31 de dezembro de 2013

Dois Mil e Catorze.


    O ano que agora finda não deixará boas recordações, nem a título pessoal. Pelo país, e pelo mundo, assistimos a situações que antevêem tempos penosos. Sabemos hoje que Portugal não é o país desenvolvido e de bonança que a todos venderam há décadas. Persiste a fome, a miséria, a nova pobreza que esconde o rosto de amigos e familiares. E se nunca se sentiu a Europa de facto, a avalanche da crise económica derrubou o sonho de pertencer ao clube dos ricos.

    Quanto a mim, não gostei de dois mil e treze. Foi um ano morno, diferente do meu annus horribilis de dois mil e seis, o pior de que há memória, de Janeiro a Dezembro, mas a anos-luz de dois mil e dez, o que tive até ao momento de annus mirabilis. Pegando no ano em que nasci até à actualidade, constato, e não de agora, de que a minha vida tem sido muito pacata e tranquila, salvo alguns sobressaltos pontuais. O que seria para a maioria uma existência chata e monótona, começa, também, a desagradar-me profundamente. O novo ano que está à porta será decisivo em áreas basilares, acreditando, por isso, em algumas mudanças que façam renascer em mim o optimismo e a vontade de que necessito, árdua tarefa em quem é pessimista por natureza.

    Nós cá nos encontraremos pela blogosfera. Mais um ano a juntar ao baú. O ano, olhando para todos os meses, em que menos publiquei. E essa será a tendência a seguir por opção. Escrever por escrever não é o meu lema, como nunca foi, e não me preenche. Sem linhas editorais ou esquemas definidos, escrevo, como se nota, sobre o que vivo e o que penso, o que me rodeia, e os tabus serão os que a minha consciência dita. Muito poucos ou nenhuns, salvando-se o bom senso, sempre.
    Um espaço que irá entrar no seu sexto ano de existência ininterrupta. A vida é sempre um excelente tema, fonte inesgotável de textos de milhentas palavras. Nunca faltará o que contar.

    O que desejo para dois mil e catorze é que não seja pior do que dois mil e treze. Se assim for, não se perde tudo. Prefiro antecipar-me aos cinquenta anos, em que os sonhos se desvanecem, enfrentando a realidade de frente desde já, nos vintes, para não ficar mal-acostumado.

     A todos vós, os votos de um bom ano novo!


lots of love,

Mark

27 de dezembro de 2013

The day after.


   Como previ, passei o Natal mais tranquilo dos últimos anos. Eu, a mãe e o mano. O melhor de que há memória nos tempos recentes, só equiparável àqueles em que ainda tinha uma verdadeira família. Não me recordo do último Natal que passei em casa. Na casa da avó ou de algum tio, a consoada nunca é por cá.

   Diverti-me imenso a compor a mesa da ceia com a mãe, dada a ausência da Ana a meio da tarde. Na sala de jantar, colocámos umas taças com alguns aperitivos e as iguarias que a mãe encomendou numa pastelaria. Quem visse pensaria que estaríamos à espera de várias pessoas. Felizmente, a Ana deixou o jantar pronto. Como sempre, polvo. Poderia, eventualmente, comer bacalhau. Não é um peixe que aprecie. Como à mãe não faz diferença, nem ao meu irmão, estipulou-se que seria a ementa de todos.

     Quando o mano chegou, trouxe dois presentes: o meu e o da mãe. Anos volvidos, gosto sempre de ver o beijo que trocam. É, de longe, o seu filho predilecto, não deixando de cometer alguma injustiça quando o afirmo. A mãe não faz distinção alguma entre nós, contudo, sente-se. É perceptível. É capaz de estar relacionado com o pai dele, que acredito, hoje, que foi o homem que mais terá amado.
   Senti algum desconforto por nada lhe ter comprado. A mãe fê-lo e, de certo modo, foi o presente de ambos. Tudo coloquei aos pés da árvore.
    Dei-lhe um enorme abraço e beijei-o. Sinto-me seguro quando estou perto dele e o carinho da mãe é em dose proporcional ao meu. 

     Após a ceia, conversámos até perdermos a noção do horário. A meia-noite não tardou. Sentei-me no chão a abrir os presentes. Em primeiro lugar, os que comprei a mim mesmo e cujo conteúdo já conhecia. Nenhum espanto. Abri o da mãe que me deixava inquieto pelo tamanho diminuto. Um cartão-oferta da FNAC. Ela já não sabe o que me há-de dar. Vem bem a calhar. Só não sei onde aplicá-lo. O presente do meu irmão foi o mais hilariante da noite: o último álbum da Katy Perry e, se me permitem, LOL. Eu nunca liguei nada a essa senhora, recordando-me só de comentar que achava piada à Roar.
     Por último, abri o embrulho do P. Trata-se de uma caixinha de música pequenina à qual se dá à manivela. A música que se ouve é a Memory do musical Cats, numa alusão à peça do Henrique Feist a que fomos assistir, juntos, no Verão. Não estava à espera. Senti um arrepio pelo corpo que me faria choramingar, mas consegui controlar-me. De imediato, abri o envelope e li o postal. Fui tomado por alguma desilusão - efeito balde d'água fria. Fala de amizade e pouco mais. Esperava uma referência ao presente ou ao que fomos construindo. Escusou-se a delongas e foi sucinto. Despediu-se com um abraço, falou de saúde e de dinheiro, dos votos para dois mil e catorze. De uma frieza e indiferença gritantes.

    A noite prolongou-se pela madrugada. Fomos dormir por volta das duas. Já deitado, cheguei à conclusão de que por mais que queira, por momentos, acreditar que há algum futuro, farei melhor se aceitar a realidade tal qual ela se me apresenta. Somos amigos e as suas palavras, logo na primeira linha, deixam-no bem explícito. Dou o assunto P. por encerrado, pelo menos no que a algo mais diz respeito. É um amigo como tantos outros. Mais um.
    É difícil desapegar, deixar ir. Terei de o fazer, custe mais ou menos. Eis uma excelente resolução para o ano que se aproxima.

     Por enquanto, tenho artigos por estrear e todo um cd para ouvir. :D
     Now I'm floating like a butterfly.

24 de dezembro de 2013

Feliz Natal.


   Por incrível que pareça, ontem ainda tive de ir à faculdade. A assistente não conseguiu corrigir os testes a tempo de os entregar na sexta, marcando uma aula suplementar. O tal teste em que errei na parte final do caso prático. Pois bem, dispensei o exame de Janeiro. :) Sim, é verdade. A nota não é elevada, mas deu para fazer a cadeira. Pretendo fazer melhoria. Pelo menos está arrumada.

   À tardinha, estive com o P. Entreguei-lhe o álbum, devidamente embrulhado. Senti-o frio, distante. Aquele rapaz não é normal. Combinámos no El Corte Inglés e depois, a chover, quis ir até ao Amoreiras. Quem é daqui sabe que ainda é um percurso longo. Fomos, então, ao Amoreiras para ele ir... ao Jumbo comprar uns chocolates para oferecer. Isto é normal? Num dia chuvoso, num centro comercial, faz-me andar a pé para ir a outro... Aproveitei e comprei um pullover.
   Pouco tempo estivemos. Tirou um envelope do bolso interior do casaco e deu-mo. Tem um postal dentro, disse-me, pedindo-me que apenas o lesse à meia-noite. Assim farei. 
    Despedimo-nos a meio caminho da estação do Marquês onde apanhei o metro para casa. 





   A todos, os votos de um feliz Natal! É uma época bonita. Aliás, a véspera, no meu entender, tem um encanto especial.  É preciso paz e sossego. Saúde, a companhia de quem gostamos e pouco mais. Os presentes ajudam.


lots of love,

Mark

21 de dezembro de 2013

Compras.


  Tirei a tarde para as compras de Natal. Guardo sempre para o final porque consigo retirar algum encanto da azáfama dos últimos dias. Quem mora numa grande cidade (se é que Lisboa é uma grande cidade) acaba por se acostumar ao trânsito, ao lufa-lufa, à correria própria de quem tem pouco tempo disponível.
  Este ano, em especial, precisei de me compensar. Sou consumista. Não o digo com orgulho; pelo contrário, tenho refreado bastante o meu ímpeto em comprar e comprar. Há quem diga que serve de consolo. Não diria melhor. Hoje foi mais que um conforto. Foi uma necessidade. Uma necessidade de esquecer os últimos tempos e de recuperar algum ânimo. Para meu infortúnio, no final do dia, com sacos a mais e dinheiro a menos, não me sinto, de todo, melhor. Ando numa espiral de melancolia que teima em perseguir-me para onde quer que vá. E sei de quem a herdei. Da avó paterna. Efectivamente, é uma senhora extremamente circunspecta, atenta, inteligentíssima - reconhecido por todos - mas há uma tristeza, um sentimento de inconformismo que não a abandona. É o oposto da avó materna, de quem herdei bem menos, mal o meu, que é a minha preferida e a avó com quem desde sempre me relaciono. O seu espírito leve, patente na mãe, não me chegou. O filtro do pai o impediu. E se de coração sou todo materno, de genes sou o lado do pai.

   O que comprei? Comprei bastante roupa, um perfume, um livro (O Vermelho e o Negro, de Stendhal) que vai para a prateleira porque a paciência é nula, um secador de cabelo, caríssimo, que o que tinha soltou uma faísca há coisa de uma semana, sendo que prontamente o atirei ao chão, indo de seguida para o lixo. Passei pelas agendas e adquiri uma para o ano que se aproxima - espero dar-lhe uso. Comprei sapatos, clássicos. Quero mudar um pouco o meu estilo. Nunca fui de ténis nem nada que se pareça; quero, contudo, ficar progressivamente sóbrio. E comprei mais umas coisas pequenas que até fica mal mencionar. Acessórios. Para a família mais chegada: escolhi um nécessaire lindo para a mãe e um porta-retratos para a avó, onde pretendo colocar uma fotografia nossa. Para o avô comprei uma caneta. Ele adora canetas. Lembrei-me do pai. Comprei-lhe um perfume que vou enviar pelo correio. Não sei nem quero saber se vem a Lisboa pela consoada. Entretanto, se vier, pode tirar o cavalinho da chuva que não estarei disponível. Para si, nasço e morro, salvo seja, em Dezembro. Para a Ana, confesso, foi o mais difícil. Acho de mau tom comprar roupa para oferecer - é do mais vulgar que se pode fazer. Não lhe conheço hábitos de leitura e, ao longo dos anos, comprei tudo o que poderia e esgotei a imaginação. Sei que ela gosta de fado, por isso, optei por um álbum do Carlos do Carmo. Por último, o P. Adorando ópera, achei que o melhor seria presenteá-lo com um cd também. Assim foi. Pedi ajuda ao empregado e escolhi um da Callas. Talvez seja cliché, mas foi o que me ocorreu.
    Doem-me os braços de carregar tanto saco. Nem pude vir de metro. Meti-me num táxi.

