20 de março de 2015

Father Figure.


   O dia do pai há muito que perdeu o simbolismo. Há quase tanto tempo quanto o que medeia a época em que da sua parte sentia afecto e estima, e esta, despojada de atenção, de proximidade.
    Pensei que o falecimento do avô nos aproximasse. Poucas palavras trocámos a partir de então, meio sem saber o que dizer, como justificar tanto desconhecimento que se interpôs entre nós. Como vulgarmente se diz, a separação de um casal não tem de implicar um afastamento dos filhos. Entre nós houve esse progressivo desatar dos laços, agravado em muito pela ida do pai para o norte do país, onde assentou há alguns anos.

    Ontem decidi telefonar-lhe. Tomei essa decisão depois da hora do almoço. Lembrei-me do que me têm dito, e com razão, de que o que releva é que, da nossa parte, tenhamos a consciência do dever cumprido. Contudo, sempre achei que o argumento é mais fruto de uma hipocrisia qualquer do que de verdadeiros sentimentos. Se procuramos alguém para que, mais tarde, nada nos seja imputado, não o fazemos libertos dessas farsas. Assim tem sido a minha não-ligação ao pai. Não o procuro porque não sinto apego, vontade de a tudo isto contrariar, recusando-me, também, a ser falso.

   Surpresa das surpresas, o pai ligou-me. No seu dia. Atendi. Falámos. Não lhe disse que já havia programado contactá-lo. Soaria a coincidência provocada, talvez nem acreditasse. Desejei-lhe, e aí sinto alguma culpa, "um feliz dia" (fará sentido um filho que pouco fala com o pai desejar-lhe um feliz dia do pai?). Estivemos algum tempo à conversa. Perguntei pela avó, pelo seu estado. Deprimida, como sempre, quadro agravado pela morte do avô. A família não é muito unida e ela acaba por ficar só. Não fisicamente, que tem pessoas que cuidam dela e da casa; sem os filhos, os netos, presa a recordações que só lhe farão mal. Daí que pondere voltar para Lisboa, levá-la para junto de si ou mudar-se para lá.

      Ter o pai por cá seria bom. Provocaria uma aproximação. Ou não. Também essa anseio sentida. E não o será. As circunstância irão favorecer o reatar da relação. Nada mais. Não há empenho da sua ou da minha parte. Tudo demasiado... artificial.

      A ausência do avô fez com que percebesse, pela primeira vez, que não somos eternos. E que o tempo se esgota. Eu penso nas pessoas, não consigo deixar ir. Ainda que não as procure, frequentemente estão - quando não sempre - no meu pensamento. Consigo com isso mantê-las por perto. E são muitas. O pai é uma delas.

     Sou impressionável. Vivo em memórias e no que projecto para um futuro que não chega. Que nunca chegará.

20 comentários:

  1. Oi Mark!

    Fico "feliz" por você e seu pai se falarem. Eu acho que você deve deixar rolar sem pensar muito no assunto. Se ele voltar pra Lisboa, aí vocês se encontram e falam o que tem que falar.
    Ficar "preso" nas pessoas pode ser bom, pode ser ruim. Não se torture. Você é tão novo ainda. Sei que é papo furado mas tenta viver sem pensar muito. Fica mais fácil. Acredita em mim, e olha que sou pouco mais velho que você.
    Abraços!

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    1. Bom, falamo-nos pouco.

      Tenho andado bastante "em baixo". Preciso de uma década sabática.

      um abraço e obrigado.

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  2. Deixo-te um abraço amigo caloroso ;)

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  3. "Vivo em memórias" Mark elas são precisas, nem sempre nos ajudam, pois criamos uma espécie de "capacete" que impede que estejamos sempre a pensar nelas, mas quantas vezes esse "capacete" não serve para nada?

    O futuro aparece sempre, mesmo que não tenhamos nada preparado para a sua vinda, e é escusado dizer que está nas tuas mãos dar viva ao teu projeto, para que o teu futuro não seja um passado preso numa memória para não a recordares.

    Entendo que por vezes as relações pareçam artificias, e quantas vezes os laços familiares são apenas feito de ADN e não do amor que temos no coração?

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    1. Eu gostava de ter esse capacete "anti-memórias".

      É, o futuro surge. Para quê antecipá-lo? Eu tenho um pequeníssimo problema: penso demasiado nele e pouco faço para alterá-lo (isto porque o vislumbro).

      um abraço.

