29 de julho de 2014

Filipe II de Portugal.


   Em Abril, escrevi sobre o primeiro dos monarcas da terceira dinastia portuguesa, inaugurando uma série de três dissertações sobre os Filipes, reis non gratos em Portugal. Não o serão com total justiça. À distância de tantos e tantos séculos, é impossível saber-se com rigorosa exactidão o que sentiam por Portugal, acreditando, eu, que amavam este pequeno e belo reino à sua maneira.

   Filipe III de Espanha (II de Portugal) nasceu no dia 14 de Abril de 1578, filho de Filipe II de Espanha e de D. Ana de Áustria, por sua vez neta de Carlos V do Sacro Império e de D. Isabel de Portugal. Não se esperava que o pequeno e enfermo Filipe alcançasse a Coroa. Não era o herdeiro. Tornou-se com a morte trágica dos seus irmãos mais velhos, um após o outro, não fugindo à terrível mortalidade infantil da época. Dos cinco filhos de sua mãe, só Filipe sobreviveu.

   Filipe, como disse, era muito débil física e mentalmente. Consta-se de que Filipe II, seu pai, terá dito: "Dios, que me ha dado tantos reinos, me negó un hijo capaz de gobernarlos". O império em que o sol nunca se punha, de facto, se somarmos ao extenso império espanhol o império português.

   Filipe II, cujas crónicas da época o dão como bom e devoto, alheando-se de assuntos políticos, foi aclamado rei de Portugal a 23 de Setembro de 1598. Além de rei de Portugal e de Espanha, aqui como Filipe III, era rei de Nápoles, da Sicília, rei titular de Jerusálem, rei da Sardenha, duque de Milão, conde de Artois, de Borgonha e de Charolais, fora as possessões ultramarinas ibéricas. Um deus na terra.
    Entregou o poder ao famoso duque de Lerma, homem naturalmente ambicioso, que afastou o novo rei dos assuntos portugueses, para perplexidade dos súbditos lusitanos.

    Em 1598, casou com Margarida da Áustria. Do enlace nasceram oito filhos, incluindo o sucessor, que viria a ser Filipe III (IV de Espanha). Filipe, todavia, continuou a demonstrar apatia e carácter fraco para as enormes responsabilidades que tinha.

    Se o duque de Lerma governava toda a Espanha, conhecendo-se das limitações do rei para assumir as rédeas do poder, em Portugal, por volta de 1600, substitui-se o colégio de governadores escolhidos por Filipe I, que estavam envelhecidos e de quem se questionava as vantagens, por um vice-rei, Cristóvão de Moura, membro do Conselho de Estado e elevado a marquês de Castelo Rodrigo.

    Os problemas em Portugal agudizavam-se, e as reacções contra Espanha também. Diante das fomes de 1600/01, escreveu ao rei, Filipe II, declarando estar com problemas de liquidez para cobrir as despesas. Há muito que não eram pagas as tenças da casa real, o dinheiro mal chegava para sustentar a Ribeira das Naus, podendo despoletar a qualquer instante uma crise no comércio marítimo português. Como Cristóvão de Moura foi percebendo, a grandeza de Espanha contrastava com o tratamento desigualitário que Filipe II dava a Portugal. Aos poucos, afastava-se das promessas do seu pai, Filipe I, em 1581, nas Cortes de Tomar. Ousou colocar três magistrados castelhanos na Junta da Repartição dos Contos, enquanto por Lisboa havia arruaças entre soldados portugueses e espanhóis. Não sentindo resultados palpáveis dos seus apelos, pediu a demissão. Foi substituído por D. Afonso de Castelo Branco, aos oitenta e um anos de idade. Relembro que só portugueses poderiam ser vice-reis. Depressa subiu ao poder o terceiro vice-rei, D. Pedro de Castilho, bispo de Leiria, inquisidor-geral e fidelíssimo à causa espanhola. Note-se a promiscuidade entre religião e política... A sucessão de vice-reis não terminaria. Cristóvão de Moura regressa para segundo mandato, a 23 de Outubro de 1607. Este morreria em 1613. Suceder-se-iam mais uns quantos vice-reis até... Filipe II nomear um espanhol, repito, um espanhol, Diogo da Silva y Mendonza para o cargo, uma afronta para os portugueses, muito embora o novo vice-rei tivesse ascendência portuguesa.


