28 de abril de 2012

Transformei o sentimento.


 Desde que me perguntaram se o «Winston Churchill era francês» que eu não duvido de nada. Não sei!, foi como uma vacina qualquer contra um vírus que me poderia atormentar a qualquer instante. Fiquei preparado para tudo. Ainda me recordo de que, tomado de um nervosismo latente pelo início do teste, a pergunta surgiu-me como algo bastante pertinente.

"Se o Winston Churchill era francês, claro, uma pergunta válida como qualquer outra... O quê?!!!!"

 Por isso, fiquei menos incomodado do que supostamente ficaria, há umas semanas atrás, com uns olhares constantes no meu teste, como nesta quinta-feira passada. Não que fique revoltado por saber que estão a copiar integralmente o meu teste; desde que não me perturbem, se bem que continuo a incluir na categoria de situações verdadeiramente escandalosas o facto de alguém me pedir para virar a página, de novo, para que possa copiar uma parte que não conseguiu. É um bocadinho de falta de vergonha a mais, se acrescentarmos o detalhe de que não conhecia, de todo, a pessoa. Ao que o desespero leva.
 Murmurando-me minuto após minuto, já sob o olhar desconfiado de uma professora que, vigilantemente, inspeccionava os alunos, apeteceu-me riscar-lhe a ponta do nariz com o meu marcador azul-claro. Era o quadro perfeito. Veio-me à cabeça o que o rapaz sentiria se eu  fizesse isso. A sua reacção, meio de desespero, meio cómica, levou-me a conjecturar esses supostos cenários. Aquele olhar de "olha-desculpa-mas-diz-me-a-resposta", com um sorrisinho pejado de sarcasmo, não deixou de ser engraçado.
 Como nós somos, pegando na definição mais conhecida, animais sociais, o estranho desconforto que senti de início, roçando a repulsa, transformou-se numa piedade e até, vá, numa empatia. Deixei-o aproximar-se de mim para que pudesse copiar melhor. Copiou, parando apenas para mudar o léxico das frases, de modo a que os testes não ficassem muito parecidos - imposição minha.
 A poucos minutos de acabar o teste - e mesmo após o término do tempo limite - já lhe ditava o resto, num regime de total solidariedade. Abafados pelo som de fundo de alunos que partilhavam informações entre si, perante o olhar dos professores que, impotentes, não podiam fazer nada, acabámos o teste.
 O seu «obrigado» e a sua piscadela de olho foram de uma piroseira atroz. Senti-me desnudo. Agradeceu-me como se o fizesse a uma rapariga. Pelo canto do olho, ainda o vi a olhar para mim ao fundo do anfiteatro, mas naquele momento arrumar o dossier e sair dali o mais depressa possível era tudo o que queria.


26 de abril de 2012

Ensaio sobre a Revolução e a Democracia.