  A mãe acedeu ao meu pedido. Há dias, pedi-lhe para passarmos o Natal em casa, evitando as reuniões familiares e afins. É provável que fiquemos os dois. Não sei se os manos vêm. A Ana tem família e é comum ausentar-se nesta altura. Sinceramente, não me custa. Perdi a paciência para priminhos histéricos e montes de gente à minha volta. O barulho atormenta-me. E, além disso, não tenho mais idade para fazer o que não quero. 
   Estranhei o facto de a mãe anuir. No fundo, prefere ficar sossegada. É, de longe, a pessoa que mais amo, a par da avó. Ficar na sua companhia, sozinhos, é quanto me baste. Isto deve estar relacionado com o Complexo de Édipo, muito provavelmente, mas, querem saber? Não me importo. Até dispenso o polvo cozido (não como bacalhau, ugh!). Graças aos anjinhos todos e mais alguns, o meu padrasto (...) vai passar o Natal com uns parentes. Que vá e não volte. Nunca mais, seja como for.

   Na segunda estarei com o P. Espero que goste do meu presente. Tenho resistido à tentação de abrir o seu, com sucesso. :) O que será aquele embrulho pequenino? Aguento mais uns dias, claro.

   Uma tarde ridícula, muitas musiquinhas de Natal e bolinhas e fitinhas. No dia vinte seis tudo volta ao normal. As Testemunhas de Jeová têm alguma razão, oh se têm. Têm pois...

    Viv'ó Natal.

17 de dezembro de 2013

Fim do semestre.


   Como previa, os últimos dias têm sido atribulados. O novo regulamento de avaliação, já por mim abordado aqui, introduziu alterações que a todos surpreenderam, com a possibilidade que conferiu de que possamos terminar as disciplinas já em Dezembro, contornando os típicos exames finais de Janeiro. Podendo estar repleto de boas intenções, há sempre vozes discordantes. Em rigor, o novo regulamento privilegia o designado método A, ou seja, o método da avaliação contínua, dos alunos que frequentam as aulas e têm um aproveitamento satisfatório. O meu caso. Reduziu a quantidade despropositada, eu diria, de testes, remetendo as últimas avaliações para o final deste mês. Num ápice, e em duas semanas, temos de realizar os ditos testes. Trata-se de avaliações do ensino superior, num último ano de licenciatura, em que o grau de exigência é máximo, procurando-se aglomerar um pouco de tudo o que foi leccionado nos anos anteriores. O que vulgarmente se chama de "apanhado". A par dos trabalhos que temos vindo a realizar, o mais engraçado deste ano são as audiências judiciais. A faculdade dispõe de uma sala de audiências onde nos introduzem ao que será o futuro de muitos, não o meu, seguramente.

  Na quinta-feira tive um teste. Correu razoavelmente bem. Em vernáculo, espalhei-me ao comprido na resolução do último parágrafo do caso prático. É facto assente. Minutos após a entrega, apercebi-me do erro, que posso assegurar grosseiro. Nem quero imaginar as repercussões que terá na nota, mas é mais do que certo de que não evitarei o exame final. A prova era controvertida e o professor não agiu de boa-fé, devo dizer. Foi-nos comunicado de que sairiam dois casos práticos, sem perguntas teóricas; saiu um caso prático e duas perguntas teóricas, uma que incidia sobre matéria que não está no programa da cadeira. Um absurdo que já levou a uma espécie de petição contra.

   Ontem tive mais uma avaliação. Substancialmente melhor do que a outra, não deixou de ser complicada. É difícil ajuizar quanto ao grau de dificuldade, sobejamente presente em ambas. Talvez estivesse melhor preparado. Por curiosidade, teve uma componente algo divertida e que me ajudou a relaxar. Por uma questão de estratégia, visto que o regulamento nos permite, decidi fazer a prova no horário nocturno. Fico com uma tarde livre que será de especial valor neste momento.
    À noite, o ambiente é diferente. Há pessoas de alguma idade e imensos jovens, bem mais do que poderia supor antes de ter começado a frequentar também as aulas da noite, neste ano. Foi o primeiro teste que fiz com eles. Uma balbúrdia e muito copianço. Quando eu, na minha ingenuidade, não poderia imaginar que à noite conseguissem suplantar a ousadia dos alunos de dia, deparo-me com cenas indescritíveis que, não fosse o momento de especial fragilidade física e emocional por que ando a passar, levar-me-iam a críticas acérrimas e contundentes neste mesmo texto. Vi de tudo, de tudo. Desde livros abertos praticamente na cara dos assistentes, a papelinhos a circular, comentários, alunos voltados a fazer perguntas aos que estavam atrás. Vejam, minhas senhoras e meus senhores, os futuros juristas, procuradores, advogados, juízes, ministros, secretários de Estado de amanhã... Não se espantem com o célebre caso do CEJ (para os mais distraídos, o escândalo dos alunos do Centro de Estudos Judiciários - instituto que forma juízes - que foram literalmente apanhados a copiar); a tendência começa mais cedo, na licenciatura, e aprende-se ali.

   Como referi, houve uma componente agradável. Um rapaz, aluno da noite, costuma sentar-se não muito afastado de mim nas aulas plenárias a que assisto. E às vezes olha e olha... Nunca liguei. Atentei na sua simpatia, que já nos cruzámos a saída do banheiro e cedeu-me a passagem, atitude que repetiu numa aula há tempos. Leva-me a crer que teve uma boa educação. Será da minha idade, porque mais novo é impossível, a menos que tenha entrado antes dos dezoito. O cabelo já está fraco. De tez clara, é loiro, baixo, não sendo um sex symbol para muitos. E para mim também não, que sinceramente não reparo em ninguém. Tenho um feitio muito peculiar no que diz respeito a estas questões.
   
   Sentou-se ao meu lado. Bom, com um lugar de intervalo, como todos, imposição mais que compreensível. Cinco ou dez minutos depois, começou. Perguntou-me tudo, tudo. Baixava a cabeça e fazia-me perguntas, sussurrando. Achei um piadão. Relembrou-me imenso o R., o meu colega, estão recordados? E mais colegas que, ao longo do curso, me faziam perguntas durante os testes. Com o R., ficava incomodado. Era dois anos mais novo, psicologicamente mais forte, menos melancólico... Cheguei a chamá-lo à atenção. A este rapaz, olhem, disse tudo. Escrevi, inclusive, os artigos e alguma doutrina num papel e entreguei-lhe, podendo ser apanhado a fazê-lo. Os assistentes eram dois e estavam atentos. Não pensei. A minha consciência levou-me a proceder assim e não me arrependo. Provavelmente é um desleixado que não se aplica, não estuda, diverte-se e pouco se importa com aquilo, mas fiz e estou de bem comigo. O rapaz estava deliciado e feliz. Eu só sorria para o lado oposto. Lá acabámos e, com uns pós mágicos, entregou e saiu. Entreguei de seguida. O assistente tem-me em especial consideração. Participo muito nas aulas dele... O que não participo nas aulas do outro!

   Cá fora, veio agradecer-me. Não o fiz com essa expectativa ou esperando que tivesse qualquer atitude de gratidão. Quando saiu, saiu, nem pensei mais no assunto. Não. Estava à minha espera. Apertei-lhe a mão, sorrimos e ele seguiu o seu caminho.
     Na vinda para casa, pensei: "Tê-lo-ei ajudado porque me cedeu a passagem em algumas situações?" (...) "Terei, mesmo sem percepção disso, simpatizado com ele por manifestar alguma atenção para comigo?". Cheguei à simples conclusão de que não. No liceu, ou há dois anos, poderia fazer o mesmo e jamais o ajudaria. Talvez olhasse com desprezo e revolta.

   Ainda terei mais dois testes. Só quero que a semana passe depressa. Entretanto, o P. perguntou se podemos estar juntos no sábado e ainda tenho de ir comprar os meus presentes e os de alguns familiares, aos quais, por simpatia, a outros por carinho, gosto de oferecer. E um presente para o P.

    Depois desta maratona, a paciência e a vontade estão nos píncaros. Que época!

12 de dezembro de 2013

Carta.


   Lisboa, 12 de Dezembro de 2013,


   A ti,


   Aproxima-se mais um Natal. Como de costume, escrevo umas parcas palavras. Os anos trouxeram consigo uma evolução e, há dias, relendo as cartas que por anos te escrevi, apercebi-me de algum ridículo, de alguma ingenuidade e, sobretudo, de uma boa dose de inocência. Guardo-as a todas, uma por uma. A de 2005 será a mais pessimista. Saberás que os pais estavam em processo de divórcio e, curiosamente, o meu pedido não ia no sentido de uma reconciliação; pelo contrário, e afastando daí todas as minhas preocupações, pedi apenas para que olhasses por eles, independentemente do rumo que seguissem. A de 2004 é absolutamente infantil. O que dirás da de 2002? Hoje são um pequeno tesouro, que não diria deprimente. Orgulho-me de não terem qualquer erro ortográfico. Fico satisfeito.

   Este ano não diferiu em larga medida dos anteriores. Houve uma evolução na continuidade. Às vezes, quando dou por mim a lastimar disto e daquilo, penso se o que me espera será sempre e apenas um seguimento. Uma vida sem grandes sobressaltos, monótona. Não que a queira agitada, até porque somos os empreiteiros de obra própria e só a nós podemos imputar qualquer responsabilidade. Um pó mágico por aqui e ali sempre dá alguma ajuda...

   Os meus pedidos são simples. Não rejeitarei o que for dado de coração e, tarde, mas a tempo, vejo que o que verdadeiramente releva é o que nos dão por carinho, por estima... 'por amor'. Desengana-te. Não perdi o apego aos bens materiais, como verás adiante; sinto, contudo, a sua mesquinhez perante valores maiores. E, progressivamente, é algo de que vou tendo consciência. Aprendo o valor do 'dar' no lugar de 'receber' e do sorriso que se obtém em troca.

   Seria impossível não referir os estudos. Nesse sentido, peço que tudo continue a correr como até agora - já fico bem se assim for. Estou na recta final e o caminho afigura-se difícil de trilhar. Se cheguei aqui, só preciso de mais um empurrão rumo a lado nenhum.

  Não toco no 'amor'. Não acredito no amor carnal. Acredito no filial, parental. Acredito na amizade - pouquíssimo, quase nada. A desinteressada está em vias de extinção. Lamento pela humanidade e não me excluo da culpa.
   Há quem defenda a ideia de que só seremos felizes quando preterirmos tudo o que é mundano pela elevação espiritual. Não irei por aí porque a imperfeição ainda é tal, mas forte é o homem que controla os seus impulsos, que busca prazer no retiro, numa caneca de café, num livro, num passeio, ao mesmo tempo que cuida e conserva os seus entes próximos e queridos. Uma mãe devota, um pai presente e amigo, um irmão diligente.