   O rei estava em Espanha, com Corte em Valladolid, por estes anos. Portugal seguia numa crise económica aguda, a que se somava os ataques de corsários à nossa costa indefesa, com períodos de fome e impostos pesadíssimos, engrandecendo as hostilidades entre portugueses e espanhóis.

    No ultramar, os territórios portugueses eram presa fácil para holandeses e franceses. O governo filipino ia, progressivamente, perdendo o encanto aos olhos dos portugueses. A derrota dos franceses, no sonho de erguer La France Équinoxiale, foi conseguida em 1614, impondo-se um armistício a La Ravardière. A maior ameaça, contudo, seria dos holandeses, quando criaram a célebre Companhia das Índias Ocidentais para comercializar com as terras brasileiras.
    O império português da época, nas Índias, estendia-se pela costa oriental de África, Arábia, Industão, Malabar e demais territórios circundados pelo Índico. Na costa oriental africana, tínhamos fortalezas na costa moçambicana, em Sofala, Mombaça e em Melinde. Na Arábia, Mascate e Ormuz pertenciam-nos. Através de Manila, nas Filipinas, território espanhol, Filipe II tentava estimular contactos comerciais com a Ásia, embora nunca os espanhóis tenham estabelecido uma base como os portugueses tiveram em Macau. Claro que tirou partido do nosso vastíssimo império oriental, vendo-se obrigado a respeitar, claro está, a autonomia do império português face ao congénere espanhol.
   Acabámos expulsos de Adém, Mascate, Ormuz, Ceilão e Aboíno, devastados pelos holandeses. Perdemos ainda as Molucas. Caía assim o poder português nas Índias. Filipe II não tinha meios para defender o império português. Envia uma frota de catorze navios que consegue segurar Goa, mas os vexames sucediam-se a Oriente.


   No reinado de Filipe II (III), já pela Espanha, o prestígio do país vizinho começava a mergulhar nas trevas. Agora como na altura, Espanha não era una e a Monarquia Hispânica, com Portugal, revelava fragilidades insanáveis. A derrota da Armada Invencível, em 1588, foi apenas o princípio do fim do "Século de Ouro" espanhol. E com Espanha, Portugal. O reinado de Filipe II marcou um período de inversão da economia espanhola, ressentindo-se da quebra do influxo de metais preciosos vindos da América. A autonomia da Flandes, conferida ainda por Filipe I, começou a causar transtornos. O exército espanhol era mal visto na região e foi derrotado em Nieuport, em 1600. A trégua alcançada em Haia, em 1609, expirou três anos depois e não mais foi renovada, caindo por terra o objectivo de Filipe de derrotar o protestantismo, enaltecendo a hegemonia espanhola sobre a Europa.

    E visitar o reino português? Desde o início do reinado que Filipe II revelou intenções de querer conhecer Portugal. Aquando do nascimento do príncipe herdeiro, em 8 de Abril de 1605, ocorreram por todo o país manifestações de júbilo, com festas e procissões. A Câmara de Lisboa apelava para que o rei viesse e da Corte, em Espanha, chegavam notícias de sucessivos adiamentos, ou pelas doenças do pequeno príncipe ou pela morte da rainha. Até que, em 1619, Filipe II vem, por fim, a Portugal. A comitiva pisou solo português a 9 de Maio, entrando por Elvas e Estremoz. Chegado a Évora, esperava-o um opulento auto-de-fé, a seu pedido, onde doze pessoas foram queimadas vivas. Em Lisboa, a festa de recepção teve lugar na sala grande do Paço da Ribeira. Filipe II prestou o juramento inaugural do seu reinado e prometeu, como o seu pai fizera décadas antes, respeitar os foros portugueses. Durante o início de Setembro, muitas touradas no Terreiro do Paço em honra do rei. O rei visitaria ainda Palmela, Almeirim e Santarém, mas, invocando razões de Estado, abreviou a estadia em Portugal - o ambiente que se vivia não era propício à manutenção da Corte por cá. Entre os dias 18 e 23 de Outubro, rumou de Tomar a Badajoz.

    A vinda do rei foi um fracasso e as diferenças entre portugueses e espanhóis acentuavam-se a cada dia. O rei partiu e deixou o reino entristecido. Demonstrou frieza para com a nobreza portuguesa, não concedendo mercês e não se ocupando da fidalguia lusa. Culpava-se os ministros. Do rei, a impressão que o acompanhara a vida inteira mantinha-se: era um homem bom. A hegemonia espanhola começava a desvanecer-se.

