24 de abril de 2014

Quarenta Anos Depois.


  Há quarenta anos, um grupo de capitães, revoltosos, decide pôr termo a uma das mais longevas ditaduras europeias. Portugal lutava em três frentes na dolorosa Guerra Colonial, entre a Guiné, Angola e Moçambique (elevados à categoria meramente honorífica de Estados na revisão constitucional de 1971), que ceifava milhares de vidas e contribuía para o descrédito do país no palco internacional. Orgulhosamente sós, como Salazar, falecido um ano antes, clarificou. A Santa Sé recebia os dirigentes dos movimentos de libertação, Caetano era vaiado em Londres, em 1973, graças aos relatos que davam conta de massacres no norte de Moçambique. Urgia encontrar uma solução para o país e para a questão colonial.

   Houve um golpe militar nas Caldas da Rainha, a 16 de Março de 1974, revelando-se infrutífero, mas que, todavia, haveria de abrir caminho para o que sucederia um mês depois, na operação Fim-Regime, que seria bem sucedida. Paulo de Carvalho e Zeca Afonso abririam as hostes.

   Lisboa era o objectivo do Movimento das Forças Armadas (MFA), dirigido por Otelo Saraiva de Carvalho. Ocupados os sectores estratégicos como a rádio e a televisão, imperava fazer demitir o Presidente do Conselho, Marcello Caetano. O regime estava moribundo e não esperava uma ofensiva de grande envergadura por parte das Forças Armadas depois do golpe fracassado de Março. A GNR  e a PSP ainda tentaram oferecer resistência, mas Caetano render-se-ia ao General Spínola para que, em suas palavras, o "poder não caísse na rua".

   O povo estava cansado de longos treze anos de Guerra Colonial, inseridos em quarenta e oito de um regime que negava as liberdades e os direitos fundamentais. Gerou-se um clima de euforia. O Presidente do Conselho de Ministros, Marcello Caetano, e o Presidente da República, Américo Tomás, seriam detidos, destituídos sumariamente dos seus cargos e conduzidos ao exílio no exterior. Abandonou-se o ideal de partido único; a União Nacional, então rebaptizada de Acção Nacional Popular por Caetano, foi imediatamente extinta, assim como a tristemente célebre PIDE, renomeada desde a reforma marcelista de Direcção Geral de Segurança (DGS), abolindo-se ainda a Assembleia Nacional e o Conselho de Estado. Álvaro Cunhal e Mário Soares, exilados, regressam ante a apoteose das multidões.

   No programa do MFA, posto em prática pela Junta de Salvação Nacional, ainda se procede à extinção da Mocidade e da Legião Portuguesas, libertam-se a amnistiam-se os presos políticos, termina a censura, permitindo-se o regresso dos exilados. A Revolução dos Cravos seria manchada pelos tiros que a PIDE / DGS, que teimava em resistir, haveria de disparar, provocando mortos, poucos, três ou quatro.

  Os tempos de euforia dariam lugar a tumultos e confrontações políticas, sociais e ideológicas que se estenderiam até 1976... Seria um outro capítulo.

   O programa do MFA contemplava os 3Ds: Descolonizar, Democratizar e Desenvolver. Do primeiro, tratou-se nos tempos seguintes: entre facções que defendiam uma solução de independência total ou federação, ganharam relevo as ideias emancipacionistas. Efectivamente, a independência da Guiné-Bissau era facto consumado. A guerra havia sido perdida naquele território. A solução passava por reconhecê-la e, em relação a Moçambique e a Angola, negociar os termos das independências com os respectivos movimentos de libertação. A descolonização foi tardia, mas célere: não havia outra solução. Os recentes países ficaram privados de quadros importantes da antiga metrópole, sentiram o desmantelamento dos seus aparelhos produtivo, comercial e administrativo. Para Angola e Moçambique, trilhou-se um caminho que propiciaria as longas guerras civis que durariam décadas a fio. Portugal, por sua vez, receberia milhares de retornados.

   Democratizar foi o processo mais turbulento, a que, após o período conturbado de 1974 - 1975, se chegaria com a Constituição de 1976, ainda em vigor. Esta consagrou os direitos fundamentais dos cidadãos, o Estado de direito democrático, unitário, pluripartidário e descentralizado e um modelo de sociedade e economia em transição para o socialismo (que ainda consta no preâmbulo). A democracia plena, contudo, viria apenas em 1982 com a primeira revisão constitucional que afastaria de vez os militares do poder, extinguindo-se o Conselho da Revolução, passando as competências deste para o recém-criado Tribunal Constitucional. Reduziram-se ainda os poderes do Presidente da República, então um militar, General Ramalho Eanes, deixando os governos de precisar da confiança política do Presidente da República para poder governar.