 Fala-se em democracia levianamente. Apesar de significar o poder do povo, na sua acepção mais primitiva retirada da sua origem etimológica, ninguém de bom senso dirá que, actualmente, a democracia se limita a um simples gesto eleitoral, uma opinião nos meios de Comunicação Social e meia dúzia de direitos consagrados num texto constitucional que tudo prometeu e tão pouco deu. A democracia é, efectivamente, bem mais do que isso. A democracia pressupõe uma participação activa nos desígnios da pólis, pressupõe um Estado que, conferindo mais ou menos aos seus cidadãos, se comprometa com o elementar, o exigível. Posto isto, falar de democracia em Portugal, afirmando-a, será vê-la numa perspectiva bastante redutora.
 Há trinta e oito anos caía a mais longa ditadura da Europa ocidental. Sufocada por décadas de ostracismo e isolacionismo, marcada pela iliteracia e pelas parcas condições socio-económicas dos cidadãos que a habitavam, morria a cada dia, num leito de morte anunciado. Ninguém mais a defendia. Salvá-la seria desnecessário. A Guerra Colonial, fratricida, punha vidas em jogo. Pedaços de carne humana que se movimentavam nos terrenos perigosos de uma África tão distinta dos terrenos europeus que deram lugar à sua ineficiente preparação. Capitães que iam nas colunas, nas picadas, os mesmo que, insatisfeitos, dariam a liberdade ao povo. O povo estava em suas casas, chorando a carne dos seus filhos perdida na Guerra, mas nada fazendo para o evitar.
 Disparos mortais mais tarde - e quatro pessoas mortas - o Estado Novo caía, por fim, com a rendição do velho professor universitário, iniciando-se um novo ciclo nos destinos do país. Escreve-se, nos manuais de História, de que a democracia começou. Utilizando os argumentos mais lógicos, todavia menos certeiros, a democracia terá começado em 1982, aquando da primeira revisão constitucional que afastou definitivamente os militares da vida política do país, entregando as suas anteriores prerrogativas ao poder civil. Jamais o período que compreende os anos de 1974 a 1982 poderá ser considerado de democracia. Não existem democracias amparadas num poder militar, uma salvaguarda de coisa nenhuma.
 Contudo, a democracia não tem como fundamento apenas uma paz social, mal maquilhada com pequenos pós de conquistas e avanços, que não conseguiram disfarçar as imperfeições no seu tecido de sustentação. Os erros mantiveram-se, as condições de vida agrestes ficaram escondidas numa chuva de brilho que anunciaria o desenvolvimento. Quando a ilusão, oh!, doce ilusão, acaba, eis a democracia.
 Um país que não mais é soberano, ante directrizes externas. Mergulhado na sua história que teima em manter acesa, vivendo do seu passado. Um país sem pés, sem coragem, sem vontade de trilhar o caminho que lhe impõem. Ei-lo estático, sem ânimo. Torpe destino!
 Partilha a mágoa da Grécia, palco onde a democracia começou - palco onde ela acabou.


23 de abril de 2012

It was drizzling.


 Falta pouco mais de um mês para terminarem as aulas. O clima, pouco ameno, remete-me para os dias chuvosos de um Outono sombrio. Tenho dificuldade em entender que estou em Abril, talvez porque já não existam estações do ano, como antigamente, no tempo dos nossos avós. A máxima de que em Abril «caem águas mil» surgia-me como um ditado de algures do século XIX.
 Se é verdade de que gosto de estar na biblioteca da faculdade, pesquisando sobre as matérias, lendo opiniões doutrinárias de modo a enriquecer as minhas respostas nos testes, absorvendo argumentos e contra-argumentos que nem sempre me serão úteis no futuro, também não é menos verdade de que respirar o aroma da terra molhada é gratificante. Bom, sê-lo-á menos se, com o aroma da terra, vier também uma chuva fina, chata e terrivelmente irritante, como me sucedeu hoje. Uma vez que detesto guarda-chuvas e que eles me detestam, conjugamos as nossas forças num duelo que perco incessantemente: molhei o cabelo e a roupa no percurso para a faculdade. Acabo por ganhar nas minhas convicções. Não os uso.
 Ao mesmo tempo em que caminhava vagarosamente, temendo uma queda precipitada nas pedras escorregadias do passeio, dois rapazes passaram por mim a correr descontraidamente. Vi, então, as diversas perspectivas do mesmo cenário. Para mim, tratava-se de um dia enfadonho e óptimo para ficar em casa; para eles, um dia maravilhoso em que poderiam fazer exercício físico sob uma chuva ténue. Eles não pensarão como eu, no incómodo de molhar a roupa, o material universitário (mesmo estando na mala). Desvalorizarão a vaidade pessoal, afinal, as condições meteorológicas adversas já existiam antes.
 Na carruagem do metro, resisti ao impulso de ver as pontas do cabelo levantadas no vidro. Depois, ser-me-ia bem mais difícil resistir à tentação forte de tentar dar-lhe um jeito com as mãos, o que vejo muito por aí, mas não é algo que me agrade. Uma colega achou-lhe graça e enrolou-me freneticamente uma mecha nos seus dedos esguios. Apesar de ter esboçado o ar mais convincente de revolta e indignação que consigo fazer, ela não me levou a sério.
 Tive a brilhante ideia de escrever uma qualquer reclamação à entidade hierarquicamente superior, neste caso com residência fixa no céu. Alegaria prejuízos morais, não patrimoniais, mas mesmo assim dignos de uma indemnização qualquer. Derrotado por não saber a quem imputar responsabilidades e temendo uma greve na função pública, rendi-me diante das evidências: molhas-te e pronto!


