31 de março de 2012

No barco a remos.


 Às vezes, tenho a noção de que sou idealista demais. Quando imagino algo, quando construo uma sucessão de imagens na minha cabeça, um projecto qualquer que, à partida, não teve começo nem fim, tudo é idílico e perfeito. Esqueço-me de que as coisas não são assim. De que no meio de um jardim solarengo, também cai a chuva; de que uma fatia de bolo, por mais deliciosa que seja, também faz mal em demasia; de que aquele que parece o mais perfeito dos dias pode trazer dissabores até ao cair da noite; de que atrás de uma alegria, muitas vezes espreita uma desilusão.
 O mesmo se aplica aos relacionamentos. Não tenho experiência, mas sempre tive a estranha noção de que para mim teria de ser mágico, quase sagrado. Talvez nos moldes de um filme de cinema. Uma cena pensada ao pormenor, concebida com um esforço monumental e com as palavras certas, ditas depois de tardes seguidas a estudar um guião. A luz suficiente, o cenário imaginado, a pessoa certa e os diálogos mais belos, improváveis e certeiros.
 O que queria - porque não tive a ousadia de pedir - não existe.
 A vida não é um filme e nós não somos actores, contrariamente ao que muitos defenderão.
 Em todo o caso, cenas como esta ficam sempre bem.




29 de março de 2012

Sobre as viagens e os túneis.


 No metro, procuro sempre ficar em pé, junto à porta. Em criança, recordo-me que das poucas vezes que viajava de metro, tinha de colocar os dedos nos ouvidos porque o barulho perturbava-me. Então, lá tinha de vir um adulto, geralmente quem me acompanhava, dizer-me que com os dedos nos ouvidos e a fazer birra «parecia um menino feio». O percurso era-me interminável e também ficava bastante atordoado pela escuridão que via lá fora. Aquele negro dos longos túneis do metropolitano eram um mistério para mim. E, por que razão tinham fios de várias cores dispostos uns em cima dos outros? Que fios seriam aqueles? Diziam-me que não podia tocar porque «dava choque». Soube, mais tarde, que o revestimento de plástico, colorido, serve precisamente para isolar os cabos.
 Andava debaixo da terra e isso também era questionável. Se os outros comboios andavam em carris, por cima da terra, era suposto estes serem iguais. Talvez fosse melhor andarem debaixo da terra, pois assim evitava-se a degradação que via na linha da Praia das Maçãs, no Verão, quando íamos até às piscinas pelo colégio. No caminho, na carrinha do colégio, seguia os carris até eles terminarem num beco sem saída ou até os meus olhos lhes perderem o fim.
 Também o tamanho dos buracos me era estranho.

"Avó, para meterem os comboios no chão têm de escavar muito, não é?"

É assim que ela mo conta. Eram, indubitavelmente, bem maiores do que os buracos que via na quinta durante as férias grandes. E depois a eterna vontade de ter um metro só para mim.
 Enquanto tinha a música por companhia, vi que as perspectivas mudaram com o tempo. Perdi o medo ao barulho das carruagens a passarem pelos carris, já não vejo a escuridão dos túneis como longos espaços cobertos e medonhos e decididamente não quero tocar nos fios coloridos que vejo pela janela. Mas, agora como dantes, é um alívio quando me sinto a chegar à superfície. Cerro os olhos pela súbita claridade que me invadiu a retina, para de novo entrar nos túneis escavados ao longo do solo.
 Seria a primeira vez que deixaria passar a estação em que costumo sair, continuando a viagem.
 Saí da carruagem.


27 de março de 2012

Feliz Aniversário!




Independentemente de tudo e de todos, ano após ano, continuo a adorar-te, minha querida.

Mariah Carey (27 de Março de 1970)




24 de março de 2012

Por enquanto, viajo assim.


