6 de dezembro de 2014

Despojos.


    Outra manhã em branco. Vem-me à memória quando saltava para a cama dos pais e programávamos o dia de sábado, o que faríamos, com quem estaríamos. A que exposição me levariam. Em que restaurante almoçaríamos. Hoje, acordando, sou indiferente ao frio que sinto quando deixo que a aragem gélida irrompa pelo meu quarto, ainda que em finos trajes.
   Tomo o xarope. O corpo ressente-se da atmosfera desconfortável dos anfiteatros. Eventualmente, das aulas tardias.

    Cresci sabendo que necessitava de cuidados especiais. Uma cabeça humedecida pela chuva equivaleria a uma semana de remédios. Daí me protegerem; a mãe não consentir que saísse de casa sem os botões do casaco abotoados, sem calçado quente ou o café da manhã. Tampouco me deixava só, à porta, enquanto esperava pelo transporte do colégio.

     Deixo correr a água, à medida em que o vapor se adensa. E fraquejo. A páginas tantas, o som dos salpicos na banheira meio cheia acostuma o meu ouvido. No recorte da água, a silhueta dos meus sonhos, distorcida, comprimida pelas últimas gotas que se evadem da torneira mal fechada. Que se criam e anulam no infinito manto espesso dos minutos de um dia perdido.

24 comentários:

  1. Este estado febril deixa-te inspirado

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    1. Felizmente não tive febre. Apenas um resfriado.

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  2. Caso para dizer, que és uma "flor de estufa", mas que com o tempo irás ganhar muitas defesas

    Também fui assim, no worries

    Não morres por isso ;)

    Abraço amigo Mark

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    1. Francisco, essa e umá resposta digna de um homem do campo xD
      Acho que se o Mark vivesse no campo não teria tantos problemas de saúde... pelo simples facto que não iria respirar poluição todo o dia..

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    2. Com certeza, Horatius. Morar em Lisboa não ajuda. :(

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  3. Curiosa essa imagem da silhueta distorcida dos sonhos. Uma silhueta comprimida pelas últimas gotas de uma torneira mal fechada!...

    É uma imagem metafórica de um dia apenas perdido? É que, no correr do texto, parece sugerir uma espécie de despojamento. Uma quase indiferença para com os sonhos que, inevitavelmente, hão-de sobrepor-se à penumbra da solidão.

    Porque a vida continua a ser um desafio. Uma equação com várias incógnitas!...

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    1. Não, caro driftin', tens razão, é mesmo um despojamento. Não apenas um mero dia perdido. Uma vida perdida, ou perto.

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    2. uma vida perdida? oh, Mark... :( então?
      dia difícil sim, mas assim não...
      o natal não é propício a pensamentos felizes quando os que amamos já cá não estão, mas há que tentar dar a volta.
      bjs.

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    3. Tenho momentos melhores, outros piores. Sou de fases, como a Lua.

      um beijinho grande, Margarida, e obrigado.

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  4. Os filhos crescem e saem por aí nas ruas de Portugal pelados prontos para pegar um resfriado. Rs. Brincadeira! Também não fiz muita coisa no sábado além de dormir e comer. Rs

    Abraço!

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    1. O "dia perdido" foi metafórico. Perdi-o em vários sentidos. Até saí, passeei por aí, desencontrando-me cada vez mais.

      um abraço.

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  5. True story? És assim tão susceptível? Abracinhos fofinhos

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    1. Sim, sou de compleição frágil. Adoeço com relativa facilidade. Deve-se à bronquite asmática desde tenra idade, que sempre me obrigou a tomar medicação. Os dois maços que a mãe fumava por dia, durante a gravidez, não devem ter ajudado em nada, bem como as suas famosas "noitadas".

      um abraço, tartaruguinha.

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  6. E um dia que começava com um banho de banheira tinha tudo para correr bem... ;)

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  7. Um texto que ficava bem num livro de contos...

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  8. Continuas sem "compreender" a separação dos teus pais. Um filho "não se faz" por acaso e passados alguns anos, todo o universo criado,
    e desmoronado. Recordas, com saudade, os momentos de afeto, em criança, prestados pelos progenitores.
    No final do teu texto, fiquei em dúvida. Creio que te consideras imperfeito. Mas todos o somos, Mark! E fragilidades, também as temos. Podem não ser de saúde física mas de outra ordem. A outra interpretação, que me ocorreu, foi a de um homem desejado, amor impossível ou inconcretizável porque, nem a água, nos seus "contornos", mostra quem merece o teu amor.

    Abraço.
    Espero não ter feito uma interpretação muito absurda. Não me expressei bem - tenho noção. Este período de luto está a ser... E as palavras ainda não consigo libertar.

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    1. Boa interpretação. És um homem atento.

      Luto? Eu não fazia ideia. Lamento muito, Paulo!

      um abraço grande!

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    2. Devia ter seguido psicologia clínica ou psiquiatria :(

      Enfim, ...

      No post anterior, não consideres o comentário: pensei tratar-se deste.
      Em http://ondenaoestou.blogs.sapo.pt, selecionando a tag "cancro" ou "mieloma múltiplo", podes acompanhar um pouco da degradação. Infelizmente, coragem e força ainda não tive para escrever a respeito de tudo. Abraço grande.

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    3. Não conhecia esse teu blogue na plataforma do Sapo. Irei lá.

      Os meus profundos sentimentos.

      um abraço sentido.

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  9. Um belo texto, tal como tantos que tu escreves. É impressão minha ou tens dedicado mais a tua escrita a uma escrita pessoal e menos sobre a História? :)
    De qualquer das formas, gosto muito desta tua forma de expressão, gosto mesmo muito quando desabafas, tu és um rapaz muito sensível e que guarda muito para dentro de si. Espero que estejas bem, fofo. Alguma coisa, estou sempre à distância de uma chamada, de uma sms... estou aqui.

    Abraço.

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    1. Não, não é impressão. Tenho escrito realmente mais sobre o quotidiano e menos acerca de actualidades políticas, temas históricos, jurídicos, dissertações, ensaios, etc, etc. Não deliberadamente; faltam-me assuntos. É tudo tão... superficial, pelo menos para o que me atrai debruçar-me. :) E o Dezembro também é propício a explorar um lado mais intimista e pessoal. Por mim falo, sou um tipo mais sensível no Natal.

      Eu sei que sim. Muito obrigado!

      abração!

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