     Como referi anteriormente, a rainha faleceu numa das inúmeras vezes em que se especulava a vinda de Filipe II a Portugal, em 1611. O rei era-lhe fiel e não conheceu outra mulher após a morte da tão amada esposa. Havia descendência segura, logo, outro casamento não era necessário. Passou a desfrutar da companhia dos  filhos, combatendo assim as saudades. A melancolia, que nunca o abandonara, perturbou-lhe o espírito de modo que começou a ter visões e a ouvir vozes quando caminhava no seu palácio.

    Ao deixar Portugal, em 1619, o rei sente-se indisposto após comer umas empadas. Adoeceu gravemente e nunca mais recuperou, morrendo a 31 de Março de 1621, com quarenta e três anos de idade e vinte e dois de reinado. Vários mitos surgiram em torno da morte do rei: desde o calor de um braseiro, que lhe provocou um ataque de erisipela, até suspeitas de envenenamento.

  A morte do monarca foi conhecida, em Portugal, a 6 de Abril. No dia 18, seria feito o juramento e levantamento do novo rei, Filipe III (IV de Espanha), proclamado por procuração passada ao vice-rei, o marquês de Alenquer, iniciando-se assim o último reinado filipino no nosso país. Atribulado. Ficará para o próximo capítulo.

28 comentários:

  1. Como é habitual uma grande lição de História; e eu que tão pouco sabia dos reinados dos Filipes, vou aprendendo, claro...

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    1. Há imenso tempo que andava para fazê-lo. Felizmente, visto que foi um reinado relativamente curto e indiferente para nós, não havia assim tanto para contar. Muito mais haverá a dizer sobre o último dos filipes, III por cá, IV por lá...

      Com Filipe I e Filipe II as coisas ainda "andaram". Com Filipe III tudo se precipitou...

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  2. Curti muito e fiquei cego de novo, rsrs :D Me diz uma coisa, essa France Équinoxiale era aqui no Brasil né? Eu sei que vocês expulsaram os franceses e os holandeses do Brasil. :)

    Abraços!!

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    1. Aham, e sucedeu à France Antarctique, em meados do século XVI. Foram duas tentativas distintas dos franceses para se estabelecerem por terras brasileiras. Falharam em ambas, claro, como os holandeses. Expulsámo-los. :) Daí eu dizer de que se não fossem os portugueses, o Brasil, hoje, não existiria. Seria, no mínimo, três países: um de língua castelhana, outro de língua francesa e ainda um de língua holandesa.

      um abraço e obrigado pela atenção e leres algo tão distante da tua realidade. :)

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  3. Muito bom o texto, lembra minhas aulas de história do colégio. Adorava! Aqui nós não aprendemos tantos detalhes assim da história de Portugal.

    Abraço!

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    1. Sim, o Brasil tem de explorar a sua história, que coincide com a portuguesa até 1822. :)

      um abraço!

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  4. Adorei :)

    Pena mesmo, foi colocarmos os espanhois a andar lololololol :P

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    1. Ahahah :D

      Se calhar estaríamos melhor.

      Obrigado, Francisco, pela atenção e pelo tempo "perdido". :)

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    2. Nunca é tempo perdido, ler um texto fabuloso que só tu sabes escrever

      Eu, é que agradeço a tua partilha, o teu tempo para nos "ensinar" um pouco, que todos nós deveríamos saber e ter aprendido na escola :)

      Grande Abraço

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    3. Own, tão querido, Francisco!! :'')

      Infelizmente, não se dá na escola com tanto pormenor. Aliás, mal se fala dos monarcas. Fala-se da História muitas vezes sem se falar dos protagonistas. A maioria dos portugueses, a IMENSA maioria, não saberá o nome de todos os monarcas, do primeiro ao último (já nem digo salteado...).

      um abraço grande. :)

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  5. Que legal seu texto! parabens! eu esotu estudando muitos sobre a história de peninsula iberica e estou adorando! abraços!

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    1. Ainda bem que gostou, Homem, Homossexual e Pai. :)

      um abraço e obrigado! :)

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  6. Há um pormenor que não entendi. No teu magnífico texto dizes que o rei D. Filipe II de Portugal entregou o poder ao Duque de Lerna. Porquê que o fez? A mulher dele, a rainha Margarida da Áustria por certo sabia que ele era um homem doente. Porque não tomou ela as rédeas da governação?

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    1. Obrigado pelas palavras e pela questão que colocaste, João.

