5 de novembro de 2013

Encanto.


    A faculdade, à noite, tem vida. Até uma determinada hora. Assistir às aulas do quarto ano / turno da noite tem sido compensador. Mudam os professores, muda o ritmo e a sequência programática, completando-se assim algumas lacunas que fiquem. O anfiteatro está aberto e a entrada é livre. A mãe fica possessa pelas horas que passo por lá. Estou feito bicho universitário no melhor dos sentidos. Há quem o seja noutros. Salvo a honra do convento pela necessidade.

    Estabeleci um objectivo concreto: superar-me a mim mesmo. Tenho de ter a melhor média, dos quatro anos, neste ano. Quero subir e, não o fazendo agora, chapéu. E como chapéus há muitos, já dizia o saudoso Vasco Santana, eu não quero pertencer a esse grupo alargado de chapéus. De preferência, um dos modelos únicos.

   Claro que há sempre tempo para descontrair e até navegar pela net, não sujeito que estou a atenção constante. Isso já o faço de dia. Consigo direccionar a atenção para onde quero. É uma qualidade, mais que defeito. Num desses momentos monótonos, à noite, assisti a uma cena que muito me agradou. Nada comigo, é certo, mas evidencia uma realidade que cada vez mais é perceptível.


    Na bancada em que estava, no sentido oposto, um rapaz olhava constantemente para outro, imediatamente abaixo. Em bom rigor, observava-o enquanto este mexia no tablet, assim pensei eu. Todavia, insistindo, cedo me apercebi de que havia algum interesse. Por vezes, do tablet o rapaz passava para o cabelo do outro, e para o peitoral, e para os braços, e era todo um olhar enternecedor de alguém que estava visivelmente interessado. O segundo rapaz teve noção de que alguém olhava com insistência para si, não para o seu tablet, e não demonstrou qualquer incómodo. Na verdade, já o conhecia não só de o ver nas aulas nocturnas, como também do metro, visto que sai na mesma estação que eu. É elegante, alto, entroncado.
   Assim passaram os cinquenta minutos, um jogando, fingindo-se de parvo, e o outro apreciando e apreciando. O que achei mais engraçado foi ao olhar do primeiro rapaz, de uma ternura apaixonante pelo segundo. Acredito que já o andasse a rondar. No final da aula, o rapaz do tablet saiu e o primeiro, atrapalhado, levantou-se num ápice e até deixou resvalar a mochila para o chão. Não contive uma risada silenciosa e discreta. Tive imensa curiosidade em saber o que estaria a acontecer lá fora.
       Tudo isto foi há dias.


       Ontem, passando pelo bar da faculdade para comprar um sumo, vi-os a entrar, sorridentes.

    É de momentos como estes que o mundo precisa. De pessoas que se conhecem, se dão e trazem algo consigo. Fiquei feliz por aqueles dois rapazes, colegas, que não conheço e com quem nunca falei. Feliz porque assisti ao nascimento de qualquer coisa, o que eles quiserem, o que pretenderem construir, seja o que for.


32 comentários:

  1. ohh que enternecedor :)
    que sejam felizes :) e tu também.
    Boa sorte com os estudos Mark :)

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    1. Sim, fiquei muito feliz por eles. Gostei de ver.

      Obrigado, Kyle, felicidades para ti, nos estudos também. :)

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  2. É giro ver o amor entre duas pessoas, neste caso de dois jovens :D

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    1. Não sei se será amor, mas decerto o primeiro passo está dado. :D

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  3. que texto lindo. não tem a melancolia que encontro nos textos sobre ti e o P., tem leveza, esperança, um céu azul sem nuvens. se não é amor, é um bocadinho de felicidade, neles, em ti e em nós. :)
    bjs.

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    1. Em puro altruísmo, somos felizes com e pelos outros.

      Ganhei o dia, ontem, quando os vi juntos. Tenho a certeza de que eram dois desconhecidos. Não sei como tudo se terá desenvolvido, mas isso pertence-lhes. :)

      beijinho.

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  4. ##
    Enternecedor.
    São este momentos que nos fazem acreditar que dentro de nós existe sempre algo de inesperado. Afinal o Amor é isso mesmo. Pena que exista tanto abelhudo que o destrói...


    @@@

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    1. Sem dúvida, João.

      Foi a primeira vez a que assisti a algo assim. Quando o rapazinho do tablet se levantou, o outro foi a correr na sua direcção. Confesso que gostaria de saber o outro capítulo, uma vez que não se conheciam... :)

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  5. Deve ser muito bonito mesmo assistir a esse início de romance. Muito bacana e sinal que as coisas estão mudando no mundo.. Aqui isso seria bem mais difícil porque ainda tem muito preconceito (não sei se vc leu sobre o projeto 'cura gay' que teve aqui?) então pra ver como as mentalidades são bem retrasadas aqui... Um menino dando mole assim na faculdade aqui? Ih capaz de tomar um soco na cara !! Que bom que em outras realidades é tudo diferente.

    Abraços!

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    1. Aqui também existe imenso preconceito. Essa ideia, exportada para o resto do mundo, de que a Europa é um 'mar de rosas' para os homossexuais, é em parte errada. Nos países de leste, nomeadamente, persiste uma homofobia ostensiva. Veja-se o caso russo, meio Europa, meio Ásia!...

