14 de novembro de 2011

Storm.


Em casa restava eu e a bivó. Todos os outros teriam saído não há muito tempo. O largo corredor do piso superior da casa dos avós tivera desde sempre um efeito nefasto em mim. As amplas janelas, uma das quais coberta por uma cortina alva semi-transparente, agitava-se sob uma corrente de ar que entrava do vidro mal fechado. O Simba tremia nas minhas mãos e conseguia ouvir o som dos meus passos que mais pareciam vindos de alguém que caminhava atrás. O espelho, à época colocado na parede direita, refletia um quadro surrealista de um velho pesaroso, adquirido algures nos meados dos anos 40 pelo bivô, então falecido.

O monopólio, abandonado no chão do quarto, tinha provocado risadas no Hugo, um rapaz surdo-mudo que ficava com a avó enquanto os pais saíam. Embora mais velho do que eu em uns largos anos, apreciava a minha companhia assim como eu apreciava a sua. E, a incapacidade auditiva tornava-o mais infantil, porventura até mais do que eu, apesar dos meus cinco anos. As notas esvoaçavam por cima do tabuleiro e alguns hóteis vermelhos e casas verdes jaziam derrubados, por mim, quando me ergui desastrosamente. Estivera a jogar com o primo e olhava para eles com a mesma admiração que hoje as primas olham para mim.

O relâmpago iluminara o corredor e todas as divisões cujas portas estavam abertas. A escuridão, momentaneamente interrompida devido ao clarão, parecia ansiosa enquanto aguardava pelo trovão. Visualizo-me por fora e vejo as imagens com a nitidez atual após tantos anos volvidos sobre aquela noite.
Escutei a voz da bivó chamando-me do piso de baixo. No momento, aterrorizado, estava encostado à parede, apertando o leão de peluche, sem qualquer reação de temor ou coragem. O menino extrovertido e até excessivamente eufórico dera lugar a uma criança perdida na própria casa que concebera como sua. Ver a bivó foi como o colo da mãe que tardava em chegar. Viena... Áustria..., nada disso fizera sentido no momento. Apenas a inexplicabilidade da sua ausência me parecia digna de uma boa crise de choro.

Segurei-me aos seus braços, envelhecidos, e senti-me protegido. Descemos a escadaria. Abandonados na casa grande, por todos. Soube - senti - que também ela tinha medo da tempestade. Contudo, juntos, tudo parecia mais fácil. Afinal, tratava-se de uma criança pequena e de uma idosa, sozinhos. Ensinou-me a rezar na mesma noite. Rezámos juntos até ao fim da tormenta.

Recordo-me de si a cada clarão, a cada som vindo do céu. A sua presença não mais é física, mas só morre em nós quem nada nos deixou.


6 comentários:

  1. Um texto muito pessoal,muito saudoso, e como sempre muito bem escrito.

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  2. lindo e linda a forma como falas as coisas. um dia que escreva assim vou ser rico xD
    abc

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  3. adorei, like always* tonts of love, izza.

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  4. às vezes penso que dás muito de ti a este espaço Mark. Como leitor, apenas te digo obrigado.

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  5. A última frase, Mark, deixou-me sem palavras!

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  6. Muito lindo, como sempre! ^w^

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