 Ontem, enquanto lia um panfleto sobre as várias listas que concorrem à Associação de Estudantes da minha faculdade, ouvi a conversa de umas raparigas que estavam atrás de mim. Falavam sobre o programa Erasmus, sobre enriquecerem culturalmente viajando e estudando num outro país. Uma queria ir para a Alemanha; outra para a Argentina. Alguns colegas meus também têm essa pretensão: saírem de Portugal, durante um ano ou mais, para estudar.
 Subitamente, surgiu-me na cabeça a ideia de que "e se fosse eu"? Delimitando esta ideia, não cheguei sequer a materializá-la. Assumi, desde logo, que não seria capaz de fazê-lo. Isso confortou-me à partida. Mas, sendo capaz, para onde iria e o que faria?
 Não tenho um espírito aventureiro, meio nómada, de caminhar pelo mundo com uma mochila às costas. Nem de avião, sozinho, indo em direcção ao desconhecido. Sou demasiado preso, não às origens, mas ao comodismo de uma vida calma e sossegada. Para além disso, não resisto ao cansaço, não tenho lá grande força para transportar uma mochila pesada às costas e sofro com as repentinas variações climáticas.
 Fértil, imaginei-me a aterrar em Maputo - concretizando o desejo de conhecer o país do pai, frequentando a Universidade Eduardo Mondlane durante um ano lectivo. Também poderia seguir em direcção ao Brasil, conhecendo o Rio de Janeiro, São Paulo, estudando as características brasileiras do subgrupo lusófono da grande família romano-germânica. Quem sabe num país nórdico da Europa, ou, já na América do Norte, nos E.U.A ou no Canadá - sinto, porém, uma atracção pelos países de língua portuguesa.
 Uma colega interrompeu-me o sonho ao convidar-me para a acompanhar à livraria. Falei-lhe do programa Erasmus, da possibilidade de irmos juntos. Assim conseguiria suportar a distância familiar e afectiva. Disse-me que, por enquanto, não é algo que queira.
 Foi um projecto que não chegou a nascer, apesar da minha vontade, implícita, de alimentá-lo.
 Se fechar os olhos e pensar convictamente, vejo que consigo estar num outro lugar mesmo não saindo de onde me encontro. Será tudo por agora.


21 de março de 2012

Equinócio.


 Escolhi, por fim, o tema do trabalho que irei apresentar. Ao falar com uma colega sobre o trabalho e a escolha daquela cadeira em optativa, cheguei à conclusão de que se trata de um "presente envenenado", mais ou menos quando como uma fatia de tarde de amêndoas da Ana e fico indisposto. O pior é que em relação ao trabalho, o comprimido que funcionará como inibidor do ácido gástrico será mesmo a pesquisa que terei de fazer...
 Assim sendo, hoje acordei mais cedo e fui para a faculdade, de tal forma incomodado que não dei os bons dias às andorinhas. Revoltado, só me apetecia agitar freneticamente umas pequenas árvores que encontrei no caminho; o efeito não seria o melhor e ficaria cheio das sementes das flores que agora começam a desabrochar.
 Nunca fui um especialista em andar com uma pilha de livros nas mãos, mantendo a custo o equilíbrio e ainda estando ligeiramente cansado. Todos tiveram a mesma ideia e a biblioteca da faculdade estava cheia. Os livros tinham, hoje, uma qualquer força gravitacional. A minha cabeça era misteriosamente atraída para baixo. Posso jurar que estava acordado!
 Depois de momentos de quase pânico por não conseguir tirar umas fotocópias naquelas fotocopiadoras que não gostam de mim, fui confrontado com uma aluna de um mau génio impressionante. O Inverno persistia naquele ser.
 Nesta saga, não dei pela chegada da Primavera. O vento que se fez sentir também não ajudou. Longe vão os tempos em que, no colégio, fazíamos um desenho para assinalar a sua chegada! Evidentemente, o meu desenho tinha mais flores, nuvens e relva do que os dos outros meninos. Relembrei-me, mais tarde, quando uma colega me avivou a memória.
 Prometi à Primavera que, por enquanto, voltarei a escrevê-la com "P" maiúsculo. 
 Ela agradeceu.


19 de março de 2012

I'm a different kind of boy.


