-membros. Portugal estará sempre, até que se decidisse a sair, vinculado aos compromissos que aceitou.

      O 'Brexit' terá repercussões na organização da UE e nas relações do bloco com países terceiros. Refrear-se-á, assim creio, a política de alargamento. Para o Reino Unido, será a chance de estimular uma reaproximação com os países com os quais mantém vínculos afectivos. A Austrália já afirmou manter-se ao lado da sua pátria-mãe.
      Algo é certo: amanhecemos numa Europa que não mais será igual.

20 comentários:

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    1. A ideia de uns "Estados Unidos da Europa" pairou na génese da construção europeia. :) Um dos sonhos sempre foi o de se criar um superestado forte.

      Julgo que ambos, UE e Reino Unido, sairão a perder. Na UE, porque se abriu um precedente. Um Estado soberano abandonou a organização. Como suster movimentos semelhantes? No Reino Unido, porque há nações que votaram massivamente na permanência, como referi (Escócia e Irlanda do Norte). A própria existência do Reino Unido estará em causa. O 'Brexit' veio reacender a discussão em torno da eventual secessão da Escócia.

      A UE colhe os frutos do centralismo de Bruxelas, da predominância da Alemanha (e da França, embora menos) sobre os demais membros, da política de austeridade, da ausência do espírito de entreajuda presente nos ideais dos pais fundadores das comunidades, por aí. É, de certa forma, um bater de porta à Alemanha. Os ingleses, e agora "ingleses" deliberadamente, porque a Inglaterra decidiu-se pela saída, encaram este dia como o dia da recuperação da independência. E nunca tiveram eles tantos entraves à sua soberania quanto nós!

      Os partidos tradicionais são europeístas.

      A UE tem de ser aquilo que é, nem mais, nem menos: uma organização supraestatal. Ponto.

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    3. Sim, tal como com a Catalunha. Se a Catalunha se desmembrasse de Espanha, para aderir à UE teria de passar por todo o processo e poderia nem aderir com um veto espanhol. Por maioria de razão, o mesmo se aplica à Escócia.

      Quanto à Irlanda, eu falei precisamente na união à República da Irlanda, ou seja, a reunificação irlandesa, que até faria todo o sentido. A Irlanda do Norte já passou, em momentos da sua história, por investidas secessionistas (veja-se o IRA).

      A maioria da população da Irlanda do Norte é católica, ainda que não seja uma ampla maioria. Provavelmente sentir-se-ia mais integrada com os irlandeses, que são católicos, do que no conjunto britânico.

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  2. Nem sei bem o que escrever, apesar de estar na dúvida qual seria o resultado do referendo, sinceramente estou para ver mo que essa mudança irá dar.

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  3. Pode ser que o povo britânico ainda venha a sentir na pele as consequências da sua decisão. Já se fala por lá de referendos à desunião interna (Escócia e Irlanda do Norte) embora me pareça impossível. Estaremos cá para ver os resultados.

    Gosto de ler as opiniões dos portugueses que defendem a saída de Portugal (tal como alguns partidos políticos inconscientes); quando recebemos milhões estava tudo bem, agora que temos de cumprir as nossas obrigações já não nos serve. Olhem para o Portugal de há trinta anos atrás e vejam se percebem as diferenças. Ah pois, existe quem só tenha memória no máximo para o dia anterior, voltar tanto atrás é um exercício completamente impossível.

    Abraço Mark... acho que expuseste bem o assunto.

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    1. Concordo contigo. Eu sou eurocéptico, mas há dias, e não sei se no blogue ou em outra plataforma, fiz menção exactamente aos fundos estruturais de que Portugal beneficiou e que permitiram transformar um país maioritariamente agropecuária num país desenvolvido. Não podemos ser injustos. Agora, esta UE não se assemelha à CEE de 1986, com uma Alemanha dividida e em que apenas a RFA pertencia à comunidade. A UE desvirtuou-se do seu propósito primitivo. Não passa de um bloco de domínio alemão sobre os demais países europeus.

      Um abraço. Muito obrigado, Ribatejano.

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  4. Bom dia
    Não sei política, mas se fosse inglês teria votado como a maioria o fez.
    Esta europa não serve, não é justa nem promove a igualdade de direitos de todos os europeus.

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    1. Bom dia, Luís.

      Concordo em absoluto com a última afirmação.

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  5. Sinceramente, acho que muita água ainda vai passar por debaixo desta ponte e acho também que, de alguma forma, ao final. o Reino Unido permanecerá na CEE.

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    1. Não creio, amigo. O referendo foi convocado. O povo britânico foi contundente na decisão. O Reino Unido irá abandonar a UE. Poderá celebrar acordos.

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  6. Excelente reflexão, Mark. Bastante elucidativa. Gostei do enfoque nos critérios legalistas. Efectivamente, antes do polémico Tratado de Lisboa que a União Europeia não previa expressamente a saída de um Estado-membro.

