31 de outubro de 2015

O Pão por Deus.


   Quando os garotos subiam as ruas íngremes de paralelepípedo cinzento, húmido do orvalho de Outono, arredavam os seus medos. Por aquelas horas, sabiam-se os donos da aldeia, fazendo seu cada beco, o antigo pelourinho do sítio, o pátio da banca do Senhor João, que por tantas vezes os presenteava com figos sempre que, vindos da escola, por lá passavam.

    Martinho avisara atempadamente a avó, lavadeira, mulher a quem as moças instavam por conselhos, tornando a velha senhora no oráculo de Figueira da Luz, do seu fito para a noite de Todos-os-Santos. A pele das suas mãos mantinha notável brilho e maciez. Encontravam-lhe a alma, todavia, no olhar quebrantado, que denunciava uma vida que não conhecera sonhos de menina. Não havia quem a enganasse nos dinheiros. A sua argúcia impunha deferência e admiração.

     Corriam desalmadamente sob o signo da lua cheia, batendo de porta em porta, misturando a crendice com a pândega própria de miúdos que tudo quanto conheciam estava nos limites do lugarejo onde nasceram. Não percebiam a fome, os castigos, tareias, não enquanto houvesse casa a salvo do peditório.
     As trouxas, delicadamente cosidas pelas mães e avós, guardavam os doces e os frutos das oferendas. Martinho sustinha a sua, farto de orgulho, costurada pela avó, com o bordado de fio de linho azul. Ostentava-a com cuidado, como uma representação material do carinho daquela mulher a que nem o cansaço inibia de o sentar no seu colo, de lhe afagar o cabelo, de beijar a sua bochecha sarapintada.
        Que na sua casa havia carência de bens, mas fartura de afectos.

21 comentários:

  1. Outro dia conversando com uma amiga, surgiu uma ideia que vai de encontro ao teu texto, muitas vezes, na busca do que acreditamos ser o melhor acabamos por nos afastar do que realmente importa. A carência de bens é algo muitas vezes difícil e penoso, mas a carência de afetos nos mutila a alma e deixa cicatrizes profundas dos quais muitos nunca mais irão se recuperar.

    Acredito que seja sempre muito importante, nos dias bons e nos dias não bons, durante nossa caminhada sempre dar umas olhadelas para trás, para que nunca nos esqueçamos das coisas que realmente nos importam! :)

    Obrigado por esse texto tão especial, muito bonito e que praticamente funciona como um portal a uma outra época... impossível não ver a cena que você tão bem descreveu!

    Abração!

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    1. Olá, amigo Latinha.

      As feridas que a falta de afecto deixam não são facilmente cicatrizáveis. Falo pelo que li, vi, e não por conhecimento próprio, felizmente. E quando se cresce, o que se lembra é o carinho, ou a falta dele. Como se as dificuldades económicas nada fossem perto de um gesto de ternura.

      Eu tenho um passado bonito em criança. Frequentemente a ele recorro.

      Obrigado, amigo. :)

      grande abraço!

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  2. Que nostalgia que me fizeste ter em relação ao Pão de Deus :)

    Grande abraço amigo Mark

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    1. Sabes, lembrei de ti à medida em que escrevia. Idealizei um cenário do interior do país e discorri. :)

      abraço grande, amigo Francisco.

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  3. Sempre gostei mais do Halloween, talvez porque entre o pão que Deus dá e as guloseimas que as Bruxas oferecem sou mais tentado às Bruxas :-p

    Belo texto! E "fechas" com chave de ouro, É preciso dizer mais alguma coisa? Sim, estava eu nas compras quando ouço "Vision of Love" da tua estimada Diva Mariah Carey e lembrei-me de ti!

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    1. O Halloween tem a sua graça. Seria giro misturar um pouco de cada tradição, sem as descaracterizar. :)

      Oh, que engraçado. "Vision of Love", um clássico. O seu primeiro single. Há imenso tempo que não a ouço.

      Obrigado, Limite.

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  4. Está um texto muito bonito. Gostei! ^^

    Abração :3

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  5. "As trouxas, delicadamente cosidas...", anos antes de serem substituídas pelos sacos do "Continente".
    Um texto muito bonito, Mark. Largaste a toga e soltaste o coração!

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    1. É provável. Não situei no tempo; creio que é adaptável.

      Obrigado, Goody. Não é inédito. Escrevi prosa ao longo dos anos. Se recuar a 2010, 2011, metade do que escrevia era prosa. Aprimorei certa versatilidade. Sinto-me bem a escrever crónicas. :)

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  6. Não te conhecia esta face :)
    E também desconhecia esta tradição até há uns anos. Na minha terra não há nada disto. Mas, como gosto de tradições e de contra-tradições, partilho aqui que conheço um sítio onde os miúdos andam a pedir o "bolinho", e dizem "Ó tia dá bolinho ou com uma tranca no focinho?" :D

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    1. Não é um inédito. :)

      Pelo que sei, é uma tradição mais presente no norte do país.

      Heheheh, adorei a interpelação. :'D

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  7. Até tenho vergonha de começar a escrever, depois disto.
    Prefiro-te na crónica, mas a ficção não te fica nada mal. E dominas tão bem a língua. Há coisa mais sexy que isso?

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    1. Obrigado, Alex.

      Não devias, que escreves mesmo muito bem. :)

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  8. brilhante. és um contista extraordinário. e que final maravilhoso :)
    bjs.

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  9. linda historinha, tanto sentimento em poucas lindas! que talento vc tem! abs

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    1. Muito obrigado por suas palavras, Homem. :)

      um abraço.

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  10. Eu sou do pão por Deus e adorava. Julgo que "andei nessa vida" até aos 12/13 anos lool

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