 Honestamente, acho uma perda de tempo tentar encontrar semelhanças com os demais. Há quem viva persistentemente na procura de pontos em comum, elos de ligação, mesmo que superficiais, com quaisquer pessoas. Nunca senti essa necessidade. Não que ache interessante ser diferente; não é bom, não é mau. Todos temos características únicas, embora haja sempre quem as tente minimizar, fazendo sobressair, se possível, o que o/a une a A ou B.
 Talvez por isso, não comecei a beber quando geralmente começam, não experimentei o primeiro cigarro quando é hábito experimentarem, nem tive a menor curiosidade em participar numa party pejada de álcool, drogas leves e sexo despudorado. Não tive a menor vergonha de dizer que não gostava do sabor das bebidas alcoólicas, de que achava que fumar só me faria mal e de que preferia outro tipo de festas.
 Não tenho mérito, nem culpa, em brincar com os cereais no leite, revolvendo-os com a colher até que fiquem moles, mesmo gostando-os estaladiços; em não comer mousse de chocolate de sobremesa, preterindo-a a uma maçã, se possível partida aos pedaços num prato - não gosto de chocolate; em comer o Epá, em vez de qualquer outro gelado, ansiando por chegar ao fim de forma a mascar a pastilha que se encontrava no fundo do copo de plástico; em montar sociedades inteiras da Playmobil, concentrando castelos e dragões, quintas e carros desportivos, mansões neoclássicas e acampamentos indígenas, tudo no mesmo espaço, no quarto dos brinquedos.
 Talvez isso faça de mim diferente.
 Que seja.


16 de março de 2012

Chovia.


 Estava em aulas quando começou a chover. Suspeitara já da chegada das primeiras chuvas. O céu estava demasiadamente iluminado. As nuvens cinzentas, espessas, acumulavam-se a um quanto. Da minha secretária, na sala de aula, conseguia olhar o céu, embora tivesse de fazer um esforço adicional para vê-lo bem. Ao mesmo tempo, o professor desfiava um rol de considerações sobre a União Europeia.
 Um colega olhava para a namorada. No seu olhar, pude ver a libido acumulada, o desejo expresso nos seus olhos; atrás, uma colega navegava em redes sociais, indiferente à aula e disfarçando, no portátil, os apontamentos que não tirava. Tirei uma folha no dossier e comecei a escrever o que achei relevante da aula.

Chovia.

 E a chuva, tão natural, caía do céu. O professor, ao reparar nos rostos perplexos dos alunos, disse-o: "Cai água do céu!". Provocou gargalhadas e eu senti-me num país tropical com uma seca de dezenas de anos. Ilusão que principiou. Logo a euforia pela chuva deu lugar às comuns preocupações.

Vou apagar uma molha ao sair daqui

 Era o que todos queriam. Arrependeram-se e não quiseram mais. Talvez amedrontados pelo som dos trovões, apesar do perigo real ter passado com o fim do relâmpago. Talvez porque seja no mínimo assustador que um raio consigo iluminar toda a sala, num clarão que as lâmpadas, quando ligadas, não conseguem produzir. Talvez porque não queiram molhar a roupa imaculadamente seca e vistosa. Talvez porque pensem mais em si do que nos outros.
 A chuva e a trovoada, indiferentes, continuaram lá fora.


13 de março de 2012

Estórias do semáforo.


 É bom andar de autocarro por Lisboa. Como não o faço muitas vezes, perco por vezes a noção de como podemos retirar algum encanto de viagens que, à partida, nos parecem tão banais.
 Prometi a mim mesmo que não iria encostar a cabeça à janela, hábito que adquiri em pequeno, numa viagem de autocarro de que não me recordaria não fosse a tremenda dor de cabeça que ganhei depois.
 Coloquei a mala no colo e despi o casaco devido ao calor que se fazia sentir. Ao mesmo tempo que o fazia, tive a clara percepção de como hoje em dia consigo ver algo de belo em pequenos passos, tímidos, que fui desbravando.
 Vi o meu rosto reflectido no vidro, empoeirado, que separa a porta de saída dos passageiros e que estava mesmo diante de mim. Por momentos, parecia-me um velho retrato usado, esquecido num baú, até que encontrado e recuperado. As cores conferidas pelo aspecto sujo do vidro, num misto de castanho e cinzento claros, tornavam-me quase num fantasma.
 Senti um certo conforto por ter saído mais cedo de casa, indo almoçar com uma amiga, podendo assim desfrutar em pleno da viagem. Pela janela do autocarro, vi carros topo de gama, trabalhadores de limpeza e sem-abrigos, tudo no mesmo quarteirão. Vi-me como um espectador mórbido de uma miséria alheia, mesmo não o tendo feito deliberadamente e sendo incapaz de o evitar. O sem-abrigo carregava um cobertor nas mãos. O semáforo estava vermelho. Poderia desejar que passasse rapidamente a verde, evitando, assim, o confronto com a realidade, ou poderia querer que o vermelho se mantivesse, minutos, horas, não podendo olhar para outro lado que não o pequeno passeio onde o sem-abrigo estava. Sou impotente para controlar a trilogia

