9 de abril de 2012

Na casa da avó.


 Sempre gostei de estudar no meio de barulho, indiferentemente se de pessoas ou se de carros a passarem, cães a ladrarem ou pássaros a cortejarem-se mutuamente por entre os ramos das árvores. A cada palavra escrita, o canto dos pássaros ecoava por entre o jardim. Com a ligeira brisa matinal como fonte rejuvenescedora, senti que poderia fazer todas as provas, responder a todas as questões do mais difícil exame que nada me seria impossível. As centenas de páginas por resumir, anteriormente uma imensidão, pareceram-me agora um pequeno texto, simples, acessível. Bebi um gole de sumo de laranja natural.

 Os toques de uma bola de futebol contra uma parede soaram-me a pancadas ligeiras numa mesa de madeira. Dei por mim a aguardar pelo próximo impacto. Já sabia que quanto mais tempo demorasse, para mais longe a bola teria ido. É o filho dos vizinhos da avó e o hábito de jogar à bola no seu jardim, paredes meias com a casa da avó. Ridiculamente, levantei-me da cadeira e fui até ao gradeamento para o ver. Apesar da lombada quebrada, o livro fechou-se mal retirei a mão das páginas em que imprimia alguma força.
 Lá estava ele e a bola. Não quis parecer inconveniente e tentei observá-lo apenas. Por momentos, senti que o muro que nos separava era semelhante ao desconhecimento que pairava entre os dois e, a sua altura, igual ao ridículo da situação. Melhor tira sido ficar a resumir o livro; de certeza que já estaria duas páginas adiantado.

 Quis que desse pela minha presença, mas não quis precipitar o momento. Talvez um ruído propositado ou uma saudação, afinal, trata-se do vizinho da avó, praticamente meu vizinho também e alguém, sem dúvida, utilizando palavras da avó, muito sossegado. Não é à toa que estuda Engenharia (sarcasmo), tem namorada (sarcasmo) e joga à bola contra uma parede (sarcasmo). Disse-lhe um ligeiro, mas convicto «Olá». Só depois senti que a voz enfraquecera, não tivera a substância que quisera dar e revelara uma falta de espontaneidade total, o inverso do que quisera e previra. Retribuiu-me a saudação e, como se me conhecesse há anos imemoriais, perguntou-me qual o meu clube e qual as previsões para o resultado do jogo de «logo à noite». O Sol riu-se de mim, uma vez que senti a força dos raios a aquecerem-me a pele, ao mesmo tempo que roguei uma maldição sobre o mês de Abril (que não era tão quente quando eu era criança!). Caíram-me os planos das mãos de uma conversa que poderia ser interessante e próspera, com o discurso mais heterossexista que não queria, de todo, naquele momento. Se fosse uma das primas a interpelá-lo, apostaria em como a reacção teria sido diferente. Apeteceu-me ir buscar o copo do sumo de laranja e verter todo o líquido para cima dele, mas achei que não seria boa ideia. Um sumo tão bom não merecia ser desperdiçado.

 Aquele que poderia ser um amigo, para mais morando perto da avó, provavelmente não vê mais à frente do que uma bola de futebol e um bilhete para um jogo. Antes que me desfiasse todos os seus longos e profundos conhecimentos sobre os jogadores da sua equipa, os dribles fantásticos, as jogadas fenomenais e os troféus suadamente alcançados, afastei-me com uma desculpa e desejei que a bola lhe acertasse na testa. Com pouca força, claro. A bola é redonda (pensamento que Descartes invejaria), mas ele é quadrado. Pobre namorada.

 Vi que eram horas de almoçar. Entrei em casa levando o livro. O sumo ficou lá fora, no copo, aguardando a sua vez por um lugar ao Sol.






17 comentários:

  1. Jogava a bola, sozinho.
    Na casa do lado um rapaz giro, que aparece por aqui de vez em quando, disse-me olá.
    Tanto queria que viesse conversar comigo...
    como meter conversa?
    Falei-lhe no jogo de hoje (não sabia que outro assunto abordar)...
    não consegui prender-lhe a atenção
    mas não consigo esquecê-lo!
    Da próxima vez... tentarei de outro modo.


    Um abraço, Mark.
    E desculpa a brincadeira.
    Gosto-te muito.

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  2. Antes de mais, parabéns por este texto estar tão bem escrito. Não estou a falar da gramática ou derivados - afinal é suposto estudantes de Direito saberem escrever lol -, mas sim de como construíste a narrativa: estava verdadeiramente ansioso para saber o que se ia passar a seguir. E, já que estamos a falar disto, quando deixas de usar tanto o itálico por motivos estilísticos? Parece que aprendeste a escrever há 80 anos atrás.

    Mas Mark, de que estavas à espera que ele falasse? Com uma bola nos pés e ia discutir a estética decadentista de Sá Carneiro, por exemplo? Até pode ser que o fizesse, mas não seria assunto que me ocorreria se fosse eu a meter conversa.