   O Natal é uma hipocrisia como o são todos os actos humanos. 
  Do que adianta lutarmos contra eles se não os podemos vencer? E, vistas as coisas, as luzes dão um outro brilho e quase que diria que é bom acreditar que seremos bons e altruístas durante umas horas. Se o formos, ainda que sob condição, e nem que tudo se esqueça no virar do vinte cinco para o vinte seis, algo é proveitoso.

   Nesta semana que se aproxima, encher-me-ei de presentes até que as mãos me doam de tanto saco. E virei iludido para casa, com a sensação de que sou... feliz. Coloco os presentes, que sei o que contêm, perto da árvore e abri-los-ei, mentirosamente, pela meia-noite. Somos tão previsíveis. Veja-se o lado bom, que contorno o cinismo da época e compro a mim mesmo, em quantidade superior que o menino Jesus é generoso.

   Não me alongarei mais. O tempo é curto e a carta vai extensa.

   Vai olhando pelos homens... e por mim.

   
   lots of love,

Mark

   

8 de dezembro de 2013

Weekend.


   Colocando o estudo de parte, antevendo-se semanas que serão complicadas, aceitei o convite da Margarida e estive presente, no sábado à noite, no lançamento do livro O Corredor de Fundotradução da obra The Front Runner, elaborada pela INDEX ebooks. O evento teve lugar no Bairro Alto. Antes disso, pude jantar, e confraternizar, com o Francisco, além da Margarida. Jantámos pelo Chiado e pusemos a conversa em dia (pouco havia a actualizar, uma vez que estivemos juntos no sábado anterior, numa ocasião em que pude conhecer o Arrakis e respectivo companheiro - são dois senhores encantadores, acrescente-se).

   Pelo que tive conhecimento, o livro foi o primeiro best-seller da literatura homossexual, aconselhando, por isso, a que o adquiram no site da editora acima mencionada.


   Hoje, de manhã, estive com o P.. Liberou umas parcas horas do seu dia para estar comigo. Ideia sua. Ao longo da semana, combinou-se para a manhã de domingo devido ao meu compromisso com a Margarida. Acaso pudesse ter optado, estaria com ele na sexta à noite de forma a podermos desfrutar da iluminação natalícia da cidade.
    Estipulámos para as dez. Quando estava prestes a chegar à Baixa, liga-me. Adormecera. Ainda estava na cama. Anda cansadíssimo. Levanta-se muito cedo e deita-se tarde porque fica a a estudar. Às sextas, regressa a casa, de noite, para voltar à residência na segunda bem cedo. Ficou constrangido e desfez-se em mil desculpas. Evidentemente, compreendi. Só me custou ficar meia-hora ao frio, nesta Lisboa gelada a quinze dias do Natal. Aproveitei o compasso de tempo e fui ao Rossio comprar um livro para a faculdade. Uma bíblia no tamanho, não no preço, que as Bíblias são baratas e este livro ficou-me num balúrdio. No ano que vem sai uma legislação nova e, pronto, chapéu, desactualizado fica. 
   Olhei para o telemóvel. Nenhuma sms. Observei os pombos e uma gaivota a bebericarem a água no topo da fonte norte. Volta e meia, molhavam a cabeça e as asas. Turistas aproximavam-se e fotografavam os edifícios envolventes, bem como a praça. Um casal pediu-me para que os captasse com a objectiva. Alemães. Uma simpatia. Troquei breves impressões com eles. Estavam a adorar Portugal e o clima... ameno. Irónico mundo o nosso.

   Ouvi o som das mensagens. Estava a chegar. Desci e voltei para a Rua do Ouro. Não me via. Ligou-me no momento em que nos cruzávamos. Bem, não lhe punha a vista em cima há um mês. Emagreceu. Barba de quatro ou cinco dias, cabelo molhado do banho, um casaco preto e um sorriso de orelha a orelha. Estava especialmente simpático. Caminhámos em direcção ao Terreiro do Paço. Uma neblina encobria o Tejo. Frio de cortar a respiração. Instalada no centro da praça, uma abóbada da Comissão Europeia pretende dar a conhecer mais aos lisboetas sobre a sustentabilidade agrícola e económica. Até de forma a evitarmos o frio, entrámos no recinto. Que quentinho lá dentro. Dirigimo-nos a um dos vários ecrãs tácteis dispostos pelo espaço. Para um futuro agrónomo, não poderia ser melhor. Pouco lá estivemos. Saímos e decidimos ir ao Chiado.

   Subimos todas aquelas ruelas características até chegarmos ao miradouro de Santa Catarina. Timidamente, o sol começava a revelar-se por entre as nuvens. Lá, deu-me um presente. O presente de Natal. É um embrulho, um pequenino embrulho vermelho de laço amarelo.

    Emocionei-me. Disse-me que não queria que ficasse triste. Viu tristeza onde eu vi alguma comoção. Quase que lhe disse que, certamente, seria o presente mais especial que teria, neste ano, na árvore de Natal. Achei que soaria a algo brega (benditos brasileiros que têm sempre uma expressão adequada para tudo). Retive para mim. Não quis demonstrar ainda mais fragilidade. Sentiu alguma tosse que persiste. Sabe das minhas mazelas. Achou-me branco. Olhando bem para o seu rosto, também não vi boas cores.

Ainda seremos dois velhinhos doentes. Eu, mais. Dás-me o braço quando lá chegarmos?, brinquei. Sorriu.

   Diria, a julgar a pela sua expressão, que sim. Hoje, e não pelo presente, desvendei algum futuro. Não posso afirmar em que moldes. Do seu carinho, não seria justo duvidar. Numa sociedade volátil, em que importa o sexo desenfreado, o prazer momentâneo, que rapaz de vinte anos dá um presente a outro, passeando com ele, brincando, sorrindo, se nada sente?
    Guardei o embrulho na mala. Colocá-lo-ei aos pés da árvore.

    Perto do meio dia, regressei a casa. Falou-me por alto da possibilidade de passarmos o réveillon juntos. Teme que a mãe não vá para lado algum, o que o levará a fazer-lhe companhia. Falámos da faculdade, das notas - boas, segundo o que me contou. É um dos melhores alunos da turma. Gaba-me as notas, jamais por inveja. Elogia-me. Faço-me de acanhado, mas gosto. Só me desagrada quando refere que sabe menos ou que sou melhor do que ele. Custa-me ouvir e não é verdade, de todo. Dessem-me qualquer coisa agrícola para as mãos e nada saberia fazer com aquilo.
    Gosto dele assim, simples.

   O melhor presente que me podia dar era a sua presença. O seu carinho.
   Habituei-me ao pouco que dá, que é muito se olharmos com atenção.
   Embora sinta saudades dos seus beijos, há maturidade. Estabilidade.
   Vai chegando.

3 de dezembro de 2013

Trato social.


   Independentemente da educação que tivemos, a nossa conduta deve pautar-se por algumas regras mais ou menos óbvias de convivência com os demais. Quando não as adquirimos com a idade, aprendemos com os que nos rodeiam, pela observação, no quotidiano. Prezo a individualidade acima de tudo e não devemos alterar o que somos perante as circunstâncias. Apesar disso, e ressalvando a personalidade de cada um, podemos modelar os comportamentos, adaptando-os às várias situações com as quais nos deparamos.

    Sempre tentei ser correcto. Isso implica ser educado e atencioso, agradecendo, por exemplo, à senhora que faz o favor de perder quinze minutos a tirar as infinitas fotocópias de que preciso ou à empregada do bar quando tenho realmente de almoçar na faculdade. Correcto, a meu entender, abarca a linguagem que se usa. Nesse sentido, seja dentro ou fora da faculdade, em casa ou na rua, com conhecidos ou estranhos, nunca de mim saiu um palavrão, uma asneira, como lhe queiram chamar, até mesmo palavras indelicadas. Não as ouvi em casa, aprendendo-as mais tarde. Falta não me fizeram. Tive o bom senso de nunca as assimilar, expurgando-as do meu vocabulário diário, reduzindo-as a um inevitável e infeliz campo do conhecimento.


    Já no colégio, mas sobretudo na faculdade, ouço asneiras dia após dia. Em alto e bom som, que a discrição é virtude que não paira sobre muitas cabecinhas. Com amigos, perto de professores, de senhoras de idade, pouco importa. Quando o palavrão está preso, prestes a sair, é só abrir a boca e ele flui, solto. Rapazes que acredito meus pares, a julgar pela aparência. De bem só terão o carro do pai e a casa com vista para o Tejo, porque os modos são imensamente vulgares, chegando quase a provocar-me o vómito. Em contrapartida, alunos há oriundos da periferia, dos locais mais recônditos e estranhos deste país, de uma educação irrepreensível.

    Tenho pavor a gente rude. Entro em pânico. Lidar com pessoas assim é um sacrifício. E não me remeto apenas às asneirolas que saem da boca das criaturas. Isso é o menos. Abrange o seu jeito. Aquele ar pesado, grosseiro. As conversas que ecoam pelos corredores, audíveis ao mais surdo que passe, os comportamentos próprios de quem nunca foi repreendido ou ensinado. Seres boçais. 

   Não sou viajado. Muitos dir-me-ão que por lá fora será igual. Continuo a acreditar que haverá países diferentes. Quero crer que o norte da Europa, Escandinávia, não se assemelha a isto. Se os cidadãos são esclarecidos e tolerantes, associo a uma educação limada, um pouco mais, que nunca fui de pedir muito. Bem sei que há pior; o que nos impele, contudo, é a evolução. Temos de olhar para o que é melhor, fazendo de tudo para lá chegar. O que está para trás é passado.

     Assim eu possa sair daqui. E nunca mais cá voltar.

28 de novembro de 2013

À noite na cidade.


  Passei a tarde do último sábado a estudar. Fiz o exercício que me foi pedido e organizei a matéria para o próximo mini-teste a determinada disciplina. Mini na nomenclatura, visto que se trata de uma clara subversão ao sistema. Terá apenas duas perguntas que valerão por quatro ou seis. É uma boa piada para contar aos alunos do primeiro ano, não a mim. Às tantas, já não podia ver os apontamentos e os livros. Espetei com aquela tralha numa gaveta e saí. Tentei limpar o meu disco rígido. Que raio!, quando sempre disse a mim mesmo que jamais me renderia à trampa da faculdade, vejo-me na iminência de me tornar um verdadeiro autómato como muitos que por lá andam.

   Apanhei o metro e saí no Marquês. Desci tudo até ao Rossio. Enquanto caminhava, observei grupos de jovens, uns mais novos, outros da minha idade, razoavelmente, e ainda mais velhos, animados. Aparentavam, se tanto. Um rapaz mexia compulsivamente no telemóvel. Saíra do MacDonald's, a farda não enganava. Eis ali um trabalhador precário, futuro jovem desempregado, quiçá, alegre e sorridente. Quantos dirão que o futuro nada de bom lhe trará? A verdade é que sorria, sorria desalmadamente. Provavelmente teria a namorada à espera, ou o namorado, para uma noite de copos e folia. O nono ano de escolaridade poderá não lhe proporcionar tempos risonhos, mas a felicidade estampada no rosto, essa, certamente não seria da responsabilidade de um quarto ano de Direito com expectativas reais e muito concretas de um mestrado promissor.