    Eu julgo que os britânicos não tiveram a inteira percepção da consequência do seus votos. Terão de abandonar a UE ainda sem saber o que fazer a 43 anos de história em comum. Haverá alternativas. Espero que as saibam aproveitar. Há mais vida para além de Bruxelas. Estou a ser simpático com aqueles hereges, heheh.

    Cumprimentos.

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    1. Obrigado, Gabriel.

      Sim, segundo consta, alguns ter-se-ão arrependido, inclusive.

      Hereges... Não diga isso. :) Em boa verdade, o curioso é que a cisão com a Igreja Católica surgiu na sequência de uma relação adúltera e não de discordâncias teológicas.

      Cumprimentos.

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  7. O Cameron quis ser popular e saiu-lhe o tiro pela culatra.
    A culpa é de todos o lideres europeus que têm tornado a pensamento Europeu num pensamento egoísta.

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    1. Segundo consta, o referendo não será vinculativo, embora, pelo que me informei, pois não sou especialista em direito britânico, o ordenamento inglês preveja referendos vinculativos, tal qual os temos em Portugal.

      O que se passa é que, como referi expressamente no meu artigo, o Tratado de Lisboa prevê a desvinculação de um Estado-membro. Ora, nesse caso, e ainda que o referendo fosse vinculativo, a iniciativa terá de partir do Estado-membro junto do Conselho Europeu.

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    2. vinculativo ou não, já fez estragos. a libra esterlina caiu para o valor mais baixo dos últimos 31 anos e com ela levou todas as praças europeias que, paradoxalmente ou não, foram ainda mais cruelmente fustigadas se as compararmos ao ftse londrino. veremos como se movimenta o mundo financeiro nesta semana.

      e com pena digo que a mais velha aliança diplomática de pouco servirá.

      vivemos tempos tumultuosos: as instituições ditas tradicionais parecem provocar apenas descontentamento e desconfiança, ao passo que os eleitores vão mostrando afastamento e desconhecimento cada vez mais profundo da matéria política. mostrou-se que as regiões mais dependentes de vínculos com a ue foram as que mais votaram no leave. outros assumiram que votaram mas que nem perceberam que ao votar a favor da saída da ue estavam a fazer com que tal acontecesse (!). e pelo que foi mostrado pelas tendências dos motores de busca logo após a divulgação dos resultados o reino unido procurou 'o que significa abandonar a ue?' e 'o que é a ue?'. com eleitores descontentes e desinformados desta maneira que não se subestime o regresso em força dos radicalismos. as eleições dos eua serão um teste decisivo. já a união europeia parece insistir na mesma rispidez, dizendo que quer uma saída rápida. e ainda temos as possíveis sanções a portugal e espanha.

      os dias futuros serão, no mínimo, interessantes.

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    3. Olá, destilares, e obrigado pela tua opinião.

      Exactamente. Aqui pouco importa se é ou não vinculativo, até porque, informalmente, será vinculativo, pois a soberania reside no povo inglês e os governantes devem actuar em conformidade com a vontade maioritária dos cidadãos que os elegem.

      A referência à aliança luso-inglesa é uma hipótese. Nos próximos dois anos, o Reino Unido, à partida, iniciará o processo de desvinculação, procurando-se um acordo com a UE. Ora, é natural que as relações entre Portugal e o Reino Unido passem pelo dito acordo, ou seja, por intermédio da UE, o que não obsta a que possamos recuperar a aliança em determinados aspectos.

      Sim, sim. Eu li algures que há cidadãos britânicos arrependidos; afirmam que votaram na saída porque jamais pensaram que esta pudesse levar vantagem sobre a permanência. Um argumento um pouco descabido e certamente muitíssimo leviano.

      Os nacionalismos ressurgirão, como, aliás, mencionei. Em França, na Dinamarca, no seio do próprio Reino Unido. A Europa está num impasse. A UE falhou, falhou rotundamente. Inclusive no propósito de manter a estabilidade no espaço europeu. Talvez rumemos para pequenos conflitos que poderão, a médio prazo, transformar-se em algo pior.

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  8. O pior do que aconteceu nem foi a saída, nem a desvalorização da moeda, nem a preocupação com a "rapidez" com que a França [que deve ser a próxima a sair caso ganhe a Marine Le Pen] e a Alemanha querem pôr o Reino Unido fora da União Europeia.

    O que me está a deixar mesmo preocupado é os crimes de ódio, contra emigrantes, outras etnias e agora também aos gays, que já ultrapassam em mais de 50% o que era habitual antes disto acontecer. Ainda só se passaram meia dúzia de dias. Se por acaso houver algum atentado terrorista no Reino Unido, vai ser uma calamidade que nem consigo imaginar.

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    1. A xenofobia, sobretudo, foi um dos factores que proporcionou o 'Brexit'.

      É realmente preocupante. Eu assisti a um vídeo por aí em que filmavam precisamente uma cena de racismo no Reino Unido já depois do anúncio formal do resultado do referendo.

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