28 de novembro de 2014

Memories.


   As lembranças. Elas trespassam-me como a luz no vidro. O eterno paralelismo com a pessoa que era imediatamente antes da separação dos pais e após. As imagens, que eram nítidas, começam a ficar esbatidas, como aquelas velhas fotos que passam de mão em mão. Os pormenores fogem à minha concentração. Ainda assim, e nove anos volvidos desde o início das hostilidades, vejo roupas, refeições, semblantes, dor. Indiferença. Consigo sentir a desconstrução do que julgava sólido. E não exagerarei se disser que perdi o pé.

    Era novo, demasiado ingénuo para perceber o que se passava. Julgava uma fase, como outras, de maior animosidade. Ou tampouco tinha opinião formada. Limitava-me a viver nesse manto de abstracção que me proporcionava a idade. O pouco conforto que conseguia extrair do que me rodeava provinha daí e de alguns sonhos que pairavam como uma nuvem branca, isolada, no meio do céu carregado.
    Não me questionaram acerca das minhas necessidades, dos receios. Do impacto que o turbilhão teria na frágil estabilidade emocional. Que nunca pedi sacrifícios de maior. Só cautela e cuidado. Foram céleres em desatar os laços. E, aí, tenho a agradecer. Um golpe único, certeiro, consegue ser um acto de misericórdia.

    Desconheço o que me leva a manter algumas tradições que já não farão sentido. O espírito de época, não tendo ainda esse soçobrado diante da realidade. Uma luta em vão, a de cultivar a aparência de normalidade, de comunhão, que não existe mais. Que, porventura, haverá cada vez menos.

   A hora dos silêncios, perturbados pelo som dos meus passos. Da casa vazia, inabitada. Imaculada e disfuncionalmente arrumada. Pelos corredores ecoam as vozes do passado. Onde fiquei.

23 de novembro de 2014

A Mediatização da Justiça.


     A detenção de José Sócrates deixou o país em estado de estupefacção. Nunca se viu nada assim visando um político que desempenhou funções ao mais alto nível na hierarquia do Estado. O povo, em desconhecimento de causa, muitas vezes, aplaude entusiasticamente as decisões que restrinjam a liberdade de cidadãos mediáticos, fundando esse júbilo na velha máxima de que "os importantes nunca respondem perante a Justiça". Aos juízes, por seu lado, a Constituição impõe a administração da justiça em nome do mesmo povo que por ela clama. Entre eles, a omnipotente Comunicação Social e as fugas no segredo de justiça que, em nome do mediatismo a quanto obrigas, perturbam a realização da própria justiça, seja na ponderação dos órgãos judiciais ou ainda no direito de defesa dos arguidos.
      A Justiça tem dois rostos: o de quem acusa ou julga e o de quem se defende. Dois patamares desnivelados. No limite, um dos rostos, o da verdade, preferencialmente, assume-se como único.

      Ler e ouvir declarações de políticos no activo sobre decisões de juízes e do Ministério Público, esse órgão autónomo e independente, todavia intimamente ligado, e aqui intimamente por imperativo constitucional - e ainda bem que assim o é - aos tribunais, é alarmante. É uma intromissão maquilhada, mas que persiste, de outros poderes na esfera do poder judicial. Deputados congratularam-se com a detenção de uma pessoa, manifestando apoio, como poderiam, no reverso da medalha, manifestar o seu repúdio - e isto é perigoso. A justiça deve cumprir o seu papel na sombra, passando ao lado de manchetes e tablóides sensacionalistas, ou corre o risco de não ser justa. Dir-me-ão, são cidadãos. Com certeza. Mas desempenham funções ligadas ao poder legislativo. Não estamos perante um mero cidadão, como eu, que comenta uma decisão de um órgão judicial ou de uma magistratura autónoma como o é o Ministério Público. A par dos mais ostensivos, Pedro Passos Coelho desdobra-se em comentários altamente tendenciosos e suspeitos, o timing fala por si, com declarações dirigidas claramente a Sócrates e ao seu alegado envolvimento em actos ilícitos. Diz Pedro Passos Coelho que "os políticos não são todos iguais", reafirmando, uma vez mais, a terrível conjuntura em que o país se encontrava quando o seu partido venceu as eleições legislativas últimas. Aproveitando-se de um mau momento de um ex-Primeiro-Ministro, talvez temendo, seguramente temendo, uma derrota eleitoral nas eleições do ano que está aí, Passos Coelho faz campanha, promove-se e às suas políticas utilizando a detenção de um cidadão. Como economista que é, quer-me parecer, não lhe exijo que conheça o princípio da presunção de inocência. Só lamento que os seus consultores jurídicos o ignorem.
      Não comentarei a fundo, como se perceberá, a manifestação do PNR frente ao Campus de Justiça. Um partido que não o é, só lamentando que o Tribunal Constitucional continue a permitir a permanência de uma organização dessa índole junto aos demais partidos políticos, proibida, no meu entendimento, nos termos da Constituição. Podemos concordar ou não com esta restrição aos direitos fundamentais de liberdade de associação política, expressão, com previsão até no direito internacional, mas ela existe, consta na nossa Lei Fundamental, deve ser cumprida.