   Não me agasalhei o suficiente. O princípio de constipação que se iniciara no dia anterior, intensificava-se com o avançar das horas. Entrei na Rua do Ouro. Já são visíveis os postes das luzes natalícias, armados, embora desligados. Na escuridão da rua, atenuada pela passagem dos veículos e por algum comércio que resiste ao frio e às vinte e uma e trinta, um edifício sobressai. A sede de um banco, de estilo neoclássico, todo iluminado, resplandecendo como um único halo brilhante. Do lado oposto, num degrau baixo, um rapaz apoiava um caderno de folhas brancas, de desenho, sobre a mochila e o seu colo. Estava a desenhar o prédio e a iluminação circundante, atraído pela cor e pela luz. Atentou em mim. Retribuí o olhar. Um súbito pé de vento revolveu-me o cabelo. A garganta doía mais e mais. Já sentia os gatinhos a arfar nos pulmões. 
  Invejei-lhe a destreza e a liberdade. Ali estava ele com o seu bloco, desenhando ao relento.

 Quis parar. Não parei. Só um louco dirigiria a palavra a um estranho. Sabe-se lá de onde é, o que faz, que história tem. O carácter não se vê no rosto, na expressão, que me pareceu dócil. Oh, mas o que me levaria a falar com aquele rapaz, não, não, não! Retomei o passo que abrandara. Quis olhar para trás, não o fiz. Chegando à Praça, senti-me só.

Que louco falaria com um estranho?

   Um louco que se aventurasse na calada da noite, que ousasse desafiar a lógica e a razão. O louco que nunca fui. E por isso tenho os livros.

22 de novembro de 2013

Assistente.


      Neste último Verão, foi aprovado o novo regulamento de avaliação. Se a figura das aulas plenárias já existia, embora informalmente, foi repristinada. As aulas práticas mantiveram-se inalteradas - e bem. Não há jurista sem o caso concreto. Diria mais: o que importa é entender e problematizar. Resolver também, como é evidente, mas o universo de novas questões suscitadas é muito aliciante.

    As aulas práticas têm o pendor de exigir uma participação activa dos alunos. O novo regulamente veio atribuir a essa componente um peso significativo. Ora eu não gosto muito de participar. Não por timidez. Não é esse o caso; nunca fui tímido. Não gosto de o fazer porque prefiro estar sossegado. Falo quando acho que devo falar e pouco mais. Até então, analisando os três anos precedentes, a parte oral sempre foi o meu calcanhar de Aquiles. Um por outro assistente referiu isso, não muitos, até porque a parte escrita compensava, e como, modéstia à parte, essa lacuna. Todavia, valoriza-se imenso, demasiado, a meu ver, a oralidade. Falam dos tribunais, da argumentação - e têm razão. Quanto a mim, como não pretendo exercer, não vejo vantagens ou qualquer problema por não me esforçar minimamente em falar e falar. Sento-me na segunda fila, de quatro, a meio, sensivelmente, e por lá fico. Ouço atentamente as resoluções dos casos, emendo quando tenho de corrigir algo, e é este o meu método. Posso dizer, mais das vezes, que as minhas resoluções estão quase sempre certas, não inteiramente, porque sempre falta algo. Nisso eles são terrivelmente chatos. Acaso participasse, sair-me-ia bem, mas não quero porque não quero. É ponto assente.


     Este ano, para minha pouca sorte, dei com um determinado assistente que não me deixa em paz, permitam-me a expressão. Não há aula em que não refira o meu nome. Fá-lo para me fazer perguntas e, quando assim não é, para se meter ostensivamente comigo. Na segunda, disse, em plena aula:

- Mark, está a dormir?

     Todos os colegas olharam para mim, ou quase. Eu não estava 'a dormir'. Pelo contrário, estava atento e a tirar tópicos de correcção do caso. Não gostei e fiz questão de o demonstrar com a expressão facial. Na terça, devido à falta do senhor professor, ficou incumbido de dar a aula teórica. Pois bem, lá sorriu, sarcasticamente, para mim. Virei-lhe a cara. Na quarta, de novo numa aula prática, pediu-me, simpaticamente falando, ou, em linguagem corrente, 'é melhor fazeres ou lixas-te', para resolver um caso prático, o número 7, que é enorme! Em princípio, resolvê-lo-ia como sempre faço. Agora, contudo, tenho essa obrigação. Ah, claro, já me esquecia, para a próxima segunda-feira, na aula, e em voz alta. Basicamente, tenho de me levantar, ir ao quadro, virar-me para a excelsa plateia e começar a falar. Aposto que o fez para me provocar, para testar a minha paciência.

    Eu tenho uma opinião sobre isto: uma vez que ainda não tivemos nenhum elemento escrito de avaliação, graças a este regulamento em vigor, o senhor deve pensar que sou burrinho. Como não abro a boca nas suas aulas, como não tem qualquer dado de cômputo quanto a mim, provavelmente é o que pensa. Entretanto, há mais alunos que nunca participam e ele nada faz. Não me faltava mais nada!

    Já disse à mãe: se tiver de ir a método B, ou seja, o método para quem não consegue nota de avaliação contínua, pois bem, irei. Será a primeira vez, mas não me importo. Quanto à tarefa, nem sei se farei o caso. Vou pensar. Admitindo que o faça, dir-lhe-ei que não. Não quero falar, muito menos porque faz parte de um mero capricho seu, uma birra comigo, qual menino birrento. Para mimado basto eu. Se persistir, deixo de ir à sua disciplina, faço no tal método e pronto. Se tiver de ir a oral de passagem, a primeira, irei também. Não há-de ser mais teimoso.

       Sinceramente? Já não o posso ver.

16 de novembro de 2013

Guerra Luso-Holandesa (1600 - 1663)


   Não seria excessivo designar a guerra entre as duas potências marítimas europeias como a verdadeira - e legítima - Primeira Guerra Mundial. Envolvendo mais do que Portugal e os Países Baixos, participaram ainda ingleses, dinamarqueses, espanhóis, japoneses, congoleses, persas, indonésios, cambojanos... Em boa verdade, o impacto provocado pelas baixas foi significativamente menor no conflito que se travou por mais de metade do século XVII, todavia, a população mundial era inferior. Que não se duvide da escala mundial do conflito: desde os campos da Flandres ao mar do Norte, passando pelo estuário do Amazonas, o interior de Angola, a ilha de Timor e a costa do Chile, as armadas dos dois países travaram importantes e decisivas batalhas que marcariam a geopolítica do planeta.

    Quando os Países Baixos se rebelaram contra a Espanha na Guerra dos Oitenta Anos pela sua independência, as possessões portuguesas foram o principal alvo da cobiça neerlandesa. O cravo-da-índia e a noz moscada das Molucas, a canela do Ceilão, a pimenta do Malabar, o ouro da Guiné e de Monomotapa, o açúcar do Brasil e os escravos da África Ocidental aguçaram a vontade holandesa em dominar o comércio que ao longo do século anterior tinha sido exclusivo de Portugal.
   As populações dos dois países eram relativamente idênticas em número, na proporção de um milhão e quinhentas mil pessoas nos Países Baixos para um milhão, duzentas e cinquenta mil em Portugal. Não terá sido esse o factor determinante para o sucesso inicial da investida holandesa. A disciplina, o porte físico, a alimentação e o poderio naval, superiores na contraparte, explicam a demora portuguesa em lograr sucesso, inicialmente, face aos sucessivos ataques aos seus domínios.

    Importa fazer um enquadramento. Nos finais do século XVI, Portugal encontrava-se num posição delicada, unido que estava à poderosa Espanha. Tratando-se de uma mera união pessoal, em Filipe II (I de Portugal), à semelhança da Escócia e da Inglaterra desde Jaime VI (I de Inglaterra), Portugal era a parte mais débil da união ibérica, o que resultou numa maior facilidade dos Países Baixos em atacar as possessões lusas. Por outro lado, a vantagem de atacar as potências ibéricas nos territórios de onde extraiam as riquezas para financiar a guerra fez todo o sentido. Desde o início da dinastia filipina, Portugal sentiu que a união com Espanha seria desastrosa. Efectivamente, não sem algum exagero, um dos motivos preponderantes que levou às ofensivas holandesa e inglesa, também, às possessões portuguesas, foi a união política com Espanha. Guerra que teve o pendor religioso próprio da época, na medida em que os portugueses, católicos apostólicos romanos, e os holandeses, calvinistas, se consideravam como os legítimos representantes da verdadeira religião. Demonstrando o conflito religioso, um cronista português do século XVI escreveria: "Os holandeses são apenas bons artilheiros, só são bons para ser queimados como heréticos inveterados (...)".

    À medida em que o tempo passava, os holandeses procuravam dirigir os seus ataques às colónias portuguesas na África, Ásia e América, litorais e costeiras, que eram de fácil penetração se comparando às vice-realezas espanholas do México e Peru.
      A expansão holandesa nos mares teve tanto sucesso quanto o início dos descobrimentos portugueses um século antes. Não seria justo negligenciar o facto de os neerlandeses atacarem também os domínios espanhóis. Em simultâneo com um ataque ao Brasil em 1624 - 1625, uma frota de onze navios e perto de dois mil homens navegou para o Pacífico através do estreito de Magalhães e atacou vários entrepostos do Peru e do México. Além disso, enquanto lançavam meios contra as colónias portuguesas asiáticas, não deixavam de investir nas Filipinas, domínio castelhano.


     O conflito luso-holandês começou com os ataques a São Tomé e ao Príncipe entre 1598 e 1599 e terminou com a conquista das colónias portuguesas no Malabar, em 1663. A paz com os holandeses só seria firmada seis anos mais tarde, em 1669, em Lisboa e Haia. Até 1640, os portugueses e os espanhóis lutavam contra um inimigo comum; a partir desta data, e dada a Restauração portuguesa, os lusos tiveram de lutar contra Espanha, na península, e contra a Holanda, no ultramar. O resultado final foi contundente: uma vitória holandesa na Ásia, um empate luso-holandês na África Ocidental, e uma vitória portuguesa no Brasil.

   As razões para a vitória dos holandeses na Ásia podem ser brevemente reduzidas a três motivos fundamentais: recursos económicos superiores, número de homens e poderio marítimo. O padre António Vieira, num escrito da época, relatou que os Países Baixos dispunham de catorze mil navios que podiam ser utilizados como barcos de guerra; Portugal não possuía nem treze navios da mesma categoria. Um censo de 1620 apurou apenas seis mil duzentos e sessenta marinheiros para tripular uma frota; em 1643, soube-se de que não havia em Lisboa um número significativo de homens que pudesse dirigir quaisquer navios até à Índia. Os neerlandeses, entretanto, tinham mais conhecimentos de estratégia naval do que a maioria dos vice-reis portugueses de Goa. Um dado curioso importa ressalvar: os portugueses contavam quase exclusivamente com fidalgos e senhores de linhagem para chefes navais e militares, ficando em desvantagem face aos holandeses que, acertadamente, apostavam mais na experiência e competência profissional. A burocracia já se fazia sentir naquela época. Um comandante português escrevia, desde a costa do Malabar, o seguinte: "Qualquer capitão holandês tem plenos poderes e muito dinheiro para utilizar em qualquer altura (...) Quanto a nós, temos de conseguir o beneplácito de uma autoridade superior (...)".

