13 de junho de 2016

A vitória do ódio.


   Nos contos de fadas da nossa infância, o mal não singra e o bem acaba por vingar. São tentativas frustradas de nos convencer de que habitamos num mundo justo e bom. À medida em que crescemos, vamos encarando essas investidas com um olhar complacente, em igual proporção às injustiças de que vamos tomando conhecimento. Não, o mundo não é um local para brincadeiras. Aqui sofre-se, chora-se, clama-se por um deus que não nos ouve. Curioso verificar que choramos à nascença, suscitando o interesse da nossa progenitora, é certo, numa reacção que nos acompanhará pela vida.

   Os maus não sofrem qualquer castigo. Às vezes, escapam; ou não será na maioria das vezes? Somos compelidos a confiar, uma vez mais, na balança da dita divindade que vela pelo nosso bem-estar e julga as condutas que se desviam do bom caminho. Quando, por fim, somos confrontados com a inevitabilidade da nossa solidão, numa selva regulada por leis, desesperamos. Nascemos, vivemos e morremos sós, sem auxílio possível, provendo à nossa subsistência, lutando pela sobrevivência.

   Centenas de filósofos, de teólogos, de homens da ciência e de simples leigos tentaram, pelos tempos, explicar algo aparentemente tão simples: por que sofremos? É uma fatalidade ou um fruto da nossa irresistível tendência egoísta? Não apenas amarguramos como promovemos a dor pelos que nos rodeiam. Somos, em suma, seres amorais, que se auto-censuram. Carecemos de refrear os nossos mais pérfidos instintos. Quando esse exercício não é conseguido, extravasamos o que de pior reside no nosso inconsciente, praticando actos indignos de uma espécie que se considera racional e ponderada.

    Está criado o momento para nos lastimarmos. Condenamos os monstros que alimentámos com a nossa fome de domínio. É essa a história da humanidade. Um dicionário de uma única palavra, uma enciclopédia de um mesmo fito.

     Aceito que lhe chamem visão terrífica. É aquela em que sou compulsivamente forçado a acreditar.

14 comentários:

  1. Bela reflexão. Mas não tenho tanta certeza se precisamos refrear nossos instintos tanto assim, ou se para alguns da sociedade isto é mais vantajoso do que para a massa que compomos.
    Abraços.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não só precisamos de os refrear como deveríamos refreá-los ainda mais. Seria vantajoso para todos viver num mundo um pouco melhor.

      um abraço.

      Eliminar
  2. De um brilhantismo ímpar, em particular este parágrafo: "Somos, em suma, seres amorais, que se auto-censuram. Carecemos de refrear os nossos mais pérfidos instintos. Quando esse exercício não é conseguido, extravasamos o que de pior reside no nosso inconsciente, praticando actos indignos de uma espécie que se considera racional e ponderada."

    Tenho a mesma percepção: Somos verdadeiros animais, ou melhor, animais que se proclamam racionais! Lamentável mesmo!
    Persistimos ainda em viver como nos primórdios da Idade Média, ou seria nos tempos das cavernas?

    Beijão

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O humano consegue ser pior do que os demais animais, que são desprovidos de razão. É um conhecido cliché, mas o sentimento que domina na nossa espécie é tudo menos um. Antes o fosse.

      Eu iria "às cavernas", mesmo. Porque já não vivemos tão obcecados com o céu e o inferno, tão sob a influência nefasta dos preceitos religiosos como na Idade Média, embora eles subsistam. Somos mais livres, e por isso mais responsáveis, dado que a liberdade acompanha a responsabilidade pelas nossas acções.

      um abraço grande.

      Eliminar
  3. Li algures que o Daesh está super feliz por ter contratado um Gay dentro do armário... lololol

    Muito triste, mas quantos gays morrem por esse mundo fora diariamente e ninguém quer saber?!

    A quantos gays a Europa abriu as suas portas aos ditos migrantes?!

    Nunca saberemos os verdadeiros motivos, mas a realidade é que até às eleições americanas, muita coisa irá acontecer...

    Grande abraço amigo

    P.S - Quantos Je suis Gay viste nas redes sociais?!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Na verdade, o massacre lá terá o seu aproveitamento político. Não sou conspiracionista, longe de mim, mas Trump talvez ainda retire os seus dividendos.

      Nenhum. Mas vi umas fotos temporárias com umas bandeiras coloridas e muitos arco-íris.

      um abração.

      Eliminar
  4. Infelizmente tenho de concordar consigo. Estamos cada vez mais insensíveis às necessidades do outro. Estes selvagens do Daesh mereciam que a comunidade internacional os bombardeasse até que se rendessem de vez. Sabe que sou conservador, mas não deixo de sentir pena daquelas pessoas que morreram. Para mim, tanto faz se gostam de mulheres ou de homens. Eram pessoas e estavam nas suas vidas.

    Cumprimentos.