      Os julgamentos em praça pública, os primeiros, que precedem, eventualmente, aqueles por direito em sede do poder judicial, têm o maior dos impactos. E cego será todo o que negar as implicações que a opinião pública, bombardeada por notícias levianas e por afirmações de individualidades irresponsáveis, exerce nos magistrados, também eles susceptíveis, na maioria dos casos, à mediatização dos processos, estando na mira e nas bocas do mundo. Os juízes, hoje, são "executores e perceptores" de uma qualquer justiça de massas que emana de um populismo descontrolado, alimentado pela Comunicação Social, esse quinto poder que só carece de concretização constitucional.

18 de novembro de 2014

November.


   O frio chega, timidamente. Instala-se no nosso quotidiano, impondo-nos roupas quentes, agasalhos de algodão. De igual modo, a cidade prepara-se para receber outra época de consumismo selvagem, visto pelas montras e pelas ofertas tentadoras, tecnológicas, na sua maioria. Somos escravos do digital e nunca estamos na vanguarda da tecnologia. É irrealista não se ficar confuso perante tanta diversidade. Um assomo de saudade dos tempos em que o game boy, no colégio, tinha o dom de me tornar logo no menino popular. Hoje, muito provavelmente, já haveria outro no dia seguinte, com mais aplicações... 

    O mundo está a ficar muito complicado para mim. Não será pelo avanço. Esse faz parte da humanidade. Estamos condenados à evolução. Os limites serão impostos por alguma entidade superior, a existir. Demasiado confuso porque ainda não aceitei inteiramente que cresci e que vou ficando só, que já não sou mais o menino de bochechinhas rechonchudas que quem passa por perto quer apertar. As bochechas, sim, continuam rechonchudas, mas têm barba, tornando-me num homem. E ser-se um homem envolve estar-se à altura de tal. Não apenas ter qualificações académicas ou dobrar anos. Contar meses não implica estar apto para se enfrentar o mundo de desafios e perigos que nos espera a cada esquina.


    Começo, no processo típico de por quem os anos passam, a sentir falta disto e daquilo. Das saídas com os pais, irrepetíveis. Dos jantares no penúltimo mês do ano, quando a decoração natalícia surgia pelas ruas da cidade, iluminando-as e aquecendo-nos o coração. Dos natais no Alentejo, da sua atmosfera gélida que tornava o ar expirado em fumo. De viver, por fim, no manto de ingenuidade e inocência próprio da parca idade. Aí era feliz, sem o saber, talvez sem o ser, mas, citando Maria Guinot, «troco a minha vida por um dia de ilusão». Já tive direito a esse dia, a esses dias.

12 de novembro de 2014

A Queda do Bloco Soviético.


   Comemorou-se, há dias, o vigésimo quinto aniversário sobre a demolição do muro de Berlim e a reunificação da cidade. Corria o ano de 1989. O muro, construído nos anos sessenta do século XX, era mais do que uma linha imaginária que separava os dois pólos antagónicos. Era, efectivamente, um marco que delimitava as partes ocidental e oriental de Berlim. 
       Mil novecentos e oitenta e nove foi um ano de viragem para o bloco soviético. A par do derrube do muro, já em Novembro, a vitória de Lech Walesa na Polónia e a célebre e pacífica Revolução de Veludo na então Checoslováquia prenunciavam o fim de um regime que se via diante de uma derrota na sua ideologia e expansão.