  Desenvolver seria mais difícil e ocuparia as décadas seguintes. Em 1977, Portugal pediu a adesão à CEE, aderindo em 1986. O país encaminhava-se, assim, para o grupo de países desenvolvidos - e muito havia a fazer. Herdou-se do Estado Novo uma nação incapaz de responder aos novos desafios. O atraso tecnológico, a que se somava a parca qualificação dos portugueses, foi um entrave ao desenvolvimento do país. O único dos três Ds que ficou por cumprir na sua plenitude. Vivendo sob um resgate financeiro, a situação actual traz-nos à memória os resgates de 1978 e de 1983, em que o país estava mergulhado em crises cíclicas gravíssimas, com altas taxas de desemprego (nada que tenhamos), inflação que disparava, desvalorização da moeda, bens racionados... Bom, estaremos um tanto melhor, mas hoje estamos inseridos numa Europa comunitária, daí reconhecer algum mérito à UE - embora seja um histórico crítico, o que não me leva a ser extremista. Portugal não sobreviveria sem os parceiros europeus. Naqueles anos, como actualmente, houve cortes salariais na Função Pública, aumento de impostos, fim dos investimentos públicos, cortes nos subsídios de Natal... O país continua a demonstrar fragilidades.

   Podemos imputar responsabilidades apenas a quem governou nos últimos quarenta anos? E o que está atrás? Para a frente é o caminho, com certeza, mas somos o que fomos e o atraso de Portugal é secular, anterior ao Estado Novo, seriamente agravado por este. 

   Muito mais se podia ter feito e os queixumes perdem a base racional que os sustinha. São quarenta anos, não quatro. Quase tanto de democracia como de ditadura. O povo está cansado. Olha para o passado e não vislumbra um futuro auspicioso. Aumenta o descrédito que se traduz em abstenção. Um beco sem saída.

   Admitindo ser um nadinha demagógico aqui, chega de políticos desonestos. Precisamos de encontrar um meio seguro e justo de responsabilizar quem se apresenta perante o eleitorado com um ideal e não o cumpre culposa ou negligentemente. O país não pode esperar mais.

   Em tempos, estávamos no último vagão do comboio. Entretanto - e ninguém viu isso - o comboio já passou. Resta saber se queremos ficar a acenar ou correr atrás do prejuízo.

25 comentários:

  1. Respostas
    1. Quis fazer mais do que contar o que se passou. Isso todos sabem, pior ou melhor. Quis fazer um enquadramento. Em todos os anos, desde 2010, tenho assinalado esta efeméride, excepto o ano passado em que não o fiz. Achei pertinente um artigo desta natureza no quadragésimo aniversário do 25 de Abril. Falo do passado e do futuro.

      Obrigado, dear Ine. :)

      Eliminar
  2. Obrigado Mark! Amo essa parte da história de Portugal. Sei da Revolução dos Cravos mas foi bom ficar a saber mais. Espero que Portugal ultrapasse essa crise logo, logo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Esperamos todos. A História é cíclica e repete-se. Como o terramoto que houve por cá em 1755. Haverá outro. Daqui a pouco ou muito tempo, não se sabe, mas haverá, sem dúvida. Portugal tem tido um grande terramoto de 250 em 250 anos, sensivelmente. Estaremos preparados? Creio que não. :)

      Agora já não há Brasil para financiar a reconstrução, como em 1755, nem um homem da envergadura de Pombal...

      Obrigado, Ty. :)

      Eliminar
  3. Como diria César, "Estes Lusitanos não se governam nem se deixam governar". Não é tanto assim, mas anda lá perto.
    Gostei do teu texto :)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É milenar, é milenar. :D

      Obrigado, Horatius. :)

      Eliminar
  4. Gostei muito deste teu post :)

    Apesar de tudo, é a nossa mentalidade e também o pouco Brio de alguns/as ilustres que passaram pelo poder.

    A nossa mentalidade, é que muitos portugas acham que devem ter "escravos" como os havia em África no tempo da Guerra Colonial.

    Por isso "esta conversa do ordenado mínimo" é esse reflexo, escravatura branca e barata...

    O Fascismo é mau sim Senhor... O Comunismo subiu ao Poder e desapareceram as reservas de ouro. Todos vivem à conta do Estado. Todos pedem indemnizações e Pensões ao Estado... Se o Estado tem de pagar, não acontece o mesmo em Cuba? Ou antiga União Soviética?!

    Mudam apenas os nomes e siglas...

    Abraço amigo Mark,

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Os dirigentes não deixam de ser portugueses. Claro que se pressupõe que os melhores, mais sábios, governem, como diria Platão (que nem é um autor que me agrade muito).

      A escolha compete-nos. O processo é inteiramente democrático desde a revolução. O problema está aqui: será que tivemos alguma boa opção e não a escolhemos ou tudo o que se apresenta ao eleitorado tem sido mau?

      Sá Carneiro morreu cedo. Acredito que teria feito algo pelo país. Vá-se lá saber!...

      um abraço, Francisco, e obrigado. :)

      Eliminar
  5. Mexeu muito e o avião caiu.

    Num país democrático, ninguém afirma que foi um atentado. O ouro das senhoras desapareceu e o ouro não derrete assim mais nem mesmo...

