17 de novembro de 2011

Castanhas.

"Olh'á castanha, quentinhas e boas!"


A frase soou-me a um velho cliché batido vezes sem conta ao longo do dia. Gosto da proximidade e gosto, sobretudo, de sentir que algo foi dito para mim. O vendedor, de gorro azul na cabeça, esfregava as mãos uma contra a outra de modo a aquecer-se e a suprir a falta de um casaco quente. O carrinho das castanhas fumegava e até o negócio do velho fruto outonal não escapou à crise. Indiferentemente aos apelos do pobre vendedor, pessoas passavam apressadas em direção ao metro e à paragem dos autocarros.

Há algum tempo que não ficava na biblioteca depois das aulas. Hipocrisia e desonestidade intelectual se não dissesse que faltei à última aula. Enfastiado por tamanha presunção de um assistente balofo, decidi dar a preferência ao seu mestre e, na falta deste, não frequentar as suas aulas de substituição. Tédio por tédio, nada como uma hora na biblioteca da faculdade.
À medida em que arrumava os apetrechos na mala, o R. passou por mim e disse-me um "Olá", quase interpelando-me fugazmente, mas intimidando-me por não querer demonstrar qualquer solicitude da minha parte. Ficaria o estojo na bancada inferior não fosse o seu aviso.

Os meus planos seriam os de estudar sozinho, no sossego inquieto da biblioteca. Os livros, arrumados escrupulosamente segundo temas e autores, desafiam a paciência mais inequívoca. De soslaio, estudantes olham-nos desconfiadamente, talvez perturbados pelos nossos cochichos, numa altura em que me rendi consciente à sua presença. Sorrateiramente, ambos nos sentámos numa mesa entre duas grandes estantes metálicas de livros cujas lombadas azuis iguais em toda a extensão da prateleira denunciam uma coleção ou coletânea.
O modo despreocupado em como lançou a mochila para cima da mesa levou-me a pensar que o barulho indiciara algo partido, mas o que poderia ter na mochila que fosse quebrável? Reparei nos seus braços, agora desnudos sob as mangas da camisola dobradas pelo cotovelo. Os pequenos pêlos castanhos, quase incolores, surgiam por entre as veias dos seus braços, culminando nas mãos mais viris. Vi, pela primeira vez com atenção, as suas mãos. Os dedos, esguios mas fortes, revelam a uma robustez mal dissimulada por entre a sua voz terna e suave. Um misto de paz e guerra sem glória.
Não nos detivemos muito tempo na biblioteca moderna. Fora-lhe um pretexto assim como para mim uma tarde que terminou em sobressalto.

"Quero um cone, se faz favor!"

Contrariando as leis mais básicas da boa comercialização de produtos alimentares (talvez até ilegal) tive, finalmente, o meu cone de castanhas embrulhadas numa qualquer folha das Páginas Amarelas.
Ficámos a comer as nossas castanhas à entrada do metro. As luzes alaranjadas dos postes elétricos, cor de fogo, iluminavam-lhe o rosto. O cabelo, revolto, agitava-se à mínima corrente de ar. 
Denunciei o óbvio: não sei descascar castanhas assadas. Soltámos pequenas risadas nervosas e tímidas, mais pela conjuntura que nos rodeava do que propriamente pela minha falta de jeito.
A sua ideia do passeio depois das aulas fora boa. Aprendi a descascar castanhas e descobri que ficar de noite, na rua, a comer castanhas sem pensar em mais nada pode ser surpreendente.


12 comentários:

  1. adoro a tua escrita <3 parece veludo em forma escrita.

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  2. Continuas a descobrir o mundo, um mundo que tu não conhecias e que até há pouco tempo, quase recusavas liminarmente...

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  3. Tu e o R. .... Quantos suspiros já não dei. Já tinha saudades de ouvir falar nele...

    Então não sabias descascar castanhas assadas? Hum, não há nada melhor do que descascá-las, barrá-las em manteiga e ficarmos na escuridão do quarto a ver um filme...

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  4. sad eyes: Um outono cada vez mais invernoso... :(

    Anónimo: Obrigado. Podias ter assinado. (:

    Pinguim: É um facto, pinguim. Mas, sabes, foi um momento tão simples e ao mesmo tempo completo, especial. (:

    K.: Olá! Sim, andámos um tempo afastados, sem muito contacto. Afastou-se ele e afastei-me eu.
    Não, não sabia descascar castanhas assadas. (: Ele ensinou-me. Hum, com manteiga deve ficar bom. Obrigado pela dica. ;)

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  5. Estas nossas semelhanças em tantos aspectos... lol

    Há muita beleza em tudo o que é simples, Mark. Descobri-o já um pouco, tarde mas o importante é conseguir.

    Para quando o toque "distraído" da tua mão na sua? Ai, ai... Não cometas os meus erros, please!!!

    Abraço forte

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  6. Paulo: Também descobri a beleza nas coisas mais simples há pouco tempo. Ao falar com uma amiga, não especificando pormenores nem detalhes, disse-me: "Castanhas à porta do metro? Que coisa vulgar!..." Julgando de fora, há uns anos, diria o mesmo. Hoje, vejo que foi algo completamente simples, sem nada que tivesse acontecido com importância efetiva, mas mesmo assim especial.
    Tinha sido uma boa ocasião, mas já o disse: não darei o primeiro passo.

    Abraço forte. ^^

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  7. Obrigadooo ;D


    http://joateba94.blogspot.com/2011/11/amor-e.html: novo poema ^-^

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  8. Mais outro post espectacular. A tua maneira de escrever,tão delicada e detalhada,só torna tudo ainda mais perfeito.

    Gostei muito =)

    beijinho*

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  9. Muito obrigada pelos comentários!!
    Sobre a fase difícil,ela um dia irá passar. A vida é feita de altos e baixos. Por isso acredito que as coisas um dia irão melhorar =)
    E já agora,fico contente que tenhas gostado da nova mudança do blog ^^

    beijinho* grande,e muito obrigada por tudo!!

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  10. Há coisas que adjectivamos de vulgares sem nunca as termos experimentado, e isso pode revelar-se um grande erro. Nada como experimentar...

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  11. Momentos como este que partilhas neste post, são daqueles que marcam e certamente deixarão saudades!

    Uma vez mais descobriste a beleza das coisas em algo tão simples como comer castanhas. O que realmente fez toda a diferença foi a companhia. ^^

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