29 de agosto de 2014

As medusas.


    Pelo extenso areal, um tecido mole, gelatinoso, cuja origem adivinha mil e uma milhas. História mal contada, indiferente aos gritos estridentes e despreocupados de miúdos que se sentem a salvo. Amontoado de nada, dantes corpo de vida marinha, livre, temida, venenosa, sabe-se lá letal.

    Uma e outra, quatro e cinco, muitas mais. No mar, colorado de castanho pelo tom das rochas, a vida despontava a cada olhar. Vida que veio à superfície, arrastada pela corrente da maré. Banhistas refugiam-se nos pedregulhos ainda não cobertos pela água; outros, saltam, abrindo brechas que desvendam o fundo. Mães que pegam, atemorizadas, nos petizes de pouca idade. Diriam que se tratava de um tubarão. Mas não. Uma alforreca moribunda. Fraca para se guiar, aguardando as redes, carrascas, que ditariam o seu fim. A angústia se de escolher uma praia concessionada.

    Afinal, o que suscita nas pessoas um ser tão inofensivo fora do seu habitat natural? O espaço que lhe pertence. Tido como intruso por quem faz do mar o seu passatempo, ocupando-se por breves instantes, os suficientes para se tomar por dono.
    Mulher loura, espampanante. A pele destruída por anos de sol descuidado, enrugada pelos braços. O moreno de uma vida ociosa, que descortino entre uma casa na capital e compras por Paris. A necessidade da auto-afirmação, frustrada em nova, não deixou que as jóias ficassem por casa. Rivalizavam com o louro platinado dos seus cabelos. Os seios, pendendo sobre o tronco, eram o toque final de um quadro que poderia considerar de horror. Vociferava, alarmada, pela presença dos cnidários. Seria a primeira a pegar num pequeno galho e a revolver o que restava do animal, à medida em que mais se acumulavam.

    Modificar o que não nos pertence, para alegria de dezenas que puderam, finalmente, usufruir das suas férias. Um menino, ousado, de calção de banho azul-bebé, aproximou-se da medusa, morta, e tocou-lhe as ventosas, enquanto a mãe, distraída, acertava com alguém "o jantar que não pode ser adiado". Os pés, pequeninos, chapinhavam na fraca rebentação. Saltitava ao pisar pedrinhas afiadas. Ninguém dera por aquela, tão perigosa! O instinto levou-o, infrutiferamente, a colocá-la de novo na água, procurando, quem sabe, devolver-lhe a vida. Aqui, dizem, reside a esperança da Humanidade.

     Correu na direcção dos pais, orgulhoso do seu feito, são como fora. O castelinho de areia, que deixara para trás, era engolido pelas ondas escassos minutos depois.
     A tranquilidade reinava de novo, entre trincadas na maçã.

16 comentários:

  1. Bonito texto... E eu acredito nessa "esperança da Humanidade".

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Quando vejo atitudes assim, eu também acredito, Shoes.

      Eliminar
  2. Amei esse texto. Você escreve muito bem, cheio de lirismos.
    Nós invadimos o espaço desses animais e depois nos julgamos com autoridade para expulsá-los do seu ambiente. E a mulher loura era o verdadeiro filme de terror, rsrsrs.

    Abraços!!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Resta perguntar qual o habitat que não invadimos...

      um abraço.

      Eliminar
  3. Vê este artigo http://bciencia5.wordpress.com/2010/10/15/as-medusas/
    Um abraço
    P.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigado pelo artigo. Pois, que são venenosas eu sei, até o digo, mas somos nós que invadimos o seu habitat. Existem há 650 milhões de anos! E nós há uns quarenta mil anos, como homo sapiens, creio...

      um abraço. :)

      Eliminar
  4. Um belo conto. Tu tens o dom da escrita.
    E como sei que nunca escreves forçado, que te venham muitas vezes a inspiração para outros contos como este, que bem faria parte de um futuro livro.
    Quem sabe?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Oh, João, não pretendo ser escritor. :) Temos de plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro. Que eu saiba, não fiz nenhum dos três, embora, embora!, tenha uma ligeira impressão de ter plantado algo em miúdo.

      Quem sabe, quem sabe, mas daqui a décadas. :)

      Eliminar
  5. Que lindo texto, era possível "ver" que você descrevia com grande sensibilidade...

    Deste lado do "charco", elas tem o nome de água-viva e por hora, penso que estamos cada um em seu habitat, visto que ainda não tive nenhum encontro com elas...

    Um grande abraço!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu tenho um caderninho que anda sempre comigo... até na praia. Quando sinto que devo, tiro-o e escrevo o que vejo e sinto.

      Eu vi a primeira de perto naquele dia. Sei que são perigosas, mas estão na sua casa... Nós é que a invadimos e depois achamo-nos no direito de as retirar da água. O ser humano é tão... hum... pois.

      um abraço grande! :)

      Eliminar
  6. Respostas
    1. Longe disso! Se há terreno onde nunca me aventurei é na poesia. :)

      Eliminar
  7. Lembrou-me do episódio de Friends com a água-viva, acho que um dos mais engraçados que me lembro. Também lembro da praia onde eu ia quando era criança que tinha umas na areia já mortas, se não me engano uma das minha primas se queimou um dia, mas nada grave. Eu, sempre achei elas muito bonitas e poderosas... rs

    Abraço!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu li por estes dias que há uma espécie letal. :s De qualquer forma, somos nós que arriscamos ao invadir o mar.

      Nunca tinha visto uma de perto, nem no areal. Achei-as lindas e aparentemente tão frágeis... :)

      um abraço!

      Eliminar
  8. Uma das medusas mais temidas e perigosas do mundo (apesar de taxonomicamente não ser bem uma medusa) chama-se... caravela portuguesa.
    (http://visao.sapo.pt/a-caravela-portuguesa=f749877)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, conhecia, mas pensava que era mais uma medusa. :)

      Eliminar