      Bom, era costume naquela época os monarcas entregarem o poder a validos. Luís XIII de França fê-lo com Richelieu, Luís XIV com Mazarino e Colbert, D. José, por cá, com o Marquês de Pombal. Alcançava-se o trono por direito sucessório e não por mérito. A menos que o rei não governasse no interesse dos seus súbditos ou fosse totalmente incapaz, era rei, por direito divino, e sê-lo-ia tivesse ou não qualidades como governante. Daí que alguns, reconhecendo essa apatia para assumir os assuntos de Estado, confiassem o rumo das suas pátrias a homens de mérito, de valor.

      As mulheres daquela época raramente assumiam funções de chefia, a menos que se tornassem rainhas de jure, por direito próprio, como houve pela Europa em todos os tempos. O mais frequente era assumirem as regências por menoridade, incapacidade e ausência dos monarcas.

      No caso, Filipe II não seria um incapaz na verdadeira acepção da palavra. Era fraco, débil, melancólico, como a maioria das pessoas naqueles tempos, dado o atraso da ciência, da medicina, além da consanguinidade muito prejudicial. Os casamentos eram feitos entre os membros das famílias reais. Para teres uma ideia, Filipe II era filho de Filipe I que, por sua vez, era filho de Carlos V e de D. Isabel de Portugal; a sua mãe, D. Ana de Áustria, era neta do mesmo Carlos V e de D. Isabel de Portugal, ou seja, a sua avó materna, D. Maria, era irmã do seu pai! Vê os cruzamentos.

      Espero ter esclarecido. :)

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    2. Muito obrigado! Fiquei esclarecidíssimo!
      Abraço grande :)

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  7. Ótima abordagem sobre a história do seu país. Bem didático. Você daria um ótimo escritor de livros históricos. Parabéns. :)

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  8. Sinto sua falta, lindo. Espero que você esteja bem. Só queria dizer isso. E desculpe as minhas grosserias. Fui um babaca com você.

    Cuide-se. :)

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    1. Também sinto falta de conversar contigo. Ainda há dias pensei em ti. Sério.

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  9. Fico feliz em saber disso, lindo. De verdade. :) Você nunca saiu dos meus pensamentos. Sempre penso em você e fico me perguntando como você estará. Sinto um carinho enorme por você,saiba disso.

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    1. Eu sei. O carinho é recíproco. Prova é que tantos meses depois ainda me contactas. Procurei o teu fb de novo e não encontrei. Se quiseres, manda-me uma mensagem.

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  10. Que texto fantástico, sobre um dos monarcas menos conhecidos na História de Portugal. Poder-se-ia dizer que o domínio filipino acabou por dar início à própria queda do império português.

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    1. Sim. A historiografia portuguesa trata sempre dos Habsburgos com um tom ligeiramente depreciativo. De facto, não foram anos bons para Portugal (e o nosso império que o diga...), mas na América, por exemplo, aproveitámos a união para expandirmos os nossos domínios em áreas que, de jure, pertenciam a Espanha nos termos do Tratado de Tordesilhas, olha, do qual falei recentemente no meu último texto. :)

      Humm, mais ou menos. No Oriente, sim, de facto. Ficámos reduzidos a quase nada. Foi o fim da nossa hegemonia, com certeza, não haja dúvidas. Quanto ao império, bem, foi o fim de uma fase, da primeira. O ouro do Brasil, por exemplo, começaria a aparecer em breve, bem como recrudesceu o comércio com a nossa maior colónia, postas as atenções agora no Brasil. As rotas comerciais a Oriente não mais estavam nas nossas mãos.

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    2. A nível da progressão para ocidente no Brasil, esta continuou mesmo depois de 1640. Além de não haver controlo local sobre o cumprimento dos termos do Tratado de Tordesilhas, Espanha estava demasiado ocupada com as descobertas e o seu domínio mais a norte.

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    3. Mas foi a união que permitiu que transgredíssemos o que havíamos assinado em 1494. Os impérios estavam tecnicamente separados, quando, na verdade, portugueses e espanhóis passavam de um lado ao outro (veja-se Ceuta, por exemplo, que recebeu tantos espanhóis em sessenta anos que, aquando da Restauração, não reconheceu a autoridade de D. João IV).

      Continuámos com a expansão para lá dos limites do Tratado de Tordesilhas, todavia, o Tratado seria só revogado em 1750, com o Tratado de Madrid que passou a reconhecer o uti possidetis iuris.

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  11. Gostei muito. Umas das tuas melhores rubricas - mas eu sou suspeito, porque adoro história :)

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