     Com Brejnev, sobretudo, a União Soviética começou a demonstrar fragilidades e indícios de declínio. A competição com os E.U.A na saga pelo armamento nuclear e a intervenção militar no Afeganistão agudizaram os problemas económicos que se vinham sentindo, a que se juntou o fracasso nas políticas que defendiam a reconversão gradual da produção industrial de bens de equipamento para bens de consumo. Gorbatchov chegou a secretário-geral do PCUS em 1985 e cedo se apercebeu de que reformas eram urgentes, empreendendo assim uma certa abertura à privatização e ao individualismo, negados pelo regime soviético, tendo em vista modernizar e reestruturar não só a própria URSS como também o regime, que estava em causa. A reestruturação económica ficaria conhecida, em russo, por perestroika, e a transparência por glasnost, significando a abertura política e o fim da burocratização estatal. Estes dois pilares, decisivos, reflectiram numa mudança de atitude, nomeadamente em relação aos media, menos controlados, o que permitiu aos cidadãos soviéticos terem acesso a informações que eram terminantemente proibidas até então. Atenuou-se as perseguições políticas aos opositores e defensores dos direitos humanos, dos quais André Sakharov é um exemplo, Prémio Nobel da Paz em 1975, regressando do exílio. No ordenamento jurídico, a Constituição soviética foi revista e pôs-se cobro ao monopólio do poder do PCUS. Houve ainda algum combate à corrupção e um importante estímulo à participação cívica dos cidadãos, falando-se até de eleições livres e pluralistas.

     Não se pense que este clima de reformas foi pacífico. Enquanto que no ocidente Gorbatchov granjeava popularidade junto da opinião pública, no seio da URSS o líder conheceu alguma oposição por parte das forças mais conservadoras, na sociedade e no aparelho do PCUS. O carácter reformista do seu mandato verifica-se facilmente com a assinatura do Tratado Sobre Forças Nucleares de Médio Alcance, com os E.U.A, em 1987, e a retirada do Afeganistão em 1989. No ano seguinte, Gorbatchov receberia ele mesmo o Prémio Nobel da Paz. Nesse ano, a reunificação alemã, por fim, viu a luz do dia. A República Democrática Alemã juntava-se à República Federal da Alemanha, derrubando-se o regime comunista na ex-RDA. Também a Hungria e a Roménia, na última muito pouco pacificamente, os regimes comunistas chegavam ao fim.

   As Repúblicas Bálticas foram as primeiras a libertar-se do jugo soviético, em Dezembro de 1989, proclamando-se independentes de Moscovo, seguindo-se progressivamente as restantes repúblicas soviéticas, uma após a outra. A implosão da União Soviética estava iminente. Gorbatchov sofreu uma tentativa de golpe de Estado em Agosto de 1991 por comunistas reaccionários. Os acontecimentos precipitaram-se. Sendo contra a desfragmentação do Estado, Gorbatchov demitiu-se no dia de Natal de 1991, arrastando o PCUS para a extinção e, finalmente, a dissolução oficial da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, fundada quase setenta anos antes pelo líder Lenine. O caminho para a hegemonia sem rivais à vista, pelos E.U.A, ficou desimpedido.

    O fim da URSS teve um impacto significativo nas artes e na cultura. Até na música, com os Scorpions cantando, no início dos anos noventa, o hino à mudança Wind of Change.

8 de novembro de 2014

Uma tarde.


    Escolhendo não o melhor dia, eu e um amigo combinámos dar uma volta pela baixa. Uma zona agradável que nunca é demais revisitar. Será, também, a área mais cosmopolita e multicultural da cidade. Perco-me entre tantas nacionalidades diferentes.

    Chovia quando saí de casa. Entretanto, São Pedro lá se animou e brindou-nos com apenas umas pingas, embora, a dado momento, tivéssemos de dar uma corrida para nos abrigarmos sob umas varandas. O Tejo estava agitado. As gaivotas em terra. O leito do rio, cheio, quase galgando os limites da margem. Nuvens cinzentas, carregadas, prenunciavam uma tempestade que não se verificou.
     Levou-me ao terraço do Hotel do Chiado, que não conhecia. À noite deve ser bem mais interessante, e sem chuva. A vista é excelente. Conseguimos ter uma visão panorâmica sobre a baixa, o Castelo de São Jorge, as ruínas do Carmo e os prédios pombalinos. Já nas ruas, decidimos lanchar por ali. A nossa primeira escolha incidiu sobre um espaço muito conhecido, de que não me recordo o nome (memória ultra-selectiva), que estava cheio e com pessoas à espera de mesa. Acabámos num outro café simpático, apinhado, claro está, de turistas. As tostas, deliciosas. Nunca tinha comido uma tosta mista de queijo de cabra. O atendimento, ainda que no meio de tanta confusão, conseguia ser o mais próximo possível dos clientes.

