28 de fevereiro de 2016

O cartaz da discórdia.


      Dois mil e alguns anos sobre o seu nascimento, Jesus Cristo continua a provocar as mais díspares reacções em crentes e em não-crentes. A última polémica surgiu com a divulgação, nas redes sociais, de um cartaz alusivo, ou comemorativo, de um partido político pela promulgação do regime que estatui a adopção por casais compostos por membros do mesmo sexo. Conhecendo nós o poder que a internet tem, rapidamente se propagou pela web todo o tipo de apreciações, umas mais religiosas, outras cujo foco incidiu na liberdade de expressão e no humor. O Bloco de Esquerda não calou, a Igreja Católica não consentiu.

      O cartaz, como tive a oportunidade de dizer, é provocatório. Poderia ainda compreendê-lo num contexto reivindicativo. Não estamos perante um desses casos. O Presidente da República promulgou a lei após esta ter sido confirmada na Assembleia da República. A adopção por casais compostos por membros do mesmo sexo é já uma realidade jurídica no nosso ordenamento. Ainda que tivesse sido essa a motivação, há quem obste à adopção por casais compostos por membros do mesmo sexo alegando outros motivos que não os religiosos. O Estado Português e a Igreja Católica, felizmente, não se confundem como noutros tempos. A Igreja não aceita o instituto, o Estado aceita-o. Não podemos forçar uma instituição a aceitar o que queremos. A Igreja não contempla no direito canónico o casamento entre pessoas do mesmo sexo. É um direito seu, como é um direito seu não aceitar a adopção em semelhantes moldes.

          Jesus, independentemente de qual religião, é uma figura religiosa, central no Cristianismo. Utilizar a imagem e o nome de Jesus num cartaz que versa sobre uma matéria fracturante suscitaria sempre controvérsia. Houve quem se sentisse ofendido. Temos de respeitar a sensibilidade alheia. Eu, que não sigo qualquer religião, não gostei que se tivesse associado Jesus à política e à produção legislativa. O que Jesus representa merece o respeito de todos. E o respeito não se confunde com a adoração.


       Teologicamente, e para quem tem fé, excluindo aqui a verdade histórica, que é sempre difícil de apurar faltando-nos escritos que não sejam vincadamente religiosos, podemos ainda arguir uma imprecisão e incorrecção do cartaz, que não é inédito - o BE apenas fez uso de uma frase que já existia. Jesus não teve dois pais. José não foi pai de Jesus. À luz do nosso actual entendimento, José terá sido um tutor. Um padrasto. Jesus, para os católicos e para outras congregações cristãs, foi concebido miraculosamente. Para os católicos, pela graça do Espírito Santo, uma das pessoas da Trindade, a força activa de Deus, que desceu sobre Maria, fecundando-a. A virgindade de Maria, aliás, antes e após o parto, é um dogma da Igreja. José, sendo um homem bom, alertado em sonhos pelo nascimento do Filho de Deus que Maria daria à luz, criou o Menino, embalou-O e educou-O. Jesus respeitava-o, e Maria, em algumas passagens, como em Lucas 2: 48, refere-se a José como pai de Jesus. O que estaria ao alcance de Maria dizer a um menino de doze anos, que ainda não havia sido baptizado, senão que José era seu pai? Se entendermos que pai também é o que cria, numa interpretação extensiva do conceito de pai, José seria pai. Mas Jesus teve sempre um pai. O Pai. Não teve dois pais. Desviando-me um pouco da verdade teológica, na verdade biológica, todos temos um pai e uma mãe. Não dois pais ou duas mães. Uma criança adoptada por um casal do mesmo sexo, sim, terá dois pais ou duas mães, em virtude das circunstâncias e de a linguagem humana ser pobre para distinguir conceitos. Não é tudo igual. Essas crianças, no limite, terão uma mãe, caso sejam acolhidas por dois homens, ou um potencial pai, porque foram geradas, certamente, por um espermatozóide, que não é pai, sim, mas que advém de um ser humano do sexo masculino, caso sejam educadas por duas mulheres.
           Entendendo que José foi o pai de Jesus e que Jesus resulta de uma relação sexual, é filho de José e não filho de Deus. No limite, terá sempre um e só um pai.

         Noutras religiões abraâmicas, como o Islamismo e o Judaísmo, a compreensão de quem foi Jesus é substancialmente oposta. Para o Islão, Jesus foi concebido miraculosamente, não participando, contudo, da divindade. Foi um profeta, como Maomé e como tantos outros aceites pelo Cristianismo, mas era um homem, sem natureza divina. No Judaísmo, com excepção de algumas correntes minoritárias, Jesus é entendido como um apóstata. Se considerarmos o Cristianismo e o Islamismo, veremos que boa parte da população da Terra aceita Jesus e os seus ensinamentos, o que O reveste de um simbolismo ímpar na história da humanidade.

        O cartaz foi uma infeliz ideia. Uma afronta desnecessária num partido que vai crescendo de acto eleitoral em acto eleitoral. Eu julgava que as responsabilidades acompanhavam a representatividade majorada na Assembleia da República. Foi um equívoco da minha parte. O Bloco mantém a mesma postura infantil que lhe conhecemos. O que é lamentável. Tem de deixar de lado o comportamento de imberbe garoto rebelde. Este tumulto foi a primeira manifestação do fim da condescendência com as atitudes levianas do partido. E os seus dirigentes reconheceram o erro. Esperemos que tudo fique por aqui.

16 comentários:

  1. Gostei muito deste teu texto,

    Escreves cada vez melhor, quero dizer com isto que gosto mais desta tua escrita. É uma escrita mais ligeira, mas que nos deixa a pensar... Tens o teu ponto de vista e que eu respeito...