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    2. Oh rapaz é por isso que em certas coisas que escreves eu me revejo nelas. Não é mau, é bom, mas porque tenho uns anitos mais que tu, digo-te não penses!!! não o antecipes. Falar é fácil, e aqui estou eu.

      Abr

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    3. Agradeço as tuas palavras, No Limite. Obrigado.

      um abraço.

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    4. Mark,
      Aqui comento por que, em meu entender, a Ty e o No Limite já tudo disseram. Para ti também não sou exemplo: penso em demasia, tenho dificuldade em esquecer e essas ambivalências, noutro contexto, de mim fizeram parte, até poucos anos antes da partida do meu pai. Por estúpido que possa parecer (e é!), ambas as partes apenas aprendem com uma doença grave. :(
      Mas nem todos os casos são iguais.
      Estou certo que o teu pai tem muito orgulho em ti. Por isso, aos poucos, procura essa aproximação. Se fores "um pouco falso", não tem problema: a causa é válida e não prejudicas rigorosamente ninguém.
      Abraço.

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    5. Orgulho, sim, ele tem, e procura-me por querer uma reaproximação. Eu creio que a morte do avô baixou algumas defesas que ambos havíamos erguido.

      Compreendo e sei aonde queres chegar: mais vale "forçar" um pouco uma aproximação, mas ser bem sucedida, do que nada fazer e arriscar-me a um arrependimento sem retorno daqui a uns anos (espero que muitos!).

      um abraço.

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  4. Oi Mark, o relacionamento tem dois sentidos. As pessoas, por vezes, afastam-se e depende também não deixar que isso aconteça, no limite do que nos for possível, obviamente

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    1. Olá, Leonel. :)

      É verdade. Nada farei que prejudique uma possível aproximação.

      um abraço.

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  5. E fizeste muito bem Mark :) Temos mesmo que dar valor quando as pessoas estão vivas e não o contrário :)

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  6. De inesdeportugal: Mark, pensa tanto... demais! Porque não deixa rolar a vida e aproveitar as coisas boas, sem se focar nas coisas más? Há mais de uma década, aprendi alemão. A minha professora ensinou-me a interpretar os textos focando-me no que sabia ao invés de atentar ao que não sabia. Parece tão evidente, não é? Foi revelador para mim. Quando lemos uma língua estrangeira que não dominamos, temos tendência para ficar parados na palavra desconhecida, ao invés de nos centrarmos nas restantes, que dão o sentido essencial ao texto.

    Hoje mostrei um pequeno filme da UNICEF com entrevistas a crianças na Síria à minha filha de 7 anos, que tem tido uma infância para lá de boa, e ainda assim gosta de se focar no acessório para se lastimar. Ela entendeu, sentiu empatia, mas não interiorizou a mensagem: passado um bocado choramingava porque não a deixei ver mais desenhos animados, depois de um dia espetacular, que até carrocéis incluiu. Tento sempre perguntar-lhe o que foi o melhor do seu dia e ela responde-me sempre com aquilo de que não gostou.

    Eu tenho esperança que a consiga fazer perceber um dia, que se se focar no que é bom, a vida pode ser maravilhosa... Perceber isto para mim, não foi um clique instantâneo, mas realmente andou ali por volta da minha aprendizagem de alemão. Vários foram os contributos para este meu sentir, que me faz sentir tão bem: Ler o País do Carnaval, de Jorge Amado, mostra que a felicidade está ao alcance de um tolo... As viagens que fiz, mostraram-me a felicidade dos povos que vivem de forma mais simplificada. Pensar na morte, também ajuda. Os homens na Idade Média, talvez saiba, valorizavam muito a morte em vida. Hodiernamente, tendemos a esquecer-nos da sua importância: não veja aqui nada de macabro. Pensar na morte, põe tudo em perspetiva, fazendo-nos valorizar o que é importante. Um dia tive um processo relativo a um suicídio de uma jovem por amor a outra. Ela deu um tiro no peito, mas não morreu de imediato. Saiu do seu quarto, em busca de ajuda, esvaindo-se em sangue, arrependida. No momento da morte, ela não falou daquela por quem se matou: falou dos pais. Este foi um processo que também me marcou, com certeza.

    Mark, na fase de vida em que está, será talvez difícil pôr as coisas em perspetiva desta maneira. São as aventuras e desventuras do curso, é o futuro que não se vislumbra, nem profissional, nem pessoal, são muitos ses. Se eu conseguisse ensinar a minha filha a ter na sua natureza a capacidade de se sentir grata e feliz, sem ela ter de passar por um processo de descoberta pessoal... Nem isso consigo, quanto mais fazê-lo descobrir isso a si, assim, num comentário a um post.