  Já de estômago cheio, entrámos numas lojas, vimos as tendências deste Inverno que se aproxima. Concluímos que precisamos dar uma renovada. Vi muitos artigos que me interessaram, desde camisas, a blazers, calças, casacos. Eu sou vaidoso. Não o escondo porque não é nada doentio - prova é que há meses que não compro roupa. No entanto, comprando, sou capaz de fazer uma conta apreciavelmente alta. Tenho é de estar disposto à saga do veste-despe, que detesto.
    Regressámos pouco depois.

    Ontem, recebi o primeiro relatório. Está bom. Agora vêm todos. Segunda tenho uma apresentação oral. Custou a primeira. Senti-me mais confortável nas seguintes. Nada como passarmos pelas dificuldades para as ultrapassarmos com menor ou maior distinção. É o processo de amadurecimento.

     Gosto destas tardes simples, de diálogos com sentido, de conversas interessantes. De pessoas respeitadoras, amáveis e gentis, que não têm segundas, terceiras intenções. 
     Essa integridade de carácter não tem preço - e é tão rara.

3 de novembro de 2014

A Investigação.


    Nunca pensei que fosse tão compensador fazer investigação. Um mundo que se desvenda diante de nós. Por sorte, tenho conseguido trazer para casa uns livros interessantes, muito úteis nos relatórios. Nos próximos, que os que fiz ainda estão a ser corrigidos.

   Escolhi, como optativa, Criminologia. Envolvente e misteriosa. Passo muito tempo debruçado sobre matérias densas, daquelas que preferimos não nos dar conta da existência. Há dias, terminei um relatório sobre os homicídios qualificados e os seus pressupostos. Não sabia eu que um simples artigo, de várias alíneas, teria tanto para se escrever (até sabia...). Quando procuramos informação, surge sempre mais e mais. É difícil inovar. Os caminhos começam a estar todos descobertos. Digo inovar no sentido de criar algo novo, uma corrente doutrinária, uma opinião que vingue, que seja absolutamente oposta a tudo o que há, ou que vá numa direcção contrária, díspar. Perfilhar o que existe é tentador, a mais quando concordamos com alguma das orientações.

    Conhecia todos os professores que tenho, excepto um. A minha professora de Direito Penal, ex-conselheira do Tribunal Constitucional, reconheceu-me de imediato. Recordar-se-á, certamente, das aulas e das orais de melhoria. A Processo Penal tenho também o mesmo professor, pessoa que estimo em igual medida. São de uma simplicidade notável, seja no trato, seja até na forma como se apresentam e como interagem com os mestrandos (já o eram na licenciatura). Pessoas que chegaram onde havia a chegar, atingindo o topo das suas carreiras.

   São aulas complexas. A terminologia usada é muito jurídica e não admite desvios. Ao falar com uma amiga da mãe, advogada, com uma sociedade de advogados, aconselhou-me a entrar na Ordem, que há um déficit, na sua sociedade, de advogados na área do Direito Penal. Em boa verdade, o Direito Comercial, das Sociedades Comerciais, do Trabalho, do Contencioso Administrativo, entre outros, são mais cobiçados - e dão mais dinheiro. Disse-lhe que não quero ser defensor. Poderei, a ponderar, entrar na Ordem, mas não para já. Tenho outros assuntos a ocupar-me o tempo e a paciência.

   O amor pelo Jornalismo, todavia, persiste. É uma centelha que brilha em mim. Extensível à História. Quem sabe no futuro? Nada me impede de tirar duas, três licenciaturas, assim tenha uma vida longa (o que já ponho em causa...) e disponibilidade profissional. O engraçado é que trilho o caminho de muitos juristas que se aventuraram pelo Jornalismo e até mesmo pela História, e são vários os exemplos portugueses, desde Margarida Marante, a Miguel Sousa Tavares, Paulo Portas, Carlos Pinto Coelho, Diogo Freitas do Amaral (História), Miguel Sousa Tavares.

    Veremos a que portos o futuro me leva.