19 de setembro de 2015

Do Direito Penal.


      Na sociedade portuguesa, regra geral, defende-se, legislatura em legislatura, um maior peso do direito penal. Mais intervencionismo, maior regulação. Na imprensa demagógica e populista, depois de determinado facto consumado, exige-se que o poder legislativo crie uma norma incriminadora que regule tal comportamento. As reformas, como sabemos (as boas, se tanto), não são feitas a quente. Os penalistas sabem-no e sabem, ademais, que o direito penal é um ramo subsidiário (ou deve ser, idealmente...) dos outros ramos do Direito. É um direito de ultima ratio, chamado apenas quando determinada situação não pode ser mitigada pelo direito civil ou pelo direito administrativo, por exemplo. Nesse sentido, o direito penal deve intervir o mínimo na vida dos cidadãos. Temos aqui a expressão do Princípio da Intervenção Mínima. E só deve regular certos aspectos. Princípio da Fragmentariedade.

    Há, e é saudável que haja, os chamados espaços livres de direito. Um famoso exemplo doutrinário é corrente entre os penalistas. Dois náufragos estão agarrados a uma tábua, que todavia só suporta o peso de um. De outro modo, morrerão os dois. Um atira o outro à água, que sucumbe. Matou? Deve ser punido? Samuel Pufendorf pronunciou-se sobre isto. E Kant também, que concluiu que «A necessidade não tem lei.». Contudo, nenhuma necessidade pode justificar o injusto. Houve, igualmente, autores que defenderam que certos casos dramáticos e desesperantes podem escapar à regulação jurídica. Uma situação destas, à luz do actual Código Penal português, poderia encontrar previsão no artigo 35.º, número 1. Um estado de necessidade desculpante.

     Por outro lado, um caso real, o Caso Mignonette, ocorrido em 1884, demonstra que no ordenamento inglês houve um entendimento diferente num caso com contornos distintos, mas cuja lógica será a mesma. Um navio naufragou e, sem alimentação e passados dias a beberem da própria urina, os sobreviventes sortearam qual seria sacrificado para que os restantes se pudessem alimentar. Um caso de antropofagia, portanto. Assim fizeram. O que lhes aconteceu quando vieram a ser resgatados? Foram condenados à morte por homicídio. Posteriormente foram indultados em pena de prisão. A que conclusão chegou o tribunal inglês? A vida do sacrificado não vale menos do que a de nenhum dos tripulantes.

       Cesare Beccaria, ilustre penalista italiano, escreveu um livrinho que a todos recomendo, "Dos Delitos e das Penas" [há uma tradução muito boa (premiada, inclusive) da Gulbenkian, pelo Professor José de Faria e Costa], onde defendia uma ideia do direito penal fundada no Contrato Social, já remontando a Locke. O direito penal seria, assim, um depósito de liberdade dos cidadãos no Estado, ideia propagada no Iluminismo. Nós, cidadãos, prescindimos de um pouco da nossa liberdade ao Estado para que este nos proteja, proteja os nossos direitos fundamentais. O direito penal é, por conseguinte, um direito das pessoas; não um direito do Estado.

        É bom sabermos que o mundo do Direito é um mundo limitado e não deve regular tudo. Mais limitado ainda é o mundo do direito penal. É preciso dizer que o direito penal é o único ramo do Direito que castiga pessoas adultas. É um direito com características muito particulares. Intrusivo. Interfere na liberdade dos cidadãos. Costuma-se dizer, entre os penalistas, "que não há penalista que não deva ser pessoa de má consciência". Porque o direito penal é uma casa má. Não é bom, e devemos usá-lo com muita parcimónia.

16 comentários:

  1. Gostei muito, e uma vez que no Titanic um resolveu suicidar-se em prol da mulher ;)

    Não tiveram igual sorte os cristãos que vieram no mesmo barco que os muçulmanos, ambos refugiados, ambos a quererem melhor sorte...

    No entanto, os cristãos foram atirados ao mar, e os muçulmanos ganharam casas em condomínios de luxo, equipadas e mobiladas....

    Caso para dizer que o crime compensa, ou compensou neste caso...