20 de abril de 2012

Odeio amar-te.


 No caminho para a livraria do Atrium Saldanha, no metro, aproveitei para esclarecer uns assuntos com uma amiga e colega. Talvez atordoado com a volatilidade das relações amorosas / paixonetas de hoje em dia, ainda não tinha tido a oportunidade ideal de conversar com ela sobre um namoro - supostamente sério e pejado de amor - que durou quatro semanas. Confesso que quando soube que ela namorava com o determinado rapaz, apostei que duraria bem menos. Perdi.
 Quem os visse, parecia que transbordavam todo um sentimento puro e verdadeiro. Os sorrisos escondidos e denunciadores, os olhares que não passavam despercebidos, o clima tórrido que se vivia quando ambos ocupavam o mesmo espaço, que sendo minúsculo praticamente consumia todo o oxigénio existente. Era um arfar sem arfar, um querer sem poder, uma vontade incontrolável.
 Começaram o prometido namoro. Simultaneamente, ao mesmo tempo, começaram as primeiras infidelidades da parte dele. O seu espírito "don juan" é avesso a compromissos sérios. Segundo soube, o desrespeito por ela atingia proporções inimagináveis. Sentar uma outra rapariga no colo, acariciando-lhe as pernas, em frente à namorada, vale? Pois tudo isso ele fez e ela, apaixonada, consentiu. Durou quatro semanas e a incompatibilidade de feitios determinou o expectável.

 Se o que sentiam não era mais do que um desejo recíproco, por que motivo terão banalizado a palavra amar? Da sua parte, só conseguia ouvir umas palavras distantes, muito devido ao barulho ensurdecedor da fricção entre as carruagens e as linhas do metro. As suas lamentações e a minha correspondente reacção a elas era visível na cara de sono e desconforto de um rapaz que, em pé, mal se segurava no corrimão. Se não soubesse que era impossível, diria que ele estava a adivinhar o que me apetecia fazer.
 Já à superfície, enquanto nos encaminhávamos para o centro comercial, apeteceu-me dizer-lhe que era mais do que natural que tudo tivesse terminado. António Variações cantou que "o amor não é o tempo, nem é o tempo que o faz", mas eu discordo. O desejo não é o tempo que o faz; o amor é o tempo que o faz.
 Se não tivéssemos muito para ler relativamente aos estudos, ter-lhe-ia recomendado um livro light de conselhos amorosos. Não que tenha alguma utilidade prática, porém, ficaria entretida.


16 de abril de 2012

A rapariga de olhar escondido.


 No meio da confusão de folhas ordenadas, o que pode parecer paradoxal, porque sempre dividi e arrumei bem o material, antes escolar, agora da faculdade, dei pela falta de uns apontamentos de que precisava e de umas fotocópias de que necessitava tirar com urgência. Toda uma panóplia de documentação cujo único intuito é o de baralhar mais do que esclarecer, mas a consciência não ficaria tranquila se não o fizesse. 
 Na reprografia da faculdade, o caos impera. As pessoas amontoam-se por todo o lado, gesticulando e manifestando toda a sua impaciência, levando-me a duvidar, por vezes, de que me encontro num estabelecimento de ensino superior. Ingenuidade a minha, que continuo a acreditar que os maus modos ficam à porta. A brusquidão dos alunos contrasta com a parcimónia de uma empregada mais experiente que, andando de um lado para outro, procura fazer o seu trabalho à medida em que tenta acabar o trabalho dos colegas novatos, que, por aqui e ali, vão deixando incompleto o que começaram a fazer. O som das ruidosas impressoras não é suficiente para abafar as risadas nervosas de pessoas que, provavelmente, vão fazer algum teste, nem consegue disfarçar os tons de voz alterados e descontrolados. 