    Quer-se assim... E assim é...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Segundo o que consta, o atentado não o pretendia vitimar, mas a Adelino Amaro da Costa. O ouro pode ter sido roubado depois de ter caído por quem chegou primeiro. Não conhecia esse facto do ouro, mas não me parece razoável que "mandassem" um avião abaixo para roubar o ouro que levaria a Snu Abecassis e a outra senhora. Lol

      Eliminar
  6. Amigo Mark, dizem os peritos na teoria da conspiração, que já estavam todos mortos, aquando entraram dentro do avião

    LOLOLOLOLOLOLOL

    Lembras-te da telenovela da Tieta?! Mistérioooooooooooooooooooooooooooooo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pois, há teorias para tudo, já vi. LOL

      Não, não me lembro, mas já ouvi falar. :)

      Eliminar
  7. Obrigado Mark.
    É bom ver um jovem a escrever assim.
    Abraço-te em liberdade!
    P.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Olá P.

      Muito obrigado pelas palavras.

      um abraço. :)

      Eliminar
  8. gostei muito Mark! belo texto. bom feriado e um grande abc!

    ResponderEliminar
  9. Seria massa se no Brasil a redemocratização tivesse ocorrido assim. Aqui foi como os militares e a elite queriam, uma redemocratização lenta e gradual.

    Mas enfim, eu gosto dessa parte da história recente de Portugal,pois foi através dela que Portugal pôde entrar de vez para o grupo das democracias modernas da Europa Ocidental.

    Parabéns Portugal!

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Aqui durou 5 anos, de 1979 ate 1985. srs Quando o general Figueiredo tomou posse como presidente, ele se comprometeu com a reabertura política. Foi feita a lei da anistia, que soltou os presos políticos, inclusive a Dilma,se eu não me engano, tava nessa leva de presos soltos, depois o pluripartidarismo em 1980, em 1983 começa a campanha da sociedade civil pelas diretas já, que pedia o direito de votar para presidente da República, o que não foi atendido,porém a pressão exercida surgiu efeito e 1985 quando foi votado indiretamente pelo parlamento, um presidente civil, o primeiro depois da ditadura... Mas ele ficou doente logo depois da posse e veio a falecer, ficando no lugar o vice, o José Sarney. Por pressão da sociedade civil, ele teve que se comprometer em abrir uma assembleia constituinte para elaborar uma nova constituição democrática, que é a atual de 1988.

      O primeiro presidente eleito diretamente pelo povo, pós-ditadura, foi o Fernando Collor de Melo. Ele ficou pouco tempo, sofreu impeachment kkkkkk

      Tivemos maus bocados,mas agora estamos mais estabelecidos institucionalmente falando,porem ainda precisamos melhorar mais. Há ainda muito entulho herdado da ditadura.

      A história dos dois países se assemelha em muitos aspectos, principalmente na vagarosidade nas mudanças sociais. srsrs

      :)

      Eliminar
    2. Aqui demorou dois anos, até 1976, data em que a democracia vingou. Contudo, a plena só viria em 1982, pois de 76 a 82 vivemos sob tutela militar...

      Portugal e o Brasil, de facto, assemelham-se em muito, não fossem da mesma família. :)

      Obrigado, Tiago.

      Eliminar
  10. não é demagogia nenhuma. temos maus políticos, e muitos deles desonestos. talvez precisemos de outra "revolução", noutros moldes certamente.
    abc

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Perde-se o espírito da revolução, sem dúvida.

      um abraço, sad. :)

      Eliminar
  11. É isso mesmo Mark "Resta saber se queremos ficar a acenar ou correr atrás do prejuízo". Efectivamente, a mudança começa em cada um de nós, e do nosso meio, para que de pequenas mudanças se consiga alcançar algo maior e transversal a toda a sociedade.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim. Há dias, ouvi uma entrevista de uma das principais figuras do 25 de Abril, Otelo Saraiva de Carvalho, em que ele dizia que a revolução mudou tudo menos as mentalidades.

      Aí, não há chaimite que consiga entrar... Isto já sou eu a dizer. :)

      Eliminar
  12. Brilhante descrição do que foi e como foi o 25 de Abril e os anos imediatos.
    Claro que muita coisa mudou e para muito melhor nestes 40 anos - essencialmente o maior bem, a que muita gente jovem de hoje não dá valor porque nunca foi dela privada - a Liberdade!
    Há coisas que não estão bem, é também evidente e isso decorre essencialmente de dois factores: a nossa maneira de ser, em que impera o facilitismo e a improvisação e principalmente à grande crise de políticos carismáticos que qualquer país necessita para singrar. Depois do 25 de Abril tivemos três (dois morreram já - Sá Carneiro e Cunhal) e o outro está numa fase já de alguma senilidade, Mário Soares, a quem no entanto o Portugal depois de Abril, e até o de antes, tanto deve e não devemos esquecer tal facto.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Exacto, João. Mário Soares foi decisivo. Cunhal era uma homem de "grande envergadura", pegando nas palavras de Odete Santos. Sá Carneiro morreu cedo demais...

      Quando ouço pessoas dizendo que sentem saudades de Oliveira Salazar, mesmo nem tendo vivido nos tempos do Estado Novo, sou tomado por um sentimento de revolta gritante. Nunca sentiram a privação da Liberdade, daí que a valorizem pouco.

      Eliminar