    Ainda assim, aqui fica a minha mensagem: aproveitar as pequenas coisas da vida. Há momentos de felicidade plena num simples banho de mar, num chocolate quente, no riso das crianças, num gelado... Se olharmos para as pessoas e tentarmos sentir empatia por elas, é tão mais fácil... O seu pai não pode ser muito distante, senão, não teria ligado... sentiu a sua falta... que tal marcar um encontro com ele nas férias da Páscoa? uma deslocação dos dois a meio caminho, ou a vinda dele a Lisboa, ou a sua ao norte. Porque não? O maior risco na vida, é não correr riscos... que frase batida linda e que me mudou a vida a mim...

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    1. Inês de Portugal, muito obrigado.

      Com efeito, eu nunca reparo no lado bom da vida. Sou demasiado negativo.

      Interessante esse método de aprendizagem de uma língua estrangeira. Curiosamente, quando leio uma frase, um texto, num idioma que não domino, tento sempre atender ao sentido do conjunto. É intuitivo. Quando estamos em processo de aprendizagem, sim, vou ao conjunto para determinar o que está ali, mas tenho de desvendar a dita palavra. Btw, adoraria saber alemão!

      Eu penso na morte como - e isto é terrível - um patamar de consolação. Aliás, tendo a pensar ainda mais nos anos que antecederam o meu nascimento. Anulo-me ao atentar na minha não-existência.

      A sua menina tem sete anos? Oh, como era feliz com essa idade e não o sabia!... Sete anos, estar com os pais, ser protegido.
      Não me recordo se, com essa idade, me focava no acessório para me lastimar. Creio que não. Era ingénuo ao ponto de ser simples na minha "felicidade" (que não a há pela Terra).

      Vou tentar, até porque está a tornar-se um pouco insustentável, pensar menos e ser um pouco mais animado, vá.

      Sim, já marcámos um encontro. Ele irá estar por cá em breve, daqui a dias.

      um beijinho, Inês, e obrigado. Sabe, às vezes preciso que me digam aquilo que já sei...

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  7. mas ainda o tens, ainda se falam, sentes algo por ele e ele por ti, de certeza. as pessoas afastam-se e depois torna-se difícil dizer o que se sente. e um dia...
    as memórias são boas, mas arriscamo-nos a nunca sairmos desse refúgio. ficamos na concha e temos medo de enfrentar o futuro. é como o namorado refere, temos de dar valor quando as pessoas estão vivas.
    bjs.

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    1. «e um dia...», concluo, é tarde demais. Foi isso, com o avô, que me levou a "abrir os olhos".

      É, a tal concha onde passo tempo demais. Tenho de dar um abanão.

      um beijinho, Margarida.

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  8. Eu já não tenho Pai há muito tempo; e se nunca houve problemas entre mim e o meu Pai, notei que quando lhe falei olhos nos olhos sobre a minha homossexualidade tinha ganho mais que um Pai, um grande Amigo, pois eu conhecia-o bem e sabia que os seus princípios de vida o levavam a condenar objectivamente a homossexualidade. Mas eu era diferente, era seu filho e ele teria que estar a meu lado, e eu senti isso perfeitamente no abraço que então trocámos.
    Infelizmente quando nos preparávamos, ambos, para viver um relacionamento muito mais intenso que até aí, perdi-o, pois morreu sem ninguém esperar.
    Isto para te dizer duas coisas, o teu Pai será sempre mesmo afastado, o teu maior amigo, e tu te-lo vivo, aproveita-o.
    Uma palavra ainda para o maravilhoso texto da Inês, que tu, com aquela característica maravilhosa que possuis de aceitar as críticas quando elas são válidas, aceitaste tão bem.

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    1. Sei da tua extraordinária relação com o senhor teu Pai, já falecido, mas com uma alma tão nobre ao ponto de modelar as suas concepções para compreender e aceitar o seu filho. É capacidade de poucos! Paz à sua alma. Foi um grande homem.

      João, acredito que sintas essa tristeza por a vida não ter permitido que usufruíssem desses maravilhosos tempos que aí viriam, mas não conseguimos controlar a nossa própria finitude. Ao menos sabes que ele morreu sabendo quem és e aceitando-te como tal. Morreram com as questões pendentes resolvidas. E o senhor teu Pai manter-se-á sempre vivo na tua memória.

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