5 de novembro de 2015

In memoriam.


    No último domingo, fui ao cemitério. Talvez por ser Dia de Todos-os-Santos, talvez porque necessitava de um contacto qualquer com familiares que já cá não estão. A maioria deles repousa no mesmo, facilitando em certa medida essas visitas pouco frequentes, pela disponibilidade, pelas recordações que pretendo evitar, pelo carácter algo sombrio de se percorrer aquelas ruas circundadas por lápides antigas, jazigos ao abandono, sepulturas anónimas. O silêncio é apaziguador, quase infinito, perturbado por algumas pessoas que passam; trabalhadores camarários, sobretudo.
     Não pedi a chave do jazigo à avó. Bastar-me-ia depositar umas flores, rezar (não necessariamente as orações católicas, ainda que seja inevitável benzer-me). Há quem sinta a presença dos que o amaram, uma paz. Nada sinto. Em verdade, ali jazem os seus despojos mortais, revelando cruamente (e cruelmente...) o que somos: uma massa disforme que só sobrevive na memória e em suportes criados pela tecnologia. Na falta desses meios, não fosse o registo de nascimento, a certidão de óbito e os contratos que celebrámos atestando a nossa existência, seríamos um algarismo na imensidão das estimativas.
     Como acontece com todas as solenidades pelas quais se pretende honrar ou homenagear alguém, o Dia de Todos-os-Santos e o Dia de Finados, sendo que este é especialmente dirigido às visitas às necrópoles, não deixam de encerrar em si certa hipocrisia, considerando, não obstante, que há sempre mérito na vontade em lembrar um ente que faleceu. Acredito que o mais importante seja o carinho que se tem, as lembranças que se guardam.
      Andei durante algum tempo por lá. É enorme. Não senti que tenha cumprido um dever, pelo contrário, que a minha circunspecção não permite que os esqueça.
      Reservei os momentos finais para conhecer a capela, bonita, intimista, a meia-luz, com um Cristo ao fundo, sofrendo, na cruz. Detive-me à Sua frente e falhei-Lhe directamente, sem rodeios e sem palavras previamente construídas. E senti que me escutou. Revelei-me, a ponto de perceber que conhecia o que ainda não houvera dito, murmurando. Sem intermediários. Eu e Ele.

      Nunca fui um homem devoto. Crente, sim, passando por crises que me levaram a desconfiar de Deus, por sentir que habitamos um lugar terrível e injusto, sem mais. Na necessidade, pela fraqueza, não nego, de me justificar e de me confortar, motivar, procuro-O.
       Estou a aprender a não me sentir mal ou iludido por o fazer.

17 comentários:

  1. Eu preservo e não deixo de reverenciar meus queridos que me precederam. Nada de cunho religioso ou hipócrita mas, uma justa lembrança e homenagem à memória daqueles que foram importantes em minha vida. Como estava viajando nos dias 01 e 02 antecipei e homenagem e fiz em 25/10.

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    1. Sim. Não houve nada de religioso nas minhas orações.

      abraço.

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  2. Não vou ao cemitério há dois anos, quando foi um funeral. Ando para ir lá há uns meses, mas ainda não reuni ou coragem ou ter convencido a minha mãe a ir comigo....

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  3. «... porque tu és pó e ao pó retornarás» (Génesis 3: 19)

    Não se atormente, é a lei da Deus.

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    1. O que não obsta a que possamos sentir a falta dos que amamos, conquanto seja, pegando nas suas palavras, "a lei de Deus", ou estarei errado? :)

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  4. Já é bom teres tido a iniciativa de ires até e rezares à tua maneira :)

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    1. Jamais esquecerei as orações que a bisavó me ensinou. :)

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  5. Vou 2 ou 3 vezes por ano quando os meus pais me levam. Acho que nunca fui no dia dos finados.
    Tenho muitos "próximos" no cemitério mas os que mas me custam, anos depois, são o duma priminha que morreu com doze e dois amigos da minha idade falecidos prematuramente, os três em acidentes de viação.

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    1. Eu costumo ir só. Ninguém se prontificaria, presumo.

      Mortes prematuras sempre perturbam mais. Como se um ciclo fosse bruscamente interrompido.

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  6. Mark no passado domingo fui com a minha mãe levar umas flores à campa da minha avó, e por regra fazemos isso de x em x tempo, não como uma obrigação mas como uma manifestação de um afeto que já não nos é possível de demonstrar de uma outra forma...vendo bem as coisas era desnecessário, mas sempre que lá vamos, o dia muda, como o simples entrar por entre aqueles portões de ferro a perder a cor verde fosse um portal para outra realidade.

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    1. Eu também procuro esse contacto, embora saiba que eles, a existirem em uma outra dimensão, não estarão por lá. Ainda assim, acredito que se sintam acarinhados com estas demonstrações de afecto e de preocupação em nos dirigirmos ao local em que foram sepultados.

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  7. Gostei muito deste post, tão intimista. Que tenhas muitas mais conversas com Ele, ou com outros. Desde que te sintas bem e fiques melhor, é o que importa. ^^

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    1. Durante algum tempo tive conflitos entre a Racionalidade e Deus. Percebi que se conjugam na perfeição. Deus não se explica; ou se sente, ou não.

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  8. Para mim a partir pior tem sido o "após" e perceber que com a idade as pessoas que nos habituamos a ver vão desaparecendo... e nós vamos ficando, até ficarmos sozinhos :) isso é o que me assusta :)

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    1. Sim. E antes de partirem, vão envelhecendo. Eu lido mal com a deterioração dos que estimo. Daí que prefira partir primeiro. Há dores com as quais presumo não vir a saber lidar.

      Não hás-de ficar sozinho. :)

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    2. Corrijo: "a parte pior" - é o que dá a pressa a escrever.

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