 Perturbado diante da balbúrdia, e estando pronto a desistir de momento, noto que uma rapariga, de rosto cabisbaixo e visivelmente assustada, movimenta-se sem sair do mesmo lugar, dando pequenos passos desordenados, mostrando nervosismo e inquietação. Perto dos computadores, ora pega no mouse, ora larga-o, desistindo, desiludida, do que estava a fazer. Pára, olha para cima e repara em mim, fitando-me com uma intenção mais clara do que se falasse. Os seus olhos, expressivos, falaram! Vi que precisava de alguma ajuda e, ao aproximar-me, senti que ficara calma, como se a tivesse salvo de um perigo. Explicou-me, envergonhada, e hesitando em levantar o rosto, de que não estava a conseguir aceder à internet, soluçando-me o que pretendia fazer: queria imprimir um código, mas de forma a que este não ficasse demasiado extenso. Já por outras alturas imprimira trabalhos e quase sempre o fizera mal. Imprimi-lhe o código que me pediu, fi-lo em frente e verso e, nas propriedades de impressão, coloquei-lhe os artigos dividos em quatro partes por cada lado da folha.

 Ao ter o código impresso nas pequenas mãos, de dedos grossos e unhas roídas, ficou estaticamente feliz, numa euforia controlada, mas perceptível, ao menos para mim. Ajeitou os óculos, ergueu o rosto e agradeceu-me. Não foi um mero agradecimento, como quando pedimos um café e agradecemos ao empregado ou como quando deixamos cair algo no chão e alguém, simpaticamente, nos faz o favor de apanhar; para ela, eu tinha feito algo de muito valioso e nobre, uma atitude que de alguma forma a marcou. Os seus olhos evidenciavam isso. Tentei minimizar a minha atitude - que não foi mais do que uma obrigação - para mais tratando-se de uma colega e de alguém que estava a precisar de ajuda. Mas, para ela tinha sido algo de muito importante. Se eu não o tivesse feito - disse-mo - ninguém lho faria porque também não teria coragem de pedir fosse a quem fosse. Por que motivo terá conseguido pedir-me a mim?
 Quis agradecer-lhe a confiança, mas tive medo de que soasse a presunção e de que não fosse de bom tom.
 Em todo o caso, senti-me uma espécie de herói, seja lá isso o que for.


12 de abril de 2012

O Príncipe e a Raposa.


 Num mundo cada vez mais cruel, a confiança constrói-se com pequenos e tímidos passos. Lenta e progressivamente, conhecemos as pessoas que se aproximam de nós e aquelas às quais nós nos aproximamos. Vemos o brilho do seu olhar através da nossa retina, desvendamos as suas reais intenções, ouvimos as palavras certas. Oh, é tão bom ouvir as palavras certas! Na Idade Média, nas batalhas e nos conflitos entre os reinos, os cavaleiros utilizavam, com a sua armadura, um escudo de defesa contra a espada do inimigo e contra as lanças atiradas à distância. A barbaridade imperava, dizem alguns; foi substituída pelas armas de fogo, uns séculos mais tarde, e pela energia atómica, num passado ainda recente. Nunca percebi o significado do conceito de barbaridade.
 Há quem se defenda com uma cara , semblante cerrado e ameaçador. Há quem fuja do confronto com o próximo, tendo aqui a palavra confronto não um sinónimo de algo mau, pejorativamente falando. De confronto entenda-se o diálogo, a aproximação a outrem, o convívio ameno. Há quem tema o Homem; terá razão?

 Uns dirão que a Humanidade está perdida, como um pedaço de matéria que é atraída por um buraco negro. Os menos cépticos tentam agarrá-la com todas as suas forças, como quando uma chave cai numa sarjeta da água das chuvas. Por entre os ferros que cobrem toda a extensão do bueiro, colocamos a nossa mão, por  vezes atravessada, a muito custo, e lá conseguimos retirar o objecto que dávamos por perdido. Talvez ainda haja tempo para um resgate.