    Eu como Cristão deveria subscrever cada letra que escreveste :) Mas, como não votei na Esquerda, não me apeteceu entrar em conflitos ;)

    Grande abraço amigo Mark

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    1. Achaste ligeira? Haja alguém que considere o que escrevo "ligeiro"! :) Eu não considero este artigo assim tão ligeiro.

      Bom, o PS e o PCP nada têm que ver com esta infantilidade do BE.

      um grande abraço.

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  2. Excelente contextualização como sempre Mark. Eu nasci e fui criado dentro da religião Católica e fui um fiel militante por anos. Hoje não professo qualquer religião. Tenho minha forma própria de ter fé e tenho o meu Deus próprio. Me considero agnóstico e não vejo qualquer problema em usar símbolos religiosos em questões sérias onde a religião não devia se meter e no entanto se acha no direito de se meter. Então é o tal do "chumbo trocado não dói"! Vejo uma exagerada valorização dos tais sentimentos feridos. Eles só são válidos para um dos lados. Pq os q não professam fé não podem se manifestar da mesma maneira e eles podem? Eles ironizam e ridicularizam qdo não agridem quem não os seguem ... então ...
    Não se metam no q não devem, guardem sua fé para si mesmos e respeitem quem pensa diferente ... Tudo ficará no seu devido lugar e ninguém vai precisar usar as imagem dogmáticas deles ... #simplesassim ... Vivas ao Charlie Hebdo.

    Beijão

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    1. O Paulo trouxe à colação um argumento interessante: a Igreja sentiu-se ofendida pela utilização indevida da representação de Jesus, todavia sente-se no direito de se imiscuir na política legislativa do Estado. Muito pertinente. :)

      um grande abraço, amigo, e obrigado pela sua perspectiva lógica.

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  3. Concordo com a sua análise. A esquerdalhada do Bloco pensou que a blasfémia passava em vão. Enganou-se. Brincou com os sentimentos de mais de 85 % dos portugueses. Não respeitou a fé das pessoas. Gostava de saber se teriam o mesmo resultado nas eleições se a votação fosse hoje. Até já tremem que o projecto de lei de homicídio não passe no Parlamento! Pois!

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    1. Foi uma infeliz ideia. Já o reconheceram. Não empolemos mais a situação, que já de si foi desagradável. :)

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  4. Gostei do texto, tu escreve muito bem.
    Vou voltar aqui mais vezes

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  5. Eu já tive oportunidade de dar a minha opinião numa rede social, a propósito disto. E isso por causa da forma como um padre lidou com otema durante uma missa, pela alma do meu irmão. É certo que quem criou o cartaz tinha uma ideia na cabeça e na prática, a coisa saiu com outros contornos. Foi isso que pensei quando vi o cartaz. Serem julgados na praça pública, sem sequer ser dado o direito de perdão, é que acho mal, sinceramente. Então quando estava na missa e só faltava ao padre dizer que eles mereciam ser ex-comungados pelo que haviam feito, alimentando o ódio através das suas palavras, contra os casais do mesmo sexo e assim, aquilo deu-me uma enorme vontade de interromper a missa e dizer algumas, poucas e boas ao padre. Afinal, ele como figura de Deus, um exemplo a seguir, não deveria ser o primeiro a pensar que os outros poderiam ter cometido um erro e que se arrependidos, mereciam uma segunda oportunidade? Afinal, errar é humano... E ja agora, quem o padre pensava que era, para julgar alguém? Não se diz que só Deus tem esse direito?

    São este tipo de coisas que me fazem ter uma perspectiva muito pessoal a respeito de crenças e fé.

    Abraço :3

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    1. A Igreja tem um longo historial de intolerância. Nós sabemos da influência que os padres tiveram, e ainda têm, junto das pessoas. Hoje em dia, o mesmo ainda se verifica nas pequenas localidades do norte e do interior, sobretudo.

      Se esse padre revelou uma incapacidade para perdoar, está em dissonância com os ensinamentos de Cristo. Provavelmente faltar-lhe-á a vocação. Não será caso único na Igreja, certamente.

      Eu tenho fé na palavra de Cristo e em Deus. Perdi a fé nos homens, e, num assomo "protestante", não aceito quaisquer intermediários na minha relação pessoal com Deus.

      um abraço. :)

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Olá, Tiago.

      Precisamente. Foi uma provocação, e as provocações não são toleráveis. Eu não as tolero, venham de onde vierem.

      A Igreja pode ser, e é, alvo de críticas. Não me oponho a isso. Deixei bem claro que não concordo, sim, com a utilização de uma representação de Jesus. Eles sabiam que feririam a susceptibilidade de católicos e de não-católicos, agnósticos, protestantes... Jesus Cristo transcende a própria religião, seja ela qual for. Se o fizessem com uma figura de Igreja Católica ou de qualquer outra religião, seita ou congregação, nada teria a dizer.

      um abraço.

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  7. A Igreja em vez de entrar em pânico histérico pela ligação à adopção, devia aproveitar para doutrinar, e explicar donde saiu esta história dos "dois pais".

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    1. Eu creio que a "história dos dois pais" saiu de visões opostas sobre o que representou José para Jesus. Para uns, foi pai; para outros, onde me incluo, foi o marido da mãe, o homem que O criou.

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  8. Eu achei piada, não podia deixar de achar, até que as pessoas ficaram indignadas quando há tanto para ser feito e não é um cartaz que deveria de captar as atenções das pessoas e sim a mensagem, enfim...todos pecamos e muitos o fazem em nome de Deus e de Jesus Cristo, hipócritas, diria eu.

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    1. E a Igreja tem muito pecado. Séculos de pecado.

      Sim, são polémicas propagadas pela internet. Mais uns dias e ninguém se lembra.

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