verde - amarelo - vermelho; vermelho - verde; verde - amarelo - vermelho

e as horas suceder-se-iam assim. Passou um empresário de pasta na mão, apressado.
 Cheguei, por fim, ao meu destino. À saída do autocarro, uma rajada súbita de vento, talvez ocasionada por me encontrar no meio de duas ruas de altos prédios circundantes, colocou-me todo o cabelo para trás. Só eu sei como detesto andar despenteado, mesmo que me digam que me dá um ar mais rebelde. Tenho tanto de rebelde como de astronauta, se bem que mais facilmente viajaria num vaivém espacial. Estou à espera do próximo projecto norte-americano que me inclua na missão.
 Quando me encontrei com a minha amiga, não lhe contei dos segredos da viagem, nem do que tinha vivido.
 De certeza que ela não veria o mundo em menos de uma hora, nem quereria alterar as cores do semáforo. Se lhe contasse o que vira, provavelmente dir-me-ia que não conseguiria mudar nada no mundo e que todas as manifestações filosóficas sobre os contrastes sociais ficam bem em teses de mestrados de quem nada mais tem a fazer. O batido de morango não saberia tão bem e o sorrisos não sairiam tão naturais. Ela não teria razão. Eu não tive a oportunidade de lhe dizer a verdade que pode ter o

verde - amarelo - vermelho; vermelho - verde; verde - amarelo - vermelho

que se sucede no tempo.
 Ajeitei o cabelo num espelho do café.

10 de março de 2012

O Sol sorriu para mim.


 Dias como o de hoje são tão convidativos! Impossível ficar em casa a estudar. Também, à medida em que a manhã se encaminhava para o fim, sentia o Simba a olhar para mim e a dizer: "Sai, não fiques em casa agarrado aos livros!".
 Saí, então, todavia munido do meu caderninho de anotações. A minha mania de andar sempre agarrado a alguma coisa. Sentia os raios quentes do Sol a aquecerem-me a pele; desta vez levei apenas um casaco fininho para o caso de arrefecer no meu regresso. Quando parava e tentava fitar o Sol de frente, lembrava-me do meu inconveniente hábito de sair de casa sem os óculos.
 Coloquei os headphones e as músicas a passarem aleatoriamente. Calhou a Rude Boy da Rihanna. Bem a propósito porque, alguns metros depois, passou um grupo de motards por mim, sendo que um fez questão de forçar o motor da mota para que eu, mesmo de phones, olhasse na sua direcção. Ao olhar para ele, acenou-me e disse-me «Olá», palavra que consegui ler nos seus lábios. Parecia que tinha balões de água, porém cheios de ar, implantados algures debaixo da pele. Não entendo porque motivo faço sucesso com estes sacos de músculos. É tão artificial... O Sol anuiu à minha indignação e enfraqueceu propositadamente os seus raios nesse compasso de tempo.
 Sentei-me num banco e desliguei a música. Abri o caderninho de anotações, já preparado para escrever o que via ao meu redor. Uma vez que o caderno faz vez de agenda (quando não tenho paciência para escrever na agenda), vi que até dia 10 de Março era obrigatório enviar um e-mail ao professor com o tema do trabalho. Que tema apresentar? Que trabalho fazer? O relógio marcava as cinco e tinha menos de meio-dia para pensar.
 Saí em passo acelerado.


8 de março de 2012

Tigre de Papel.


 Peço a força que por vezes me falta. Sei que provavelmente encontraria essa força em ti. Desde cedo me fiz acompanhar por pessoas com mais vitalidade do que eu, imbuído numa vontade de me tornar como elas.
 É bom ver-te sair da sala para comprar uma esferográfica azul; a desculpa encontrada por mim, de que estão esgotadas as minhas cores preferidas, não é convincente. Digamos que me tornei num ser estático.
 Também na biblioteca, quando me sinto diminuto no meio das estantes metodicamente organizadas de livros, observo a tua dedicação ao procurares por cada tema, cada título, cada autor, no meio de um emaranhado de cores velhas e esbatidas, sintomas de um uso compulsivo. É quase perceptível o som ofegante da tua respiração do outro lado. O barulho dos teus passos, apressados e largos, ecoa por entre fileiras de professores e alunos sentados a estudar. Não resisti às memórias de quando sussurrámos baixinho, no ano passado, até sermos encarados por um funcionário rezingão. Na altura, tive vontade de fugir.
 Contudo, essa força desaparece quando, por exemplo, hesitas em comer um folhado de queijo e fiambre descontraidamente. Talvez receies deixar cair migalhas para cima mesa; pelo menos, ficas bastante constrangido quando lanchamos algo juntos.
 Daí sentir-te como um tigre de papel. O que ainda não aprendeste é que nem sempre temos de ser fortes.