      O físico e a alimentação, já citados, constituíram outra desvantagem para os portugueses. Se os holandeses já naqueles tempos se queixavam da qualidade das suas rações, um soldado português escrevia, em 1644: "Estamos tão magros e tão esfomeados que nem três de nós se equiparam a um holandês (...)". A falta de disciplina e a excessiva autoconfiança ajudariam na vitória holandesa pela Ásia. Francisco Rodrigues da Silveira (1558 - ?), autor do manuscrito Memórias de Um Soldado da Índia, escreveria, em 1595, de que a maioria dos soldados de Ormuz dormia e habitava regularmente fora do castelo e, atente-se!, vinha fazer sentinela duas horas atrasados e, já atrasados ao serviço, mandavam à sua frente dois escravos para lhes transportarem as armas. Relatos da época dão-nos a conhecer de que em 1649, quando alguns marinheiros holandeses desembarcaram em Damão, não foram interpelados e nem encontraram qualquer sentinela porquanto toda a população dormia profundamente durante a sesta do meio-dia até às quatro da tarde. Maravilhoso! Há também referências à falta de munições por parte das tropas portuguesas e às armas enferrujadas e não utilizáveis.

    Considerando todas as vantagens de que os holandeses dispunham, poder-se-ia perguntar, então, qual o motivo que os levou a perder a guerra em Angola, São Tomé e Príncipe e no Brasil, depois de terem levado uns meros seis anos a destruir todas as praças portuguesas, uma por uma, na Ásia. Pode-se mencionar um: se bem que os homens holandeses eram, biologicamente, mais fortes do que os portugueses, e melhor alimentados, os portugueses estavam melhor aclimatados aos trópicos. Isso explica a vitória portuguesa no Brasil, nas célebres batalhas dos Guararapes em 1648 e 1649. Mas já no Ceilão, também ele tropical, os portugueses não conseguiram levar a melhor.

      Excluindo estas considerações, a razão básica que explicará o facto de Portugal ter conseguido manter uma parte tão extensa do seu império, mesmo após todas estas décadas de conflito, é a de que os portugueses, mal nutridos, preguiçosos, tudo isso e muito mais, ganharam nas raízes profundas enquanto colonizadores. Os holandeses não eram indiferentes a isto. Antonio van Diemen, governador-geral, escrevia, em 1642: "A maioria dos portugueses da Índia considera esta região o seu país-natal. Já não pensam mais em Portugal (...)". O cabo holandês Johann Saar acrescentaria: "Seja onde for que cheguem (...) os portugueses pensam estabelecer-se aí e nunca mais pretendem voltar a Portugal (...) Um holandês quando chega à Ásia pensa: quando o meu serviço militar de seis anos acabar, volto para a Europa (...)".

      Mutatis mutandis, a colonização do Brasil durante os efémeros anos de ocupação holandesa foi uma árdua tarefa. Maurício de Nassau, governador no Brasil holandês, avisou por diversas vezes os seus superiores em Haia e Amesterdão de que, a menos que enviassem holandeses, escandinavos ou até mesmo alemães para se substituírem ou misturarem com os colonos portugueses, estes manter-se-iam portugueses de coração para sempre. Regressando à Índia, relatos dão conta de que os indianos preferiam mil vezes negociar com os portugueses do que com os holandeses. Outro motivo de ordem social está directamente relacionado: os portugueses envolviam-se com indianas em muito maior escala do que ingleses ou holandeses, mais preocupados com a pureza de sangue. O catolicismo e as missões religiosas ajudaram a cimentar a posição portuguesa nestas terras longínquas. Embora coercivamente, os portugueses conseguiam implementar a sua religião, e língua, de modo mais fácil e profundo. Antonio van Diemen diria: "Os missionários portugueses são muito superiores e os seus padres papistas mostram muito mais zelo e energia do que os nossos pregadores leigos (...)". Mesmo nos locais dominados pelos holandeses, frequentemente as populações se esquivavam aos ritos protestantes e seguiam algum padre português às escondidas, rezando a missa e baptizando os seus filhos.

     Na língua, os portugueses levaram a eterna vantagem sobre os seus rivais. Uma vez que começaram primeiro os descobrimentos, os portugueses levaram a sua língua através dos mares, da América à Ásia, passando por África. O português tornou-se a primeira língua franca do comércio e dos negócios ou, em alguns casos, uma adaptação do idioma, que originaria os diversos crioulos. Na altura em que foram substituídos pelos holandeses em diversos domínios, a língua portuguesa já estava de tal forma implementada e enraizada que os holandeses não conseguiram erradicá-la. Durante os vinte e quatro anos de ocupação holandesa no nordeste brasileiro, a população local recusou-se obstinadamente a aprender o holandês. Em Angola e no Congo, a maioria dos escravos manteve a língua de Camões, não fazendo qualquer esforço para aprender a língua dos seus senhores. Ironia das ironias, a supremacia da língua portuguesa sobre a de Vondel é observada na Batávia, a capital colonial holandesa. Os portugueses só aí estiveram como prisioneiros de guerra, contudo, um dialecto crioulo português foi introduzido por escravos e criados domésticos a ponto de ser aprendido pelos próprios holandeses que consideravam uma honra saber falar outro idioma. A cultura do povo holandês assim o explica. Cultura essa que jogou contra eles neste aspecto. Aliás, o português influenciaria o idioma africânder na África do Sul, língua de origem maioritária holandesa.

11 de novembro de 2013

Sunday morning.


   Pela manhã, abrindo a janela do quarto, descobri um sol bastante auspicioso. Um quarto, meia hora mais tarde, as nuvens encobriam-no, revelando uma claridade acinzentada, própria do Novembro. De temperatura amena, concordei quando optou que o nosso encontro ficasse marcado para o domingo. Aos sábados, está com a mãe, dá-lhe atenção, escuta-lhe as maleitas, conforta-a. Estuda, sai, caminha sozinho como gosta. Não sendo o que se chamará de prioridade, continua a gostar de estar comigo e, neste jogo de dá-recebe, todos ficam a ganhar.

   Não o via há três semanas. Semanas que pareceram meses e que, ou muito me engano, são um prenúncio. Achei-o um tanto ou quanto irónico, meio que despregado. Como sempre, anda aceleradamente, contudo, não mais acompanha o meu passo. Desvendei-lhe o primeiro sinal.
   Decidimos, na noite anterior, ir até ao Museu da Cidade. O jardim, agradável, propicia boas conversas. Os bancos, verdes, de uma madeira pintada até à exaustão, não poderiam ser maiores, aumentando a distância entre nós. Falou-me dos trabalhos, do curso, uma vez mais, do jantar de turma e, veja-se, de uma possível ida a um bar com colegas. As pessoas, de facto, são uma caixinha de surpresas. À minha constatação do frio que se fazia sentir, repentino, surgindo com um vento, não demonstrou qualquer preocupação. Resolvemos entrar no museu. Valeu a pena.


   Conhecendo-o de uma ponta à outra, nunca me canso de revisitar a história de Lisboa, os seus rostos por séculos. Num dia particularmente estranho, o semblante de D. Maria I, a minha monarca favorita, trouxe-me algum alento. Uma mulher inteligente, perspicaz, religiosa demais, talvez, crescendo num período difícil de grandes mudanças sócio-políticas. Não conseguiu, ou não soube, adaptar-se aos revezes da vida, caindo num longo quadro psicótico de vinte e quatro anos. Pobre D. Maria!

   Aconselho vivamente. Além de abordar a cidade desde os seus primórdios, passa pela Idade Moderna, pelo terramoto, claro está, e pelo liberalismo (século XIX) até à I República. Numa maquete, vê-se claramente as diferenças arquitectónicas entre a Lisboa medieval e a cidade nova que nasceu com o engenho e a astúcia de Pombal. Não fosse a catástrofe e, hoje, o que teríamos? Ruas estreitas, prédios inclinados, um palácio da Ribeira, paço da Corte, cheio de tesouros incalculáveis, mapas dos descobrimentos e uma biblioteca riquíssima que sucumbiu nos escombros. Estou de mal com o terramoto. Ao menos poupou-nos o Aqueduto, os Jerónimos e a Torre de Belém, malandro.


   Foi uma visita curta, tão curta quanto os olhares que trocámos. Deu para pegar nuns ramos de umas árvores e explicar-me acerca dos frutos, das flores, das pragas, dos bichos todos e mais alguns, indiferente a mim, à minha presença. Voltámos a ser dois estranhos. Sei, porque sei, que não é nada pessoal. Ele é assim, arredio. É dele. Não sabe o que quer. Acredita, provavelmente, que casará, terá filhos, será muito feliz. E espero que o seja. Mas que não deixe a mulher, de noite, e os filhos, dormindo, enquanto se perde em escapadinhas fortuitas nas camas de outros homens, cuja carne devora sofregamente. Ou pior, que se torne um decrépito homem, só, abandonado, dando o seu corpo em troca de prazer fugaz. Eu não estarei lá para ele.

    Despedi-me com um aperto de mão e virei costas. Não olhei para trás. Pela primeira vez.

5 de novembro de 2013

Encanto.


    A faculdade, à noite, tem vida. Até uma determinada hora. Assistir às aulas do quarto ano / turno da noite tem sido compensador. Mudam os professores, muda o ritmo e a sequência programática, completando-se assim algumas lacunas que fiquem. O anfiteatro está aberto e a entrada é livre. A mãe fica possessa pelas horas que passo por lá. Estou feito bicho universitário no melhor dos sentidos. Há quem o seja noutros. Salvo a honra do convento pela necessidade.

    Estabeleci um objectivo concreto: superar-me a mim mesmo. Tenho de ter a melhor média, dos quatro anos, neste ano. Quero subir e, não o fazendo agora, chapéu. E como chapéus há muitos, já dizia o saudoso Vasco Santana, eu não quero pertencer a esse grupo alargado de chapéus. De preferência, um dos modelos únicos.

   Claro que há sempre tempo para descontrair e até navegar pela net, não sujeito que estou a atenção constante. Isso já o faço de dia. Consigo direccionar a atenção para onde quero. É uma qualidade, mais que defeito. Num desses momentos monótonos, à noite, assisti a uma cena que muito me agradou. Nada comigo, é certo, mas evidencia uma realidade que cada vez mais é perceptível.