    ResponderEliminar
  5. A ironia começa precisamente no primeiro ponto do teu texto, sabes? Os contos originais não tinham finais assim tão felizes. Alguns na verdade, são bem macabros na sua história original.

    No caso da Cinderella, as irmãs malvadas cortam os pés (uma corta os dedos dos pés, outra corta o calcanhar), para que os pés caibam no famoso sapatinho. No fim, a Cinderela ainda mata a Madrasta Má, ao partir-lhe o pescoço.

    Já no caso da Branca de Neve, a Rainha Má não quer apenas manda matar Branca de Neve, ela quer também o coração e o fígado de Branca de Neve, para os comer. O príncipe encontra Branca de Neve, pensando que ela está morta. Ela não acorda com um beijo. No entanto, o príncipe deixa cair o caixão e o pedaço de maçã que estava presa na garganta da Branca de Neve sai pela boca e ela acorda. O príncipe e a Branca de Neve casam-se e convidam a Rainha Má para a cerimônia. Os dois forçam a vilã a usar sapatos incandescentes e obrigam-na a dançar até morrer.

    E existem muitos mais casos. Ainda ontem falei com um amigo sobre a verdadeira história da Alice no País das Maravilhas.

    O que aconteceu em Orlando foi horrível. Pessoas, de várias etnias, gerações e provavelmente convicções religiosas e políticas, estavam num local, a divertirem-se. a viver um momento de alegria. Chegar de repente um homem, que muitos apelidam de "aquele que está a fazer o trabalho de Deus" - suspiro - e provocar aquela chacina, não tem descrição possível. Ninguém tem o direito de tirar a vida a ninguém. Nenhuma religião, que eu conheça, diz em algum ponto "mata os que pensarem diferente de ti, da tua convicção, pois tu é que estás certo e os outros errados."

    O que ainda me perturbou ainda mais foi a enxurrada de comentários homofóbicos, também portugueses, nas redes sociais. Uns a defender o atacante. Outros a criticarem as pessoas que decidiram prestar uma homenagem, por mais pequena que seja, às vítimas do massacre. É terrível e muito triste.

    Quando pensamos que o preconceito e a homofobia estão a diminuir, eis que de repente, qual erva daninha, eles brotam dos corações maus e enegrecidos de muitas pessoas. Somos todos diferentes. Mas, antes de sermos Charlie, Orlando, Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transsexuais, Intersexuais, etc.... A verdade é que Somos Todos Humanos.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sphinx, eu mencionei «nos contos de fadas da nossa infância». Ora, os contos de fadas da nossa infância, ainda que não fossem, pelo que dizes, não conheço, os originais, não terminavam mal para os protagonistas. Os antagonistas sofriam o devido castigo e os príncipes e as princesas viviam... "felizes para sempre". São estes os contos da nossa infância. O que pretendi foi, tão-só, desconstruir a imagem que nos vendem desde há décadas a esta parte.

      Sim, foi um massacre inqualificável. Eu não diria que haja uma religião que promova estas barbáries, mas se passares uma vista d'olhos na Bíblia, no Corão, etc., encontrarás passagens que estimulam ao ódio. É evidente que temos de fazer uma interpretação actualista daqueles escritos, mediante que eles representam o estágio de desenvolvimento da humanidade aquando da sua elaboração, mas nem por isso deixam de nos revelar um deus vingativo, cruel, tal qual Saramago, e bem, observou.

      Felizmente, não li comentários a defender o facínora. Li, sim, críticas ao Campeonato da Europa e ao parco destaque televisivo ao massacre, como se as pessoas que gostam de futebol e vibram com o Euro estivessem menos consternadas com o sucedido em Orlando. Pessoalmente, creio que não é através de mudanças de foto, e outros que tais, que demonstramos o que sentimos. Eu escrevo sobre o que mexe comigo. Prova é que este artigo foi claramente inspirado no atentado.

      um abraço.

      Eliminar
    2. Sim, eu sei que mencionaste isso. apenas quis partilhar contigo como acabavam na verdade os contos de fadas da nossa infância. ;)

      Abraço :3

      Eliminar
    3. Os da nossa infância acabam bem; os contos nas versões originais é que, segundo contas, nem por isso. :)

      um grande abraço, Sphinx.

      Eliminar
  6. Belíssimo texto Mark, e já viste que a história da humanidade é capaz de ter pontos menos positivos do que aquelas que nos fazem olhar com olhos de ver e sentir aquela gratidão por estarmos vivos? Facilmente quebramos, e aceitamos o negativismo que circunda a sociedade e a mentes fechadas de certos povos.

    Somos seres humanos, mas com falhas e depois o resultado está à vista.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. A história da humanidade é um manual de maldades. Pergunto-me como é possível que alguns julguem o ser humano como sendo bom por natureza, sendo que a «sociedade o corrompe». E quem é o actor no palco da sociedade? Não é o homem (aqui subentendido como a humanidade)? Somos maus e egoístas. Um primeiro passo para a mudança será admiti-lo.

      Eliminar