25 de maio de 2011

O Espectro da Fome


Enquanto alguns se preocupam com o carro que vão adquirir graças à troca do anterior ou a roupa que vão levar para a próxima festa social, há quem pense que no dia seguinte pode não ter o que comer. Há quem viva com pensões miseráveis em pleno ocidente europeu moderno e de primeiríssimo mundo.
Hoje, desloquei-me ao centro da cidade para tratar de uns assuntos. Estacionar o carro em Lisboa - e quem é lisboeta sabe-o - é uma árdua tarefa que exige paciência e disponibilidade. Não tenho qualquer uma das duas, no entanto, continuo a desafiar-me. Encontrei um lugar, estacionei e percorri as ruas até chegar ao meu destino. A meio do caminho, ali para os lados da Avenida Duque D'Ávila, sozinha no meio de transeuntes que passavam indiferentes à sua presença, dei por uma senhora, que deveria ter seguramente mais de oitenta anos, sentada numa cadeira, de mão estendida, a pedir uma esmola a quem passava. A sua pele extremamente envelhecida, sobretudo na parte do pescoço, revelava a sua idade avançada. Os seus olhos, tristes e amargurados, eram o espelho do sofrimento escondido e latente no interior do seu coração cansado. Não estive perante um jovem preguiçoso que pede porque não quer trabalhar; não estive perante um toxicodependente que quer dinheiro para saciar os seus vícios; não estive perante o ócio que não conhece a palavra esforço e vergonha. Não. Estive perante uma idosa que pedia para comer.
As pessoas passavam e nem sequer olhavam. Rejeitam a sua própria vergonha. Viram a sua face à miséria que está perante os seus olhos. Renegam o espectro da fome.
Passei, detive-me na minha estupefacção e não soube o que fazer. Abri a carteira, tirei umas moedas e coloquei-as na mão da senhora. Que sentimento de impotência! Acabei de fazer o que todo o cidadão hipócrita faz para ficar de bem com a sua consciência. Resolvi o problema da senhora? Não. Dei a triste esmola, dinheiro vil e sujo, e segui o meu caminho. É este o comportamento que devemos adotar uns para com os outros? Certamente que não.
Eis a triste realidade de um país que despreza e maltrata os seus idosos. Aquela senhora poderia ser a nossa amiga, a nossa avó, a nossa mãe... Com o rumo de mórbida indiferença que o mundo segue, nós seremos aquela senhora quando tivermos a sua idade.






Imagem: Homem Velho Com A Cabeça Em Suas Mãos (1882), Vincent van Gogh

5 comentários:

  1. um dos meus piores medos é mesmo esse: chegar a uma idade avançada e não conseguir sustentar-me ou cuidar de mim. Casos como o que acabaste de descrever, sinto-os como um murro no estômago

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  2. É isso mesmo, sem tirar nem pôr! Triste sociedade que não sabe cuidar dos seus.
    Também eu vou dando as minhas "esmolas", mas com o mesmo sentimento que descreves. O Mundo está cheio de imperfeições e, pior, está a seguir o caminho errado.
    Abraço!

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  3. Há muito que defendo que se deve olhar mais para os velhos do que para as crianças.
    Que triste é ser-se velho e sentir-se só e sem nada...

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  4. Um amigo virtual26/05/2011, 01:07:00

    É a triste realidade dos nossos dias. Também eu vejo semelhantes situações onde vivo. A miséria aumenta quando na verdade deveria de diminuir. Entristece-me ver Portugal perder as batalhas contra o seu atraso...
    Mais uma belíssima exposição escrita, com "todos os pontos nos i's e nos seus devidos lugares".
    Um abraço do Amigo Virtual.

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  5. Eu confesso que não costumo dar esmolas. Prefiro dirigir os meus contributos (não exclusivamente monetários) para instituições que possam, de facto, melhorar as condições de vida dessas pessoas. Não é que não acredite na capacidade de julgamento e discernimento dos pedintes, mas acho que o problema não se resolve dessa forma. Além disso, não conhecendo essa senhora em particular, os pedintes em Lisboa obedecem a uma máfia que os controla e atribui determinadas zonas da cidade, e à qual têm de pagar uma renda. É uma realidade chocante que poucos conhecem.

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