    Na bancada em que estava, no sentido oposto, um rapaz olhava constantemente para outro, imediatamente abaixo. Em bom rigor, observava-o enquanto este mexia no tablet, assim pensei eu. Todavia, insistindo, cedo me apercebi de que havia algum interesse. Por vezes, do tablet o rapaz passava para o cabelo do outro, e para o peitoral, e para os braços, e era todo um olhar enternecedor de alguém que estava visivelmente interessado. O segundo rapaz teve noção de que alguém olhava com insistência para si, não para o seu tablet, e não demonstrou qualquer incómodo. Na verdade, já o conhecia não só de o ver nas aulas nocturnas, como também do metro, visto que sai na mesma estação que eu. É elegante, alto, entroncado.
   Assim passaram os cinquenta minutos, um jogando, fingindo-se de parvo, e o outro apreciando e apreciando. O que achei mais engraçado foi ao olhar do primeiro rapaz, de uma ternura apaixonante pelo segundo. Acredito que já o andasse a rondar. No final da aula, o rapaz do tablet saiu e o primeiro, atrapalhado, levantou-se num ápice e até deixou resvalar a mochila para o chão. Não contive uma risada silenciosa e discreta. Tive imensa curiosidade em saber o que estaria a acontecer lá fora.
       Tudo isto foi há dias.


       Ontem, passando pelo bar da faculdade para comprar um sumo, vi-os a entrar, sorridentes.

    É de momentos como estes que o mundo precisa. De pessoas que se conhecem, se dão e trazem algo consigo. Fiquei feliz por aqueles dois rapazes, colegas, que não conheço e com quem nunca falei. Feliz porque assisti ao nascimento de qualquer coisa, o que eles quiserem, o que pretenderem construir, seja o que for.


31 de outubro de 2013

Castelo de cartas.


   Em casa da avó sem nada para fazer, ontem, ao final da tarde, resolvi folhear uma das inúmeras revistas do social que existem. A avó não tem por hábito ler este tipo de publicações, contudo, foi induzida pela curiosidade mórbida que afecta a generalidade das pessoas. Interessou-lhe, em concreto, a recente polémica que dá conta da separação tumultuosa de Bárbara Guimarães e Manuel Maria Carrilho. Também eu li os desenvolvimentos...

   Acima de tudo, entristeceu-me. Não concebo o final de anos de vida em comum deste modo tão grotesco e pouco dignificante. Li as mais diversas acusações, de violência doméstica a tentativas de invasão de domicílio; de alcoolismo a operações plásticas que tentam contrariar a passagem do tempo. Um rol de mexericos que aguçam a inveja alheia e a deleitam.

   Bárbara Guimarães e o marido eram aquilo a que se poderia facilmente chamar de casal perfeito, ou perto disso. Ela como apresentadora de topo de uma estação televisiva; ele como político, qualquer coisa perto de filósofo e ex-governante. Sobre eles pairava um manto de glamour e discrição. Houve quem chamasse de conto de fadas, uma história exemplar que tudo tinha para se manter ad aeternum. Mas, como no melhor pano cai a nódoa, o corte abrupto levou a que viessem a público os escândalos e as intrigas. A Comunicação Social, no seu pior, como sempre, aproveita ao máximo cada palavra, cada pedaço de infelicidade para lucrar. E como lucra! O descontrolo emocional de ambos completa, alimentando revistas que nada fazem a mais que não seja subsistir à custa da vida privada de terceiros.

  No meio, os filhos, sobretudo o menino com perto de dez anos. Não posso deixar de atentar nas repercussões óbvias que estes comportamentos têm numa criança que se apercebe de tudo em seu redor, não sendo indiferente ao que se passa. Em experiência própria, que vivi de perto um processo de divórcio, sei que por mais se tente manter um filho à parte, vulgarmente somos os primeiros a perceber que algo está errado. Tinha mais quatro anos. Faz toda a diferença. Catorze, perto de quinze, ou dez, implica na compreensão.

   A separação dos pais foi pouco dolorosa para mim. O amor terminou. Não houve qualquer episódio de violência, como, aliás, nunca houve em quase duas décadas de casamento. Nem verbal. Jamais ouvi uma discussão.
    Jantavam num clima de frieza tal que pareciam dois estranhos. Não tardou a que o pai me sentasse no sofá, ajoelhando-se aos meus pés, pegando-me na mão e explicando-me a sua decisão irreversível de sair de casa. E saiu.
   De mútuo consentimento, o divórcio foi célere. Menor que era, em relação a mim tudo ficou esclarecido, decidindo-se, claro está, pela minha permanência em casa com a mãe. As visitas do pai não teriam hora ou dia marcados. Foram de uma sensatez irrepreensível. Hoje, anos volvidos, admiro-os por evitarem ao máximo que sofresse. Viria a sofrer, sim, mais tarde, com o envolvimento da mãe com outra pessoa, o seu actual esposo.

     Posto isto, é pertinente dizer que acredito em separações quase perfeitas, se relacionamentos não os há. É possível minimizar os efeitos colaterais nos filhos e demais parentes envolvidos, assim haja calma e respeito. Porque o amor pode terminar, até mesmo a amizade, admito, mas nunca o respeito. E o respeito não necessita de se extinguir com o amor, a atracção. O respeito cimenta-se ao longo dos anos e, no caso dos pais, sempre existiu e esteve presente.
    Actualmente não têm contacto algum, nem interesse recíproco. Não se vêem há uns anitos. Mas sei que, acaso estivessem um na presença do outro, cumprimentar-se-iam cordialmente.

     Lastimo que figuras públicas, de responsabilidade acrescida, não se pautem pelos mesmos critérios.

25 de outubro de 2013

Tutoria.


   Nunca demonstrei qualquer interesse pela vida académica. Habituei-me desde cedo a separar as águas. Lá dentro, o meu papel consistia em ser um estudante aplicado, tirar boas notas nas provas e tentar, no meu limite, ter as melhores classificações que podia. Notando em mim capacidades para tal, recordo-me de, no segundo ano, ser convidado para ser vogal de uma lista qualquer que se propunha às eleições dos cargos associativos. Recusei. E fi-lo porque me roubaria muito tempo e distrairia no essencial, o estudo. Quase que se vislumbra uma atitude semelhante em cargos políticos. Dali saem os futuros senhores que mandarão no país. A par, talvez só os de Economia. Provavelmente terei, como já tive, colegas futuros ministros, secretários de Estado, por aí. Não sou politizável. Não almejo o poder. O poder, no meu entender, é algo que corrói, que machuca. Torna-se um vício. E corrompe. Corrompe muito. Quem manda, quer mandar mais e mais. É terrível.

   Nesse sentido, sempre me mantive suficientemente distante de tudo o que envolvesse esses cenários alternativos. Não sou interventivo. Gosto de me manter no meu espaço. Nada tenho a provar e sou ambicioso q.b. De todas, a maior que tenho é a de ser licenciado, atestar os meus conhecimentos de qualquer forma. O currículo, o certificado, será uma mera confirmação. Algo se exige em troca, claro.


    Criaram um novo instituto: a tutoria. Sendo um conceito antigo, soa-me mal. Leva-me ao Estado Novo. Não gosto. Mas gosto, sim, do fundamento: auxiliar alunos que tenham dificuldade com as diversas matérias. Unindo esforços, os melhores alunos a determinadas cadeiras tornam-se tutores de outros, ajudando-os na compreensão dos programas e até na resolução de casos práticos. Pela primeira vez, que me recorde, aplaudo uma iniciativa por lá.
     Falando acerca de tudo isto com a mãe, sugeriu que me tornasse tutor, nomeadamente às disciplinas que considero favoritas e onde obtenho resultados mais satisfatórios. Falou-me do primeiro ano. Por que não ser tutor das cadeiras histórico-jurídicas? Se escrevo sobre isto é porque estou com alguma predisposição em aceitar, contudo, importa referir que não tenho vocação para explicar, embora acredite que possa parecer o contrário. Um dos motivos que me levou a afastar um determinado rumo no ensino superior foi precisamente o de saber que, caso fosse direccionado para o ensino, seria um desastre, além de todas as implicações emocionais e de realização pessoal envolvidas. Não sei estar numa mesa a explicar matérias a outrem. Não levo o menor jeito. A falta de paciência é um dos principais obstáculos. Fá-lo-ia num sentido totalmente altruísta, atenção, mas há uma certa recompensa acessória: ao que sei, este acto, eu diria, nobre, constará nos currículos de todos aqueles que vierem a ser tutores. O espírito é apenas e tão somente o de ajudar colegas.

     Seria, outrossim, um modo interessante de me tornar útil - e tanto falei disso por aqui.
     Teria de me informar e o mesmo jamais poderia colidir com o meu estudo e com as horas do dia que guardo para mim, e merecidas são.

   Para melhor meditar sobre o assunto, vou tirar o dia de amanhã e sair. Talvez faça umas compras de Inverno. Preciso de renovar o roupeiro. 
      Sozinho, porque sou o meu melhor conselheiro.

21 de outubro de 2013

Weekend.


   Não pudemos estar juntos no fim de semana passado. Encontrando-se em mudanças, não conseguiu um momento do dia em que estivesse disponível. Não mora na cidade, mas sim nos arredores, o que implica uma deslocação forçada à capital apenas para me ver. Compreendi os motivos. Tampouco poderia ser de outra forma.

   Nesta sexta-feira, marcámos uma visita à Estufa Fria para a manhã de domingo. Há anos-luz que não ia lá. Da última vez, se a memória não me atraiçoa, era bem criança e fui com os pais. Geralmente, nunca podiam estar comigo em lazer. Era isto, ou aquilo... Daí que guarde com cuidado os momentos de diversão. Diversão, sim, porque um petiz adora estar rodeado de plantas. Eu, certamente, gostei.


   Notei-o esquelético. A alimentação de refeitório começa a fazer das suas. Pese embora estivesse uma temperatura amena, envergava uma camisa vermelha, aos quadrados brancos, e um pull-over cinzento. Nos pés, os seus Merrell desportivos; sobre o corpo, um impermeável igualmente cinza. O casaco não lhe assenta bem. Fá-lo ainda mais magro (do que já é).
    Percorremos todo o perímetro da estufa. Não me recordava dos peixinhos, não tendo bem a percepção do tamanho. Parecera-me mais pequena.


     Trocámos mais impressões sobre a sua estadia na residência universitária. Falou-me do colega de quarto que tem apanhado bebedeiras quase diárias, das disciplinas que frequenta, da irascibilidade de alguns professores... Está entusiasmado com as cadeiras práticas, aquelas que implicam trabalhos nos campos. Falando-me de cada uma, achei interessante. Tem, segundo me disse, Horticultura, Fruticultura, Rega, Inimigos das Plantações (os insectos, pragas...), por aí. Contacta com a Natureza. Têm pouco para ler.

     Continua atencioso, no entanto, progressivamente distante. Evita todo e qualquer contacto, que também não evidencio querer. Demos um abraço fugaz, quase instantâneo, e meramente circunstancial. Algo desprovido de qualquer sentimento além de uma boa amizade. Tendo um amigo, o que quererei mais?


