13 de março de 2012

Estórias do semáforo.


 É bom andar de autocarro por Lisboa. Como não o faço muitas vezes, perco por vezes a noção de como podemos retirar algum encanto de viagens que, à partida, nos parecem tão banais.
 Prometi a mim mesmo que não iria encostar a cabeça à janela, hábito que adquiri em pequeno, numa viagem de autocarro de que não me recordaria não fosse a tremenda dor de cabeça que ganhei depois.
 Coloquei a mala no colo e despi o casaco devido ao calor que se fazia sentir. Ao mesmo tempo que o fazia, tive a clara percepção de como hoje em dia consigo ver algo de belo em pequenos passos, tímidos, que fui desbravando.
 Vi o meu rosto reflectido no vidro, empoeirado, que separa a porta de saída dos passageiros e que estava mesmo diante de mim. Por momentos, parecia-me um velho retrato usado, esquecido num baú, até que encontrado e recuperado. As cores conferidas pelo aspecto sujo do vidro, num misto de castanho e cinzento claros, tornavam-me quase num fantasma.
 Senti um certo conforto por ter saído mais cedo de casa, indo almoçar com uma amiga, podendo assim desfrutar em pleno da viagem. Pela janela do autocarro, vi carros topo de gama, trabalhadores de limpeza e sem-abrigos, tudo no mesmo quarteirão. Vi-me como um espectador mórbido de uma miséria alheia, mesmo não o tendo feito deliberadamente e sendo incapaz de o evitar. O sem-abrigo carregava um cobertor nas mãos. O semáforo estava vermelho. Poderia desejar que passasse rapidamente a verde, evitando, assim, o confronto com a realidade, ou poderia querer que o vermelho se mantivesse, minutos, horas, não podendo olhar para outro lado que não o pequeno passeio onde o sem-abrigo estava. Sou impotente para controlar a trilogia

verde - amarelo - vermelho; vermelho - verde; verde - amarelo - vermelho

e as horas suceder-se-iam assim. Passou um empresário de pasta na mão, apressado.
 Cheguei, por fim, ao meu destino. À saída do autocarro, uma rajada súbita de vento, talvez ocasionada por me encontrar no meio de duas ruas de altos prédios circundantes, colocou-me todo o cabelo para trás. Só eu sei como detesto andar despenteado, mesmo que me digam que me dá um ar mais rebelde. Tenho tanto de rebelde como de astronauta, se bem que mais facilmente viajaria num vaivém espacial. Estou à espera do próximo projecto norte-americano que me inclua na missão.
 Quando me encontrei com a minha amiga, não lhe contei dos segredos da viagem, nem do que tinha vivido.
 De certeza que ela não veria o mundo em menos de uma hora, nem quereria alterar as cores do semáforo. Se lhe contasse o que vira, provavelmente dir-me-ia que não conseguiria mudar nada no mundo e que todas as manifestações filosóficas sobre os contrastes sociais ficam bem em teses de mestrados de quem nada mais tem a fazer. O batido de morango não saberia tão bem e o sorrisos não sairiam tão naturais. Ela não teria razão. Eu não tive a oportunidade de lhe dizer a verdade que pode ter o

verde - amarelo - vermelho; vermelho - verde; verde - amarelo - vermelho

que se sucede no tempo.
 Ajeitei o cabelo num espelho do café.

9 comentários:

  1. Tão longe (e ainda bem) daquela hilariante viagem de metro para a Faculdade. E os olhos são os mesmos...
    Claro que as visões observadas de autocarro e de metro são completamente diferentes, mas tu percebes o que eu quero dizer...

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  2. Eu quando era garoto ocupava o tempo das viagens de autocarro a procurar letras, pela ordem do alfabeto, nas matrículas dos carros que passavam :)

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  3. Wow, superas-te ;)

    "De certeza que ela não veria o mundo em menos de uma hora,"

    Gosto das tuas deambulações entre o filosófico, o existencial e a introspecção..

    Your special hug ;)*

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  4. É com muito gosto que te leio anjo :)

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  5. Gostei do texto. Também gosto de viajar de ônibus, às vezes ha ha ha! quando não está congestionado ou na hora do Rush ha!ha!ha! Quando eu trabalhava em Copacabana,gostava de pegar o ônibus e observar o cotidiano das pessoas que estavam andando na rua. É interessante ver a dinâmica dos fatos do dia a dia.

    Bonito texto,Mark.

    Grandes abraços.

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  6. Querido Mark, como te compreendo. Eu anseio pelo verde quando um pedinte se aproxima da minha janela. É um ignorar covarde.

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  7. Também acho que a tua amiga não teria razão... Gostei desta viagem, e de imaginar os insuspeitos retratos no vidro... :)

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  8. Gostei do seu blog, interessante!
    Você escreve bem, parabéns!
    Depois dá uma olhada no meu:
    http://portalrelex.blogspot.com/

    Abraço!

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  9. Podes não ter o poder de mudar os semáforos a teu belo prazer, mas tens o poder de mudar a vida dessas pessoas, pois muitas vezes basta um gesto para fazer toda a diferença. ^^

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