 «Somos responsáveis por aquilo que cativamos.»

 Somos responsáveis por cuidar daqueles que amamos; sentimos que somos pertença -divisível por muitos - de todos aqueles que mereceram ganhar a nossa estima, que trespassaram as muralhas que orgulhosamente sós erguemos ao longo do tempo. Quando o pano cai e as emoções extravasam à superfície, todos precisamos de alguém.
 A raposa deu a sua confiança e o princepezinho teve a sua amizade.
 Que ninguém nos tire o que conseguimos conquistar.






9 de abril de 2012

Na casa da avó.


 Sempre gostei de estudar no meio de barulho, indiferentemente se de pessoas ou se de carros a passarem, cães a ladrarem ou pássaros a cortejarem-se mutuamente por entre os ramos das árvores. A cada palavra escrita, o canto dos pássaros ecoava por entre o jardim. Com a ligeira brisa matinal como fonte rejuvenescedora, senti que poderia fazer todas as provas, responder a todas as questões do mais difícil exame que nada me seria impossível. As centenas de páginas por resumir, anteriormente uma imensidão, pareceram-me agora um pequeno texto, simples, acessível. Bebi um gole de sumo de laranja natural.

 Os toques de uma bola de futebol contra uma parede soaram-me a pancadas ligeiras numa mesa de madeira. Dei por mim a aguardar pelo próximo impacto. Já sabia que quanto mais tempo demorasse, para mais longe a bola teria ido. É o filho dos vizinhos da avó e o hábito de jogar à bola no seu jardim, paredes meias com a casa da avó. Ridiculamente, levantei-me da cadeira e fui até ao gradeamento para o ver. Apesar da lombada quebrada, o livro fechou-se mal retirei a mão das páginas em que imprimia alguma força.
 Lá estava ele e a bola. Não quis parecer inconveniente e tentei observá-lo apenas. Por momentos, senti que o muro que nos separava era semelhante ao desconhecimento que pairava entre os dois e, a sua altura, igual ao ridículo da situação. Melhor tira sido ficar a resumir o livro; de certeza que já estaria duas páginas adiantado.

 Quis que desse pela minha presença, mas não quis precipitar o momento. Talvez um ruído propositado ou uma saudação, afinal, trata-se do vizinho da avó, praticamente meu vizinho também e alguém, sem dúvida, utilizando palavras da avó, muito sossegado. Não é à toa que estuda Engenharia (sarcasmo), tem namorada (sarcasmo) e joga à bola contra uma parede (sarcasmo). Disse-lhe um ligeiro, mas convicto «Olá». Só depois senti que a voz enfraquecera, não tivera a substância que quisera dar e revelara uma falta de espontaneidade total, o inverso do que quisera e previra. Retribuiu-me a saudação e, como se me conhecesse há anos imemoriais, perguntou-me qual o meu clube e qual as previsões para o resultado do jogo de «logo à noite». O Sol riu-se de mim, uma vez que senti a força dos raios a aquecerem-me a pele, ao mesmo tempo que roguei uma maldição sobre o mês de Abril (que não era tão quente quando eu era criança!). Caíram-me os planos das mãos de uma conversa que poderia ser interessante e próspera, com o discurso mais heterossexista que não queria, de todo, naquele momento. Se fosse uma das primas a interpelá-lo, apostaria em como a reacção teria sido diferente. Apeteceu-me ir buscar o copo do sumo de laranja e verter todo o líquido para cima dele, mas achei que não seria boa ideia. Um sumo tão bom não merecia ser desperdiçado.

 Aquele que poderia ser um amigo, para mais morando perto da avó, provavelmente não vê mais à frente do que uma bola de futebol e um bilhete para um jogo. Antes que me desfiasse todos os seus longos e profundos conhecimentos sobre os jogadores da sua equipa, os dribles fantásticos, as jogadas fenomenais e os troféus suadamente alcançados, afastei-me com uma desculpa e desejei que a bola lhe acertasse na testa. Com pouca força, claro. A bola é redonda (pensamento que Descartes invejaria), mas ele é quadrado. Pobre namorada.