     Na noite anterior, estive no jantar que o João organizou. Não me alongarei nos motivos que o justificaram, algo que o João, quem de direito, fez - e bem - no seu espaço. Foi uma noite agradável, simpática. Demonstrou, uma vez mais, que o convívio que nasce na blogosfera pode, havendo vontade, passar para um real tangível. Revi pessoas que conheci no jantar anual realizado em Maio, conhecendo algumas. Parabéns ao anfitrião pela noite.

       Dormi poucas horas. O domingo começou cedo.

17 de outubro de 2013

Do liberalismo ao autoritarismo.


   Opondo-se ao absolutismo régio, o liberalismo vai surgindo nos finais do século XVIII como uma válida contraposição. Na mesma época da transição para o constitucionalismo, há ainda outra transposição: o republicanismo. Até ao advento da revolução norte-americana e da formação dos Estados Unidos da América (1776), o significado de república era outro. República vinha do latim res publica, algo que é público, de todos. Com o surgimento dos E.U.A, república adquiriu o sentido actual: não há um rei, mas sim um presidente sujeito a renovação periódica e limitada do cargo pela lei.

    Ora, uma das preocupações do estado liberal, porventura a maior, é a limitação do poder. O modo mais eficiente de limitar o poder é dividindo-o (" o poder limita o poder " ). Na visão política norte-americana, procurou limitar-se o poder também através do federalismo. A regra não foi seguida na Europa, sem prejuízo do caso suiço. 
    O liberalismo assenta em três poderes-base, chamemos-lhe assim: poder executivo, poder legislativo e poder judicial. Os poderes estão todos eles sujeitos ao princípio da legalidade. Nenhum poder pode extravasar os limites impostos pela lei. A formulação de um governo limitado pela lei é já bastante antiga, remontando a Jean Bodin (1530 - 1596). Este princípio levou a que em Portugal, nomeadamente, fossem abolidos os forais que não estavam de acordo com a lei. Mouzinho da Silveira (1780 - 1849) terminou com essa prática secular no nosso país.
     O princípio da igualdade é mais uma expressão do liberalismo: todos são iguais perante a lei, base fulcral de toda a sociedade assente na dignidade humana.

    John Locke (1632 - 1704) foi um dos principais teorizadores do liberalismo. Segundo Locke, existem direitos e o Estado tem de os proteger. A função do Estado é a da protecção dos direitos, contudo, sendo mínimo e pouco interventivo. Locke identificou três direitos anteriores ao próprio Estado: o direito à propriedade, à liberdade e à segurança. O constitucionalismo e a codificação das leis asseguram que estes direitos inalienáveis sejam tutelados. Foi apenas um pequeno passo para que o liberalismo caminhasse de mãos dadas com o positivismo, ou seja, a codificação que se registou ao longo de todo o século XIX.

     Ao lado destas formulações, a evolução histórica do liberalismo trouxe outras consequências: separação entre o Estado e a sociedade. Defendendo uma intervenção estatal mínima, os teóricos liberais rejeitaram contundentemente o designado paternalismo político.
     O capitalismo desenvolver-se-ia com o liberalismo, trazendo graves problemas para os trabalhadores, remetidos a condições indignas da condição humana, não diferindo muito dos escravos do Antigo Regime. Surgem movimentos anarquistas e as várias correntes do socialismo como forte oposição ao liberalismo. Na mesma época, Darwin (1809 - 1882) publica a sua obra A Origem das Espécies, propondo uma nova teoria para o desenvolvimento das diferentes espécies. Para este autor, só os melhor adaptados e os mais fortes sobrevivem. Estes conceitos, à partida interessantes e válidos, revelar-se-iam extremamente perigosos. O nazismo, ou nacional-socialismo, aproveitaria os ensinamentos de Darwin e proporia o Darwinismo político: pois bem, há espécies mais fortes do que outras, fundamentando a supremacia alemã sobre as demais.
      O liberalismo só seria definitivamente ultrapassado no final da I Guerra Mundial e a proliferação dos regimes anti-liberais (fascismos e nazismo). O que levou ao surgimento destes regimes? Com o final da Primeira Grande Guerra (1914 - 1918), a Europa encontrava-se arrasada economicamente. A assinatura do Armistício alemão acarretou graves e pesadas sanções àquele país. Hitler (1889 - 1945) surgiria como o Salvador, ao estilo do que acontecia em Portugal, sensivelmente pelos mesmos anos, com Oliveira Salazar (1889 - 1970) e a crise da I República (1910 - 1926). Hitler inspirar-se-ia, no seu anti-semitismo, numa ideia peregrina de inimigo público, alvos a eliminar. O Estado chamaria a si todas as competências e tudo controlaria. Fala-se do Estado total ou totalitário. Nele, não há margem para o individuo, ser autónomo, distinto, pedaço realizável da humanidade. O ser humano é, no Estado totalitário, um mero instrumento para a prossecução dos fins deste. Os meios de comunicação social, que começavam a despoletar, referindo a rádio e a imprensa escrita, por exemplo, eram meios de difusão da propaganda política. Importa referir que o Estado totalitário vai muito além do Estado absoluto: no modelo totalitário, não há individualidade. Como disse Mussolini (1883 - 1945): "Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado".
       Na Alemanha nazi, outro dos conceitos associado a este recrudescimento do Estado é o de espaço vital: a ideia de nação ultrapassa as próprias fronteiras. No caso alemão, a Alemanha eram todos os lugares onde residiam alemães, daí a anexação da Áustria, da Polónia e da Checoslováquia. Houve, também, resquícios de um imperialismo romano perdido.
     
     Em Portugal, não podemos falar de um totalitarismo, nem de um fascismo. Alguns autores, onde me incluo, têm insistido na definição de regime conservador, autoritário e corporativista. A definição é minha; a formulação é, apesar disso, partilhada, apenas. Elementos faltaram ao salazarismo para podermos considerá-lo como um fascismo. Salazar foi autoritário, não totalitário. A pessoa não desapareceu ante o Estado. Reforçou-se o Estado, porém, o indivíduo manteve-se. Autoritário pela existência de partido único, polícia política, repressão e censura.

     O fim dos regimes totalitários verificar-se-ia no pós II Guerra Mundial (1945). A afirmação das democracias seria um processo lento e gradual até aos finais do século XX.

13 de outubro de 2013

Rumo.


    Os últimos dias têm passado lentamente. Passarão à velocidade de todos os outros. Parecer-me-ão maiores pelo uso que lhes dou, mais centrado nos livros e nos apontamentos do que em pura distracção com trivialidades. Não consigo explicar o motivo que me leva a dedicar-me mais. Não sei se será revolta ou ambição. Pressa em acabar, talvez. Mal encaro aquelas paredes sufocantes. Ora acredito que gosto mais, ora apercebo-me de que procurar o mínimo de interesse por ali será em vão.

   A bibliotecária teve de me chamar à atenção. Não dei pela hora. Restava eu, ela, e a noite lá fora. Pelos corredores, alunos novos e menos novos, professores e funcionários. Há vida a horas tardias. A movimentação surpreendeu-me desde o início, embora conhecesse o horário nocturno. Não voltar imediatamente para casa ajuda a que não pense em detalhes que só me atormentariam. Ficar numa secretária, por entre os livros, é um isolamento consciente, seguro, controlável. Pouco cansativo. Mantenho a matéria em dia, o que não me leva a aumentar o ritmo. Chego a antecipar capítulos.


    O P. conseguiu um lugar numa residência universitária. Habitará um espaço com mais oitenta pessoas. Está preocupado com o acesso à internet, que soube lenta, e com a adaptação. Dividirá o quarto com um rapaz. O dia de hoje foi todo ele preenchido com os últimos preparativos para a viagem e acomodação. É, sem dúvida, bem mais aventureiro e ousado. Não conseguiria ter aquela determinação. Esforço-me pelo que quero, afinal, estudo, dedico-me, mas ele faz sacrifícios substancialmente maiores. Não será fácil deixar o conforto do lar, a comida da mãe, o cão que adora. Conhecendo-o como o conheço, já o vejo sentado ou deitado a fazer os trabalhos de casa, empenhado. Não é de festas. Cederá, não sem um grande esforço, a alguma noitada. Disse-me que o ambiente com os colegas é tão bom que já poderia considerá-los como uma grande família...

   Em contrapartida, tenho procurado resguardar-me de contactos com colegas. Relaciono-me com o grupinho de sempre, restrito, fazendo ainda assim um esforço com vista à progressiva desvinculação. Não sou de grandes conversas. Sendo auto-suficiente, prefiro dirigir-me a um professor caso tenha dúvidas acerca de um manual, de um artigo, de uma palavra que perdi do discurso. E descubro a cada dia um prazer enorme em estar só. Tem sido muito gratificante.
    Na biblioteca, há dias, um rapaz, que sei do terceiro ano, reparou com insistência em mim. Ambos esperávamos por vaga nos computadores. Olhando, chegou a anuir com a testa, franzindo-a, tentando comunicar comigo por estarmos à espera de lugar. Falei dele por aqui, num episódio no refeitório pelo ano lectivo passado, creio. O radar dele apitará, certamente, bem como o meu. Levo por aí. Bom, o tal radar apita imensas vezes, tal a quantidade. Somos mesmo muitos e, curiosamente, ao que sei, dos melhores. Faz recordar o papel das mulheres, discriminadas, que, tendo acesso à educação, suplantaram os homens no ensino superior. Há quem canalize o preconceito para se destacar, para vencer. Continua a fazer sentido.

        Terei de reflectir com muito cuidado em relação ao meu futuro, nos aspectos profissional e pessoal.
 
        Descobrir um rumo.

8 de outubro de 2013

Passeio.


   Conforme o combinado, eu e o P. saímos neste último sábado. É o único dia da semana que temos disponível, por enquanto, que a matéria adensar-se-á nos próximos tempos. Na sexta, abordei-o acerca da simpática lista que o Aaron tão gentilmente me facultou. Acabou por refutar a ideia, tomado pelo cansaço mais do que justificado. Pensou, então, que poderíamos passear pelo Parque das Nações, zona que abomino, reconhecendo, contudo, o sucesso do projecto Expo. Devolveu à cidade e ao mundo, por que não dizê-lo, uma parte abandonada e usada como depósito.

    Marcámos para as dezasseis. O P. chegou um pouco antes, como quase sempre. Percorremos o parque à medida em que falávamos sobre a semana de cada um, com destaque para a sua, para o início de aulas e de fase, afinal, é um novo estudante universitário, vulgo caloiro. Senti-o animado, pese embora fatigado, mas, sobretudo, preocupado. A mãe não anda particularmente bem; sendo hipertensa, não consegue controlar a pressão arterial, deixando-o extremamente inquieto. Moram sozinhos e não têm familiares por perto. A sua mãe é do norte do país. Teme, e com razão, que ela precise de algum cuidado durante o período do dia em que está nas aulas. Ofereci de boa vontade a minha ajuda, pedindo-lhe que lhe desse o meu número de telemóvel caso ela necessite de alguma coisa. Não estou por perto, mas seria um socorro mais célere. Não me quis incomodar, enfim. É de ideias fixas e determinado. Aliás, por ele e por mim.