      Sim, eu soube isso da 'cura gay' por alto. Absurdo e inqualificável, mesmo para os parâmetros da América Latina. Enquanto vocês não conseguirem a separação total entre o Estado e as diversas confissões religiosas, essa promiscuidade continuará a existir... :/

      abraço.

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    2. Peço desculpas pela intromissão na conversa dos dois (Mark e Ty). Moro no Brasil (há uns 15 anos), mas sou europeu e da minha perspectiva, realmente, a situação no Brasil está bem melhor, apesar de todos os casos tristes de violência contra LGBT. Concordo com Mark: nos países do leste (e centro) europeu seria impensável a liberdade (ainda que limitada) que existe, por exemplo, no Brasil. Enfim, tanto aqui, quanto aí, temos ainda muito trabalho pela frente. Por isso: parabéns pelos lindos textos. Este e os outros do Mark são um espetáculo... não consegui acessar os textos de Ty :(
      Grande abraço aos dois!

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    3. Olá teleny!

      Oh, não há qualquer intromissão. Por favor, sente-te à vontade para intervir. :)

      A situação nos países do leste europeu é realmente delicada, daí concluirmos facilmente que o mito do 'paraíso LGBT' não passa disso mesmo, um mito. Aliás, bem pior do que no Brasil, onde, apesar de tudo, ainda há uma tolerância, cada vez maior, diga-se.

      O fenómeno religioso no Brasil tem uma explicação (nada o é por acaso). Estando longe da metrópole, e sendo um território explorado por séculos, os habitantes, escravos, índios e portugueses já nascidos em solo brasileiro, apegaram-se demasiadamente à Igreja. Quase como um escape. Deus seria o último reduto, o conforto. Funcionou em moldes praticamente idênticos na América espanhola (o México é catolicíssimo, por exemplo). O tempo passou e a religiosidade manteve toda a sua força, imiscuindo-se facilmente na política e passando para os ordenamentos jurídicos. Hoje, pese embora o Brasil seja um país laico, ainda há manifestações dessa tendência. :s

      Muito obrigado, teleny. :)

      abraço grande.

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  6. Adorei. :)
    Infelizmente, nunca assisti a nenhum momento do género. Mas é sublime!

    Boa sorte para ti, querido Mark, e para a tua vida académica em particular. Espero que chegues ao topo, qualquer que ele seja, mas também com os devidos cuidados: cuida-te!

    Abraço!

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    1. Foi o primeiro a que assisti e foi lindo. Ainda consigo ver o olhar do primeiro rapaz. :)

      Obrigado, Inefável. Não ambiciono chegar a um topo, mas a um qualquer lugar onde possa ser feliz e viver descansado, sem sobressaltos. Não sei se encontrarei por aqui essa paz, porém, enfim, já falta pouco. Agora é esperar para ver.

      um grande abraço!

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  7. Mark a padrinho de casamento!

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    1. Ahahah, pode ser. Do teu, por exemplo, espero que em breve. :)

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    2. Credo, jesus, jamais.
      Casamento nunca.
      Já tive a minha dose.

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    3. Então, quem sabe padrinho de relação. :)

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  8. sem dúvida, eu acho que até ficaria com alguma inveja ao ver algo assim :)

    esforça-te rapaz, faz sempre o que te deixar satisfeito, se deste o teu melhor, de nada terás de te arrepender :)

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    1. Eu esforço-me, tento ser aplicado. :D Veremos se compensa. :D

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  9. Mark, o Prespicaz. Dou-te os parabéns por conseguire topar isso. Eu sou um nabo. Podem estar a passar-se coisas identicas à minha frente, que eu não vejo nada. Aliás, se não estiverem dois homens de mão dada ou a beijar-se, eu não direi que há alguma coisa entre eles. Ainda penso que sou "um caso raro"... lolol

    Grande Abraço :)

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    1. Ahah, oh, nada disso; apenas não estás atento a estes pormenores, digamos. :) Não que seja perspicaz, que sou (lol), mas de facto reparei e fui acompanhando ao longo da aula. :)

      abraço grande.

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  10. Grandes histórias começam com momentos simples... pelo menos algumas. Quem sabe se não será mais uma.

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  11. Lindo...é tão bonito e inspirador ver duas pessoas apaixonadas, parece que o céu se abre e até o infinito é possível.

    Abraço Mark :)

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    1. É verdade, é muito bonito. É alegria que contagia.

      abraço, Arrakis :)

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  12. É uma cena muito bonita...

    E da forma como a contaste quase parecia uma bonita curta metragem! ;-)

    Abraço;-)

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  13. é destes momentos que nós todos precisamos para continuar a acreditar no amor e no célebre ditado que diz: "o sol quando nasce, nasce para todos."

    Nestes últimos dias, tenho visto alguns casais, muito cúmplices, à espera do metro no Porto ou a andarem de mãos dadas, trocando sorrisos cúmplices. Para mim é impossível não sorrir para eles também, feliz por vê-los felizes.

    Aja Amor! :)

    Abraço apertadinho e beijinho :)

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