 Vi que eram horas de almoçar. Entrei em casa levando o livro. O sumo ficou lá fora, no copo, aguardando a sua vez por um lugar ao Sol.






6 de abril de 2012

Deixei a redoma; dêem-me as asas.


 Uma tarde entediante. Uma pastelaria, bem frequentada, repleta de pessoas frias afectivamente umas com as outras. Um chá, quente, a arrefecer na xícara. Uma torrada com muita manteiga, intragável, fruto da inexperiência de um empregado irritante. Uma revista sobre a mesa. Folheei-a.
 Não quis ler textos. Perdi a paciência para artigos pouco minuciosos, rápidos, como um flash de luz momentâneo; ao mesmo tempo, perdi a paciência para textos densos, bem elaborados, mas excessivamente ornamentados. A substância não bate certo com a aparência. Todavia, um artigo despertou-me, subitamente, a atenção. Um artigo do psicólogo Eduardo de Sá sobre as crianças e as verdades que lhes omitimos, propositadamente, tendo em vista a sua salvaguarda da maldade do mundo, maldade essa que, mais tarde ou mais cedo, ser-lhes-á colocada diante dos olhos. Certeiramente - e bem - Eduardo de Sá defende que não devemos proteger as crianças em demasia. Argumenta que as pequenas frustrações ajudam-nos a crescer, que criamos pessoas que não são capazes de lidar com os revés da vida, que a super protecção acaba por prejudicá-las mais do que beneficiá-las.
 Por momentos, senti-me um pai cheio de orgulho por estar a procurar encontrar as estratégias ideais para a educação do meu filho. Acabei por me sentir a indagar a mim mesmo: "O que é que correu mal?".
 E revi, naquelas páginas (não deveriam ser mais do que seis), toda a minha infância. Li cada erro dos pais, cada pormenor que deixaram escapar, cada pedaço que ficou por concretizar.
 Se ao menos Eduardo de Sá tivesse escrito aquele texto antes.
 Se ao menos o artigo tivesse sido lido há uns anos atrás.


3 de abril de 2012

Holidays.


 Nestas férias, mudei-me para casa da avó. Há imenso tempo que não o fazia. Em criança, nas férias da Páscoa, pedia à mãe se me deixava passar uns dias lá. Claro que a minha intenção era a de ficar livre do seu controlo; para além disso, adorava as competições com a prima para ver qual dos dois conseguia pular mais em cima da cama, num dos quartos da casa. Na época, não tinha a noção de que ela, sendo mais leve e pequena, conseguia impulsionar o seu corpo numa altitude que me era impossível. Acabávamos a tarde deitados em cima da cama a comer amêndoas de chocolate. Na verdade, ela comia as amêndoas; eu apenas conseguia tirar-lhes a cobertura colorida. Não gosto de chocolate.
 Do que eu gostava mesmo era do bolo de iogurte que a Glória fazia. Pedia com muita força para que apenas houvesse iogurte de pedaços de morango no frigorífico, ao contrário do iogurte de aroma que ela costumava utilizar na confecção do bolo; adorava encontrar os pedaços de morango misturados na sua textura doce e amanteigada. Então, a rivalidade com a prima era mais do que muita, mas nesta competição também saía derrotado; o seu estômago, faminto, quem sabe pelos exercícios de salto em cima do colchão na cama, pedia a sua parte e a minha. Ainda consigo ver a sua voracidade enquanto mastigava pedaços gigantes de bolo de iogurte.
 As horas não demoravam a passar e a noite não trazia consigo o cansaço. Quando de noite, por fim, telefonava à mãe, ela ficava com a ténue ideia das energias libertadas após meses debaixo do seu formalismo que, com a avó, esmorecera completamente. Não que a avó fosse permissiva; conseguíamos, porém, escapar melhor à etiqueta.

 "O teste sai até à sanação."

 As novas amêndoas.