5 de março de 2012

Hiato.


 E que tal se pegasses na minha mão e saíssemos por aí? Prometo que não levo nada de especial comigo, nem demoro uma eternidade a arrumar as malas. Se me pedires, dispensarei até aqueles pequenos luxos que considero indispensáveis. O secador de cabelo, por exemplo?
 Nada teremos a planear. Nada haverá a pensar. Apenas te peço que me leves para longe. A alimentação não será um problema - eu como pouco. Mas, para não te preocupares demasiado, poderemos levar um pacote de bolachas de creme branco (sabes como gosto delas...) e uma simples mochila. Seria engraçado se substituíssemos o GPS por uma bússola, onde poderia, também, reviver o tempo das Grandes Descobertas da Idade Moderna.
 Como não teremos bilhete, não teremos data de regresso. Por mim, ficaremos o tempo que for necessário. Para não preocupar desnecessariamente a mãe, deixar-lhe-ei um papel escrito em cima da mesa da cozinha, ou, melhor, preso com um íman ao frigorífico. Sim, provavelmente ela acharia possidónio, apesar de adorar ver a sua reacção ao dar com o dito papel. Pelo menos evitaríamos as buscas policiais à nossa procura e as respectivas fotografias estampadas em jornais. Maus quinze minutos de fama...
 A minha vida...? Bom, faria um hiato interminável. Um dia terminaria, mas até lá conheceria novos lugares e, ao retomar, fá-lo-ia bem melhor. 
 Se demorássemos muito, sempre poderíamos levar dois pacotes de bolachas.


1 de março de 2012

O que sobrou de nós.


 Naquela manhã, o Sol despontara, mas não me aquecera. Aguardava impacientemente a chegada do pai, debruçado na janela enquanto observava a cor azul pálida do céu à distância. O dia parecia não me sorrir e tivera razões para pensar assim. Pela casa não mais sentia o cheiro suave do seu perfume, aquele aroma doce e almiscarado que tão bem conhecia. Olhando para a banheira, seca, constatei que não tomara banho pela manhã, o que era seu hábito desde sempre. Também o dentífrico estava guardado, sem pedaços de creme envolvendo a bisnaga.
 A casa parecera adormecida, como há muito não se sentia. Num derradeiro suspiro, descansava do tumulto de longos meses. Contudo, pelo ar não se respirava a calma ofegante, prenúncio de momentos felizes; o som da mudança fazia-se sentir ao longe, indo de encontro a uma frase épica, recordada até hoje, "a família terminou aqui".
 E, ao dizer-me, a frase não ganhou, de imediato, o significado terrível que viria a ter. Não deduzi - por inexperiência - que o provável era deixar de escutar o seus passos pela manhã, ou, de noite, deter-me em terra para sempre porque as estrelas que me prometera, em criança, tornavam-se agora inacessíveis. Vi as escadinhas dos livros da Rua Sésamo, que me dera, ruírem pelo chão, transformando a tenacidade que imprimira a desfolhar todas aquelas páginas, enquanto me lia as histórias, em blocos duros de cimento.
 Ele estava certo e, num dia, as malas recolheram o resto de um todo que já não pertencia àquele lugar. Os monstros, então, evadiram-se debaixo da cama e começaram a atormentar o meu sono. A velha táctica, usada durante anos, de cobrir a cabeça com o lençol fora descoberta. Não, não surtia mais efeito.
 Procurei por lugares que não encontrei, escondendo-me dos sorrisos alheios. As brincadeiras, espontâneas, deram lugar a uma graça premeditada. Ditos dos quais nem eu acreditava.
  As horas, antes rápidas e fugazes, tornaram-se lentas e intermináveis. O perigo de cair pelas escadas, descendo impacientemente, passara. De certeza que o carro não estaria à minha espera.
 Tentei recolher de novo as estrelas só para mim. Deixei, contudo, de acreditar que a mais brilhante é que está mais próxima da Terra. Afinal, o brilho de uma família feliz permanecera longe, mesmo quando o imaginava perto.