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  3. Sabes que uma forma de "meter" conversa é falar de futebol, signos ou tempo :)

    Abraço

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  4. Pedro: Oh, entendi a tua perspectiva e é sempre bom ver o outro lado, mas não acredito muito nisso. Ele é heterossexual, acho. Realmente, é difuso afirmá-lo assim peremptoriamente. :)

    Não me peças desculpa, por favor. :)
    Abraço e obrigado. :3

    lugares pouco comuns: Obrigado! Em todo o caso, o que disseste não faz muito sentido. Primeiro, eu escrevia da mesma forma antes de ter entrado na faculdade; segundo, há estudantes de Direito que escrevem mal a língua materna e há pessoas sem curso superior que se exprimem bem na escrita. ^^
    Quanto ao itálico: meu caro, eu não uso o itálico apenas por motivos estilísticos; eu uso o itálico nos mais variados contextos: quando transponho um diálogo, uma frase ou um discurso dito por alguém, uma ideia subjacente e, também, em alguns casos, por motivos estilísticos. Em todo o caso, gosto de o fazer e essa apreciação parece-me inconveniente e desapropriada, com todo o respeito.
    Eu não estava à espera de nada.

    Francisco: A forma mais usual. :) Sabes, eu interpelei-o porque ouço a avó dizer maravilhas do rapaz, então supus que se tratava de alguém interessante até enquanto amigo. :)
    Abraço! ^^

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  5. Hm, eu tava a brincar... calma aí. Mas sim, devia ter posto alguns smiles para não ser mal interpretado; achei, no entanto, que o elogio inicial era suficiente! Desculpa se dei a impressão errada.

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  6. lugares pouco comuns: Não me deste a impressão errada de nada, nem tens de me pedir desculpas por absolutamente nada.
    Mais uma vez, obrigado pelo elogio.

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  7. Isto sim. Isto é perfeição num todo num texto. Cada vez estás melhor!!
    Continua assim! Adoro mesmo os teus textos =´)

    Beijinho* grande.

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  8. Sonhadora: Obrigado! És amorosa. :)
    Beijinho. *

    lugares pouco comuns: Claro. :) Mas nunca estive chateado contigo.

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  9. Eu fui vendedor, durante uns anos; e quantas vezes tinha que "entrar" com uma conversa completamente fora do contexto, para ganhar a confiança do cliente...
    Às vezes é uma excelente táctica, já que falamos em futebol...

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  10. João: Pois... quem sabe! :)

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  11. Olá Mark :)

    Há dois momentos que registaria no teu post:


    "Retribuiu-me a saudação e, como se me conhecesse há anos imemoriais, perguntou-me qual o meu clube e qual as previsões para o resultado do jogo"

    Penso que devias "aprender" este tipo de espontaneidade. Quantos mais naturais formos, melhor. Embvora evidencie que ele nao tinha qualquer interesse em ti mesmo, já que, se tivesse, mostrar-se-ia bem mais acanhado ou defensivo. E é por isso que há tantos mal entendidos por se tratarem de defesas propostas pelo inconsciente. Prontato, Mark, essa espontaneidade, naturalidade, granjeia amigos, torna-nos mais próximos também mais soltos, mais humanos e descomplexados...

    Outra passagem:

    "Aquele que poderia ser um amigo,(...) não vê mais à frente do que uma bola de futebol e um bilhete para um jogo. Antes que me desfiasse todos os seus longos e profundos conhecimentos sobre os jogadores da sua equipa, os dribles fantásticos, as jogadas fenomenais e os troféus suadamente alcançados, afastei-me com uma desculpa e desejei que a bola lhe acertasse na testa."

    Isto está brutal. DE uma ironia muitíssimo inteligente. DELICIOSO :) e infelizmente verdadeiro :(

    Day after day and you'll find one... and then... The One :) mesmo sabendo que até lá nao tenha de ser necessariamente homo...

    Um abraço. O teu :)

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  12. Daniel: Obrigado pelas tuas palavras. :) Curiosamente, passei o dia a escutar a música "The One" da Mariah. :3

    P.S.: Prometo que irei aprender a ser mais espontâneo. ;)

    Abraço, o teu! Ahah *_*

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  13. Vim ver-te.
    E deixei um abraço.
    :)

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  14. Obrigado, Pedro. És um querido! :33

    Abraço! :)

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  15. Oh Mark, não digas que o rapaz é quadrado só porque te falou de futebol. Poderia ser eu... Ahahah, ok, talvez não, mas eu era bem capaz de começar por falar de futebol para quebrar o gelo. ;)

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  16. Coelho: "Quadrado" porque trouxe um tema que, apesar de provável, era a última coisa que estava disposto a ouvir... Tu? Hum, duvido, mas não te conhecia esses gostos tão eclécticos. :D

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