    
    Estivemos juntos umas parcas horas. Vejo que ele faz um esforço no sentido de que mantenhamos um contacto amiúde. Há um empenho de ambos. Foi para estar comigo e pude ver as horas de sono mal dormidas no seu semblante, o tom pálido que não tinha, as forças que faltaram várias vezes. O lado bom de tudo isto é a concretização pessoal. Faz o que gosta, estuda o que lhe agrada, algo que não está ao alcance de todos. Estão a dar o parasita que afecta a cultura do tomate e isso deixa-o super entusiasmado. O curso é muito prático. Aprenderá a cultivar, a pôr adubo, todo um mundo que se desvenda aos seus olhos. Até sugeriu levar-me lá um dia. Aceitei o convite de imediato.

     Estou muito feliz por ele e senti uma vergonha enorme por, sem intenção, é facto, ter desdenhado da sua escolha. Nunca lho disse. Pensava. E essa vergonha adveio do carinho dele para comigo e da alegria que o invade por se sentir bem com o que faz. 

      Mais uma lição que aprendi. Como já li algures, deveríamos ter duas vidas: uma para errar, outra para viver.

       E os sábados são nossos.

3 de outubro de 2013

Primeiras impressões.


  As aulas (re)começaram há duas semanas, relativamente. O horário mudou e, a contrariar as minhas expectativas, está a ser interessante. Não sei se cheguei a referir a minha indiferença, para não apelidar de desdém, em relação à licenciatura que escolhi. Até então, aprendi a tolerar. É preciso chegar ao final para aprender a gostar, o que é substancialmente diferente. Consegui estudar, ter sucesso nas provas e transitar sem sentir qualquer apelo. Não poderia dar anos por perdidos, jogar fora o investimento dos pais no meu futuro e, de certa forma, assumir que errara. Não seria um curso que me faria desistir e voltar atrás.

   Os colegas são, regra geral, os mesmos. Alguns reprovaram. Há repetentes, aqueles que já deveriam estar no mercado de trabalho ou, optando pela continuidade, num mestrado. A exigência não dobrou - não estamos no ano mais difícil. Por incrível que pareça, as traves-mestras do curso estão no terceiro. Os professores são menos condescendentes e dão por adquirido de que dominamos quase tudo. Normalíssimo que assim seja.
   Há demasiadas cadeiras económicas, aliás, transversais aos quatro anos. Neste, especialmente, há mais do que deveria. Tenho excelentes notas às disciplinas económicas, assumindo que não gosto e que não me aplico mais para compensar esse facto. Surpreende-me. Veremos se continuo assim - este ano dará jeito!
   Para dar uso aos 'novos' espaços, passámos aos anfiteatros semi-novos: semi porque são, na verdade, de mil novecentos e noventa e sete; novos porque dois, divididos, originaram outros dois, em obras que se prolongaram pelo ano lectivo anterior.


    O P. partiu. Não de vez. Durante este mês, faz o sacrifício de ir e vir todos os dias. Não está, como já havia dito, muito longe da capital. Ainda assim, o percurso é moroso e cansativo, acrescentando-se as horas de aulas que lhe preenchem o dia inteiro. E, segundo me conta, os professores são ágeis em debitar matéria - muito ao estilo dos meus.
    Está surpreso com as enormes diferenças entre o ensino secundário e o superior. Alertei-o nesse sentido. Quando entrei, estava de tal modo expectante e feliz por deixar o colégio que até o ritmo se traduziu numa enorme alegria. "Boa, já sou adulto!"

    Falamos menos. Estamos na faculdade e chegamos tarde a casa. Ele, devido às aulas durante todo o dia, além da viagem de regresso; eu, que optei por ficar na faculdade a estudar. Dias há em que se prolonga para lá das vinte. Não me custa. Em casa, perco-me em conversas, distraindo-me com isto e aquilo. Na faculdade, estou melhor, concentrado. O caminho é árduo, mas mantenho a confiança. Sinto-me como aqueles atletas que estão prestes a cortar a meta. Cansados, sim, mas tomados por uma súbita força ao avistarem a fita por perto. Ou um turista perdido no deserto, sedento, quase inerte, prestes a desfalecer. Entretanto, vislumbra um oásis e as suas pernas cedem ao comando cerebral: água à vista, canudo à vista, faculdade ao longe (um longe perto, mestrado).

    Está feliz com o que escolheu e até já fez novos amigos. É o processo normal. Está deslumbrado. Vivo com ele o sonho e nada farei para que acorde. A sua vida tem sido pautada por algumas tragédias e sentir-lhe a alegria na voz é um bálsamo que me conforta. Acredito mais com ele e ganho alguma ingenuidade. Talvez por isso ande a viver os últimos dias como se dos primeiros se tratassem.

29 de setembro de 2013

Quem Quer Ser... tomado por parvo.


   Como se sabe, o famoso programa televisivo Quem Quer Ser Milionário voltou ao pequeno ecrã. Não saber seria impossível. A RTP fez questão de bombardear tudo e todos com o regresso do seu formato por excelência ao horário nobre. Desta vez, com um detalhe especial: o concurso não viria sozinho; com ele, Manuela Moura Guedes, o rosto afastado, censurado, banido de uma estação sensacionalista, especificamente de um noticiário mesquinho e de parca credibilidade. Convém referir de que nada tenho contra a Manuela Moura Guedes. Nada contra, nem nada a favor. Retenho uma das suas afirmações pós-saída da TVI: o jornalismo tem de ser contra poder. Ora eu que nem estudo jornalismo, mas que por acaso até nem me importaria nada de seguir uma carreira nessa área (aliás, penso nisso), fiquei, digamos, perplexo. Querida Manuela, o jornalismo não tem de ser contra poder, a favor do poder, ou seja lá o que for: o jornalismo tem de ser imparcial. A menos, claro, que nos refiramos à TVI ou aos falecidos 24 Horas Tal & Qual. Vá, convenhamos, seria uma ofensa para o bom jornalismo que por cá se faz.

   Gosto de concursos. Já miudito, testava os meus conhecimentos neste tipo de programas em que a RTP aposta de quando em vez. Têm interesse. Agora até poderia dizer que acerto em cerca de oitenta por cento das perguntas, mas não o irei fazer. Chamar-me-iam convencido e o elogio em causa própria é do pior que há. Participar também está fora de questão. Aparecer na televisão será a apresentar um noticiário ou um qualquer programa das tardes ou das manhãs. Sim, talk-shows incluídos, não me importo nada! Ganha-se bem, trabalha-se pouco (falar, fazer umas palhaçadas, não é trabalhar) e ainda se tem uma notoriedade incrível. Ah, e dá sempre para impressionar miúdas, han.

    Damos por barato de que há todo um processo rigoroso na escolha das perguntas, acreditando mesmo que são dados garantidos, e o contrário nem nos passará pela cabeça. Estaremos certos?
   Não vejo televisão, contudo, o interesse pelo programa levou a que fosse pesquisá-lo no sítio da RTP na internet (agora está na moda ser-se contra os estrangeirismos, sobretudo os anglicismos, qual febre pela pureza linguística). De uma assentada, vi todos os episódios, ou melhor, vi até ao penúltimo porque perdi a vontade de assistir ao último. O que se passou? Resumidamente, uma participante estava a jogar para a oitava pergunta, de dois mil euros, que era a seguinte:

   "Complete o provérbio: Dezembro frio, calor no... A: domicílio; B: aconchego; C: abrigo; D: estiLo"
   
   Nunca fui bom em provérbios. Ao ler a pergunta e as quatro opções, o estilo realmente dizia-me algo. A senhora fez um raciocínio lógico: domicílio não seria porque, à partida, os provérbios são o expoente da sabedoria popular que não costuma passar da simples gíria; abrigo remetia-a para os 'abrigos' dos Aliados na II Guerra Mundial (posição da qual discordei porque abarca também outro significado: o de abrigo propriamente dito, algo contra o frio onde nos 'abrigamos', passo a expressão); estilo não fazia qualquer sentido, logo, decidiu-se pela hipótese B, aconchego. Errou, claro. A resposta correcta foi a D, estilo, ganhando quinhentos euros.

   Fiquei com cócegas cerebrais e fui investigar junto da avó, que me disse imediatamente: "Dezembro frio, calor no ESTIO". Pesquisei na net e vi uma série de pessoas, indignadas, que reclamam junto da RTP para que corrija o enorme erro que cometeu, dando de novo uma oportunidade à concorrente injustamente afastada. Estio significa quente, calor; neste caso, Verão. Mais ridícula do que a situação em si foi a explicação de Moura Guedes perante a admiração da senhora e de um membro do público: estilo porque significa escolher a indumentária (vocábulo utilizado pela apresentadora, correcto, mas que numa situação desta natureza ainda torna tudo mais cómico) para... o frio. Então, não deveria ser algo relacionado com o calor? A expressão corporal de Manuela Moura Guedes, que acredito agora de que cedo se apercebeu de tudo, ainda é mais hilariante. Como se costuma dizer: se não fosse tão infeliz, teria piada.

   Não é algo inédito ali para os lados do Cabo Ruivo. Aqui há uns anos, a estação cometeu um erro semelhante numa das edições do, imagine-se!, mesmo programa, em que uma concorrente foi induzida em erro com a seguinte pergunta: "Qual das seguintes personagens de banda-desenhada foi mais vezes recriada no cinema? A: Zorro; B: Super-Homem; C: Tarzan; D: Batman."  A senhora escolheu a resposta C, Tarzan, no entanto, o programa diria que era a resposta A, Zorro. Deu em chatices. A senhora estava convencida da resposta, a qual sabia efectivamente, comprovando-se de que a opção correcta era a CEntrou na justiça com um pedido de indemnização. Eu sei disto porque fiz um caso prático na faculdade a propósito desta situação verídica. Resultado: o STJ, salvo erro, num acórdão extenso, considerou de que se tratava de uma mera obrigação natural, acrescida de um termo de participação que todos assinam antes, ao que parece. Baseando-se no artigo 1245º do CC, que nos diz que as apostas e os jogos não são contratos válidos nem constituem fonte de obrigações civis, com remissão para o 402º CC, que enuncia expressamente que as obrigações naturais fundam-se em meros deveres de ordem moral ou social, não sendo - e isto é muito importante - judicialmente exigíveis. Fez-se uma ressalva ao mero 'dever de justiça' que consta na última parte do artigo, o que não teve força por si só. Julgou-se a acção improcedente.

    Lamentável. Um erro igual nos mesmos moldes. Há quem não aprenda. Melhor, para quê emendar? A lei dá cobertura, inclusive...

    Pensem duas vezes antes de concorrer a isto.