    É um crime, porque ninguém corria perigo de vida. Apenas a patetice de Ideologias... Onde para muçulmanos as minorias são para abater lololololololol

    Grande abraço amigo Mark

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    1. Isto não tem nada que ver com suicídio, que de resto já abordei aqui. :)

      Ai, Francisco, já vês muçulmanos em todo o lado e em todos os assuntos. Deixa-os lá, coitados. :)

      um grande abraço para ti, amigo!

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  2. Problemas muito pertinentes e atuais. Como te disse, eu acho o direito penal muito interessante. Registrei o nome desse livro e com certeza irei pesquisar por aqui. É uma área que muito me interessa.

    Abraços!!

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    1. É muito provável que encontre, Ty, já que o Brasil é imensamente mais populoso do que Portugal. Muitos livros de autores estrangeiros estão traduzidos, por cá, em português do Brasil. :)

      Um ramo do Direito de elevada complexidade técnica e doutrinal. Felizmente encantou-me, ou teria sido um sacrifício.

      um abraço.

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  3. Meus conhecimento na área do Direito são bastante limitados mas, é um assunto q muito me atrai. Sempre q tenho oportunidade assisto debates jurídicos e me empolgo com eles. Sua reflexão foi interessantíssima e q nos leva a pensar ... pensar ... pensar ...
    Concordo com Kant qdo ele afirma «A necessidade não tem lei.» [necessidade extrema claro]. No caso dos náufragos, todos sem perspectivas e havendo consenso sobre possibilidades de sobrevivência, entendo q agiram corretamente.

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    1. O consenso é irrelevante. Não importa se um precisava de o fazer ou se todos precisavam. No direito português, o 35.°/1 excluiria a culpa dos agentes. Tem de se provar que não era razoável exigir que agissem de outro modo, dadas as circunstâncias especialmente delicadas. E queriam preservar as suas vidas, tinham esse animus. Vejamos, o acto em si é ilícito e há um especial desvalor da acção. Eles, deliberadamente, subtraíram a vida de alguém. Analisando, para mais, o estado emotivo dos agentes, eu decidiria por esta causa de exclusão da culpa.

      Podemos sempre estudar com o que temos ao nosso dispor. :)

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    2. É uma perspectiva. :)

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  4. " o direito penal é o único ramo do Direito que castiga pessoas adultas" bem visto, e consideras que a Lei o que tem mais são "buracos" em que cada pessoa lê o que quer? A Lei não é clara...

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    1. Buracos? Lacunas? Há lacunas legais, sim. Não só no direito penal como noutros ramos do Direito. No caso do direito penal, só é crime o que o legislador considera como tal. Ponto final. Não há cá analogias para considerar determinado facto como crime.

      No caso da lei penal, maxime na Parte Especial do Código Penal, é clara, acredita. "Quem matar, pena X." E nem podia ser de outro modo. Agora, claro, os artigos são intrincados.

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  5. O direito não regula (nem deve) tudo! Se o fizer torna-se intrusivo das próprias liberdades individuais, e sim, o ramo do direito penal será um regime de excepção, quando todas as possibilidades se esgotaram, excepto quando há acesso directo à pena em casos óbvios de homicídio e afins...

    Abraços

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    1. Exacto. Excepto quando o confronto é tal, entre o indivíduo (agente) e o ordenamento jurídico, que ao Direito Penal não pode ser indiferente.

      abraço. :)

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  6. O problema a meu ver não é a Lei, mas a aplicação da mesma porque acaba por ficar refém da subjectividade de quem a aplica. E sobre o estado de necessidade... bom... há quem a invoque a torto e a direito.

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    1. O intérprete tem uma tarefa árdua, quando o legislador nem sempre é claro. O juiz não é mais a "boca da Lei", como Montesquieu dizia. Ainda assim, a lei escrita sempre é mais segura e o intérprete não deve ir além do alcance da norma. O exercício de hermenêutica contém riscos.

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  7. Adorei o post. E serviu-me para relativizar um pouco o peso que atribuo ao Direito penal. São extremamente elucidativos os teus posts nesta área.

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    1. Em oito anos de blogue, quase, foi das pouquíssimas, mesmo muito poucas, vezes em que abordei algum tema relacionado a Penal. É muito denso para um blogue. Vá lá, suscitou interesse nas pessoas. Nunca pensei. :)

      Muito obrigado, caro Alex. :)

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